sábado

EU SEI O QUE VOCÊS FIZERAM NO VERÃO PASSADO

EU SEI O QUE VOCÊS FIZERAM NO VERÃO PASSADO (I know what you did last summer, 1997, TriStar/Columbia Pictures, 101min) Direção: Jim Gillespie. Roteiro: Kevin Williamson, romance de Lois Duncan. Fotografia: Denis Crossan. Montagem: Steve Mirkovich. Música: John Debney. Figurino: Catherine Adair. Direção de arte/cenários: Gary Wissner/James Edward Ferrell Jr.. Produção executiva: William S. Beasley. Produção: Stokely Chaffin, Erik Feig, Neal H. Moritz. Elenco: Jennifer Love Hewitt, Freddie Prinze Jr., Ryan Phillippe, Sarah Michelle Gellar, Anne Heche Estreia: 17/10/97

Na segunda metade dos anos 1990, poucos nomes em Hollywood eram tão quentes quanto o de Kevin Williamson. Autor do roteiro de "Pânico" (1996), o slasher movie que devolveu o prestígio (e o sucesso de bilheteria) a Wes Craven, ele ainda era o criador da série dramática "Dawson's Creek" (que revelou Katie Holmes e Michelle Williams) - e parecia que tudo que tinha seu nome era uma mina de ouro a ser explorada. Por isso, ninguém ficou surpreso quando a Columbia Pictures resolveu dar o sinal verde a "Eu sei o que vocês fizeram no verão passado", adaptação do livro de Lois Duncan que Williamson já tentava vender antes mesmo da estreia do filme de Craven. Nas mãos do roteirista mais celebrado da época, o romance de Duncan foi totalmente modificado para melhor apetecer às plateias juvenis sedentas por sangue e transformou-se em outro êxito comercial. Com uma renda mundial de mais de 125 milhões de dólares, popularizou ainda mais seu jovem e atraente elenco e confirmou a estrela de Williamson - ao menos até o desgaste de sua fórmula e o decrescente interesse por seus trabalhos seguintes (de certa forma proporcional à qualidade deles). Feito para assustar e lucrar em cima de um gênero então renascido das trevas, o filme de estreia de Jim Gillespie - oriundo do mundo dos videoclipes - cumpre o que promete, mas soa (bastante) como um produto requentado e sem muita criatividade.

É claro que o público-alvo do filme não é exatamente exigente, e seu sucesso mundial confirma o fato. Seguindo à risca a receita de produções como a cinessérie "Sexta-feira 13" - a saber: muitos sustos, violência, sangue aos borbotões e um elenco fotogênico interpretando personagens rasos -, "Eu sei o que vocês fizeram no verão passado" não apresenta novidades, mas ao menos tem a seu favor uma produção caprichada e alguns bons momentos de tensão. A história é derivativa e nem faz muito sentido no final das contas, mas ao menos a plateia que procura diversão no gênero não tem do que se queixar: as mortes são bem elaboradas, o suspense é razoavelmente bem construído e, como é frequente em filmes assim, os personagens são tão chatos e bobos que é difícil não torcer pelo assassino - seja ele quem for. E no caso do filme de Gillespie, pode-se dizer até que isso é o que menos interessa, já que o roteiro tem reviravoltas e pistas falsas em número suficiente para preencher os minutos entre um assassinato e outro mas acaba de forma anticlimática e forçada - já pensando em um novo capítulo.


A trama se passa em uma pequena cidade litorânea e começa no feriado de 4 de julho - no último verão em que quatro amigos ainda estarão juntos antes de começarem a faculdade. Depois de uma noite de diversão e bebidas, porém, um trágico acidente muda suas vidas para sempre. Único dos quatro a não estar bêbado, Ray (Freddie Prinze Jr.) acaba atropelando um desconhecido, para desespero do dono do carro, Barry (Ryan Phillippe), e de suas namoradas, Julie (Jennifer Love Hewitt) e Helen (Sarah Michelle Gellar). Com medo que o desastre atrapalhe seus planos para o futuro, o grupo resolve se livrar do corpo jogando-o no mar - e não mudam de ideia nem mesmo quando descobrem, talvez tarde demais, que a vítima ainda não estava morta. Fazendo um pacto de silêncio, eles decidem seguir suas vidas como se nada tivesse acontecido. Um ano mais tarde, no entanto, o passado volta para lhes assombrar: alguém não apenas sabe o que aconteceu na fatídica noite e está mandando recados para os quatro mas também está decidido a matar um por um dos jovens.

