terça-feira

ÊXODO: DEUSES E REIS


ÊXODO: DEUSES E REIS (Exodus: Gods and Kings, 2014, 20th Century Fox, 150min) Direção: Ridley Scott. Roteiro: Adam Cooper, Bill Collage, Jeffrey Caine, Steven Zaillian. Fotografia: Darius Wolski. Montagem: Billy Rich. Música: Alberto Iglesias. Figurino: Jandy Yates. Direção de arte/cenários: Arthur Max/Cecilia Bobak, Pilar Revuelta. Produção executiva: Hisham Soliman. Produção: Mark Albela, Peter Chernin, Mohamed El Raie, Mark Huffam, Denise O'Dell, Mchael Schaefer, Ridley Scott, Jenno Topping. Elenco: Christian Bale, Joel Edgerton, Ben Kingsley, John Turturro, Aaron Paul, Ben Mendelsohn, Sigourney Weaver, Hiam Abass, Ewen Bremner. Estreia: 03/12/2014 (Londres)

Houve um tempo em que Hollywood - e as plateias ao redor do mundo - tinham uma indisfarçada fascinação por produções épicas/religiosas. Com a chegada de um novo estilo cinematográfico, mais ágil e moderno (a partir do final dos anos 1960), o gênero saiu de moda, e parecia destinado apenas à nostalgia até que Ridley Scott mostrou que ele ainda tinha espaço, com o sucesso de público, de crítica e de Oscars de "Gladiador" (2000). A partir daí, estúdios e cineastas voltavam a apostar em filmes grandiosos, de orçamentos generosos e narrativas pomposas - desta vez com o apoio de efeitos visuais caprichados e astros de primeira grandeza. Nem todos deram certo, e nem mesmo o próprio Scott escapou de tropeços, como "Cruzada" (2005) e "Robin Hood" (2010). Em um meio termo entre o sucesso e o fracasso absoluto, o cineasta inglês tampouco foi exatamente feliz com sua visão da conhecida história de Moisés e sua luta para libertar o povo judeu da escravidão. "Êxodo: deuses e reis" não foi um êxito comercial - em parte consequência do orçamento milionário de 140 milhões de dólares - e falhou em conquistar a crítica como em seus melhores trabalhos. Lançado no mesmo ano em que Darren Aronofsky estreou seu "Noé" - igualmente controverso e também mais calcado na realidade do que no tom místico normalmente encontrados nos clássicos religiosos -, o filme de Scott esbarrou basicamente em sua indecisão entre ser uma jornada épica de ação ou uma discussão sobre Deus e seus desígnios. Sofrendo com um ritmo lento que faz a trama engrenar só depois da metade da projeção, "Êxodo: deuses e reis" acabou desperdiçando a chance de unir o melhor do passado - uma história à moda antiga - com o presente - efeitos especiais de última geração, algo que somente muito dinheiro pode comprar - e resultou em um filme apenas morno.

Christian Bale, que também era a primeira escolha de Aronofsky para interpretar seu Noé - que ficou com Russell Crowe - quase perdeu o papel de Moisés, por causa do excesso de peso adquirido para "Trapaça" (2013), mas acabou acrescentando outro herói a uma galeria que inclui nada menos que o homem-morcego na trilogia capitaneada por Christopher Nolan. Bale entrega uma atuação forte, mas tropeça em um roteiro que evita a emoção a todo custo - e em um personagem arrogante e pouco simpático, o que dificulta a empatia do público. Sorte sua que o Ramsés de Joel Edgerton é ainda pior, com ares de vilão cartunesco mas ainda assim dentro da proposta de Scott. Agnóstico assumido, o cineasta narra sua história sob um ponto de vista calcado em possibilidades reais - as sete pragas do Egito, por exemplo, encontram explicações científicas que as obras anteriores de Cecil B. de Mille jamais buscariam: são sequências muito interessantes, criadas com o bom gosto de quem já criou obras indeléveis como "Alien: o oitavo passageiro" (1979) e "Blade Runner: o caçador de androides" (1982), mas é pouco para seduzir uma plateia acostumada a ação incessante. E nesse ponto a produção peca - e muito.

 

Demora quase meia-hora para que "Êxodo: deuses e reis" comece realmente a contar sua história. Antes que Moisés descubra suas origens hebraicas - o que dá o pontapé inicial para seu declínio junto ao Faraó Seti (John Turturro) e posterior redenção junto a seu povo, que o escolhe como líder contra as tiranias impostas pelo novo governante, o cruel Ramsés. Até que finalmente Moisés resolva desafiar seu antigo "irmão", o filme desfila uma série de diálogos lentos e quase desnecessários, que testam a paciência do espectador mesmo diante da opulência da direção de arte e da fotografia deslumbrante de Darius Wolski. Sigourney Weaver - parceria constante de Scott - aparece pouco, depois de ter boa parte de suas cenas cortadas na edição final, e Ben Kingsley, apesar do papel de importância crucial, é subaproveitado, assim como Aaron Paul, em alta pela série "Breaking bad", que mal aparece, com um personagem aleatório e sem força narrativa. É paradoxal que o roteiro tente fazer do filme mais do que simplesmente um épico de imagens fortes e ao mesmo tempo falhe consistentemente em aprofundar as relações entre os personagens e até mesmo suas personalidades. Apenas a rivalidade de Moisés e Ramsés é desenvolvida - e mesmo assim sem maior densidade - e o casamento do protagonista com Nefertari (Golshifeth Farahani) ocupa lugar periférico na trama, servindo apenas como (mais) um ponto de ruptura entre as duas vidas de Moisés. E não deixa de ser frustrante assistir-se a duas horas de filme para que ele tenha um final tão anti-climático quanto o proposto pelos roteiristas, dentre os quais os previamente indicados ao Oscar Jeffrey Caine e Steven Zaillian - que chegou a levar uma estatueta para casa pelo sensível "A lista de Schindler" (1993).

Mas afinal de contas, "Èxodo: deuses e reis" é totalmente ruim? Jamais. O visual, como já afirmado, é impressionante, desde o design de produção até os efeitos visuais - ainda que nem mesmo eles desafiem o inesquecível "Os dez mandamentos" (1956) -, e Joel Edgerton deita e rola como Ramsés (assumindo um papel recusado por Javier Bardem e Oscar Isaac). Christian Bale tem a potência necessária para viver um Moisés inesquecível, e mesmo que sua criação seja um tanto arrogante demais para despertar a torcida do público, seu talento impede que o filme caia nos clichês do gênero. Além disso, algumas soluções criadas para uma versão menos religiosa e mais política são fascinantes, como fazer de Deus uma criança mimada (o que incomodou os mais ortodoxos) e dar explicações racionais (ou o mais perto possível disso) às pestes que assolam o Egito. São momentos como esses que quase salvam o filme de Scott - que, com uma edição mais enxuta e um trabalho melhor no desenvolvimento de seus personagens poderia ter facilmente alcançado um lugar de honra entre as grandes produções épicas de seu tempo. Como está é um filme bem realizado mas sem alma. Muito visual para pouco conteúdo. Uma pena!

sábado

O QUE É ISSO, COMPANHEIRO?


O QUE É ISSO, COMPANHEIRO? (O que é isso, companheiro?, 1997, Columbia Pictures/Luiz Carlos Barreto Produções, 110min) Direção: Bruno Barreto. Roteiro: Leopoldo Serran, livro de Fernando Gabeira. Fotografia: Félix Monti. Montagem: Isabelle Rathery. Música: Stewart Copeland. Figurino: Emilia Duncan. Direção de arte/cenários: Marcos Flaksman, Alexandre Meyer/Carlos Eduardo Mallet. Produção: Lucy Barreto, Luiz Carlos Barreto. Elenco: Alan Arkin, Pedro Cardoso, Fernanda Torres, Cláudia Abreu, Matheus Nachtergaele, Luiz Fernando Guimarães, Caio Junqueira, Selton Mello, Marco Ricca, Alessandra Negrini, Fernanda Montenegro, Lulu Santos, Luiz Armando Queiroz, Nelson Dantas, Maurício Gonçalves, Milton Gonçalves, Eduardo Moscovis, Othon Bastos. Estreia: 19/4/97

Indicado ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro

Publicado em 1979 e logo alçado ao posto de um clássico contemporâneo, "O que é isso, companheiro?" narrava, em primeira pessoa, as experiências de Fernando Gabeira na luta armada contra a ditadura militar brasileira, sua participação no sequestro do embaixador norte-americano Charles Elbrick, sua prisão e seu exílio na Europa. Com mais de 250 mil exemplares vendidos, o livro foi peça fundamental na consolidação da carreira política do autor e uma das obras seminais a respeito de um dos períodos mais sombrios da história do país. Cinco anos depois de servir como uma das bases da minissérie global "Anos rebeldes" - um sucesso estrondoso que voltou a colocar os anos de chumbo em evidência - e quase duas décadas depois de seu lançamento, as memórias de Gabeira voltaram à tona com sua adaptação para o cinema. Com produção de Lucy e Luiz Carlos Barreto, direção de Bruno Barreto - já com carreira internacional consolidada - e coprodução da Columbia Pictures, a versão para as telas do infame sequestro de Elbrick ganhou a simpatia do público, da crítica e da Academia de Hollywood, que lhe indicou ao Oscar de melhor filme estrangeiro: não chegou a sair como vencedor - teve os planos atrapalhados pelo holandês "Caráter" -, mas foi um passo adiante do cinema brasileiro em direção ao respeito mundial.

O roteiro do experiente Leopoldo Serran - responsável pela adaptação de "O quatrilho", outra produção dos Barreto a ter concorrido ao Oscar, em 1996 - não abarca todo o livro de Gabeira, concentrando-se exclusivamente em seu elemento mais cinematográfico: sua entrada para o temido Movimento Revolucionário 8 de outubro (ou MR-8) e sua participação naquele que se tornaria um dos momentos mais emblemáticos da luta armada do final dos anos 1960. O próprio autor admite que sua personificação no filme (na pele do ótimo Pedro Cardoso) tem mais importância do que ele teve na realidade, mas a licença poética é plenamente compreensível em termos dramáticos: como elemento narrativo, é muito mais interessante um personagem como Fernando - um jovem sem experiência na luta que se vê no olho de um furacão e assume papel fundamental em um episódio muito maior que ele - do que um espectador passivo, servindo apenas de testemunha da história. Fernando é um homem de letras, de propensões intelectuais, e não alguém cuja índole previa pegar em armas e participar de assaltos (ou expropriações) e sequestros. É assim, graças a tal personalidade pacífica, que Fernando se aproxima do público, que se identifica com sua (falta de) vocação para a guerrilha ao mesmo tempo em que sabe que ela é a (talvez) única solução imediata. Ajuda, é claro, o talento de Pedro Cardoso em transmitir a insegurança de seu personagem e seu tom quase cômico mesmo em situações perigosas - e o grande elenco, tão incrível que pode se dar ao luxo de contar com Fernanda Montenegro em uma participação mínima mas crucial.


 

Em uma tentativa bem-sucedida de aproximar seu filme do público consumidor de programas de televisão, Bruno Barreto escolheu seu elenco a dedo. Dos consagrados Fernanda Torres e Luiz Fernando Guimarães ao então novato Matheus Nachtergaele - passando por uma Cláudia Abreu no auge da popularidade e pelo norte-americano Alan Arkin -, a lista de créditos de "O que é isso, companheiro?" é admirável , com espaço até mesmo para pontas do cantor Lulu Santos como um militar. Se é questionável o fato de lotar o elenco de globais como forma de buscar o sucesso comercial - ainda que todos estejam excelentes em cena, independentemente de suas personas artísticas mais conhecidas -, o resultado foi bastante favorável. Além de dialogar com a audiência com mais facilidade, tal opção deu visibilidade o bastante ao filme em sua trajetória rumo a uma indicação ao Oscar - um objetivo para o qual contou também o nome de Bruno Barreto no exterior. Já bem instalado em Hollywood - principalmente graças ao êxito internacional de "Dona Flor e seus dois maridos" (1976) e produções de prestígio como "Assassinato sob duas bandeiras" (1990), estrelado por Amy Irving, com quem foi casado até 2005 -, Barreto nunca abandonou completamente suas raízes, e assim como seu irmão Fábio dois anos antes, chegou à corrida da estatueta com o apoio de nomes poderosos da indústria americana, como Steven Spielberg e a máquina de marketing da Columbia Pictures internacional. Não foi suficiente para arrebatar o prêmio - mas voltou a colocar o cinema brasileiro no mapa e jogar luz sobre um tema nunca desgastado.

Apesar de se passar durante a ditadura militar brasileira e contar uma de suas histórias mais emblemáticas, "O que é isso, companheiro?" dificilmente pode ser considerado um filme político. Longe dos questionamentos da filmografia de um Costa-Gavras, por exemplo - cujo "Z" (1969) é um cânone do gênero - e sem maior aprofundamentos do contexto histórico, o roteiro de Serran prefere focar-se na interrelação entre seus personagens, pressionados pela máquina governamental e diante da possibilidade de um fracasso que pode levá-los à morte. Boa parte da trama se passa durante o período do cativeiro do embaixador, interpretado com excelência por Alan Arkin - daí o título internacional, "Four days in September" - e são os vínculos entre os personagens que interessam a Serran e Barreto, mais do que os desdobramentos sociais e políticos de sua aventura. Tal escolha é válida, mas esbarra em alguns momentos um tanto quanto desconcertantes - como as crises de consciência do torturador a que Marco Ricca dá vida: Ricca é um ótimo ator e transmite verdade em suas cenas, mas é pouco crível que pessoas que ganham a vida com tal violência sejam tão suscetíveis a remorsos (em especial no calor do momento). Detalhes assim enfraquecem o filme como um todo - é uma tentativa não feliz em evitar o maniqueísmo - e o impedem de ter a potência que poderia. É uma produção caprichada - bem dirigida, com uma edição ágil e uma trilha sonora adequada - mas longe da obra-prima que se poderia esperar. Ainda assim, um belo produto do cinema nacional em sua fase de mesclar sucesso financeiro e prestígio internacional.

VAMPIROS DO DESERTO

VAMPIROS DO DESERTO (The forsaken, 2001, Screen Gems/Sandstorm Films, 90min) Direção e roteiro: J. S. Cardone. Fotografia: Steven Bernstein...