A partir daí, o roteiro de Kevin Williamson abandona o livro original e parte para a matança geral. O assassino - munido de um gancho no lugar de uma das mãos - sai à caça dos protagonistas sem dó nem piedade, e o grupo tenta, de todas as maneiras possíveis, descobrir sua identidade antes de se tornar a próxima vítima. Nessa busca, eles mergulham em histórias antigas da cidade, cruzam com tipos assustadores (como a mecânica interpretada por Anne Heche) e descobrem que ninguém está imune a suspeitas - nem mesmo eles próprios. O filme cria algumas sequências interessantes - o mínimo que se espera de um bom slasher - mas peca em fazer de seus personagens principais apenas estereótipos batidos (o galã, a princesa, a nerd e o pobre) e sem muita empatia. Ryan Phillippe e Sarah Michelle Gellar voltariam a atuar juntos em "Segundas intenções" (1999) - e ela se tornaria estrela da série de TV "Buffy: a caça-vampiros" - e Freddie Prinze Jr. apostaria em comédias românticas antes de sumir dos holofotes. Da mesma forma que Sarah Michelle, Jennifer Love Hewitt (que já fazia sucesso na televisão, como parte do elenco de "O quinteto") deu continuidade à carreira na telinha, estrelando "Ghost whisperer" e tentando emplacar como cantora - depois de participar das continuações cada vez piores do filme original. No final das contas, "Eu sei o que vocês fizeram no verão passado" é uma sessão nostálgica e descerebrada de um período específico da indústria do terror em Hollywood - que atingiu seu ápice com "Pânico" e degenerou em produções totalmente desprovidas de charme e inteligência.

sexta-feira

COM AMOR, SIMON

COM AMOR, SIMON (Love, Simon, 2018, Fox 2000 Pictures, 110min ) Direção: Greg Berlanti.  Roteiro: Elizabeth Berger, Isaac Aptaker, romance "Simon vs The Homo Sapiens Agenda", de Becky Albertalli. Fotografia: John Guleserian. Montagem: Harry Jierjian. Música: Rob Simonsen. Figurino: Eric Daman. Direção de arte/cenários: Aaron Osborne/Tasha Clarkson. Produção executiva: Timothy M. Bourne. Produção: Marty Bowen, Wyck Godfrey, Isaac Klausner, Pouya Shahbazian. Elenco: Nick Robinson, Jennifer Garner, Josh Duhamel, Katherine Langford, Alexandra Shipp, Logan Miller, Keiynian Lonsdale, Jorge Lendeborg Jr.. Estreia: 27/02/18

Levou quase quarenta anos, mas aconteceu: em 1982, a Fox amargou um enorme fracasso de bilheteria com um filme chamado "Fazendo amor", que desafiava as regras implícitas da indústria ao contar a história do romance entre dois homens (um deles casado) sem apelar para um desfecho trágico ou o sensacionalismo. Não apenas o filme foi um fiasco comercial como prejudicou seriamente a carreira de seus atores (entre eles, Michael Ontkean, que só voltaria a chamar a atenção na década seguinte, como o Xerife Truman da série "Twin Peaks"). Em 2018, porém, as coisas foram bem diferentes: adaptado do livro "Simon vs The Homo Sapiens Agenda", de Becky Albertalli, a comédia romântica juvenil "Com amor, Simon", que apresenta um protagonista adolescente que encara com relativa naturalidade sua homossexualidade, conquistou a crítica e encantou seu público-alvo, arrecadando quase 70 milhões de dólares ao redor do mundo a despeito de não ter grandes nomes em seu elenco ou contar com uma campanha agressiva de marketing. Simples, delicado e bastante agradável, é uma produção que daria muito orgulho a John Hughes - o papa do cinema adolescente hollywoodiano.

Assim como nos filmes de Hughes - entre eles os clássicos "Gatinhas e gatões", "A garota de rosa shocking" e "Clube dos cinco" -, os protagonistas de "Com amor, Simon" falam direto a seu público-alvo com sinceridade e bom-humor, mesmo diante de situações dramáticas. Também não falta a trilha sonora antenada, coadjuvantes engraçados e toda aquela série de clichês do gênero - mas utilizados com tanto carinho que é difícil não simpatizar. Pode-se dizer inclusive que, mesmo diante de um tema tão relevante, o filme opta por um caminho um tanto asséptico e fantasioso - mas até nisso o diretor Jim Gillespie é coerente com as intenções de seu rebento. "Com amor, Simon" não se dispõe a quebrar barreiras ou preconceitos: é simplesmente uma boa e simpática história de amor, daquelas a que o público precisa recorrer depois de um dia pesado ou triste. Talvez o público adulto torça o nariz diante de algumas soluções fáceis demais ou do apelo francamente juvenil da trama, porém as plateias a que se destina a produção não tem do que reclamar: raramente elas tem à sua disposição uma comédia romântica tão adequada a seu tempo e suas necessidades sentimentais.


Muito acima da média das produções atuais do gênero, "Com amor, Simon" acompanha as desventuras românticas do protagonista, interpretado pelo carismático Nick Robinson, que empresta a ele uma personalidade tímida e quase desajeitada que combina à perfeição com a trama, recheada de intrigas amorosas, mal-entendidos e uma variedade de personagens interessantes que conquistam o espectador desde os primeiros momentos. Simon Spier, o personagem principal, é um adolescente comum, que vive confortavelmente com os pais, bonitos e bem-sucedidos (Josh Duhamel e Jennifer Garner) e uma adorável irmã mais nova (uma outra irmã, mais velha, foi limada na adaptação). Ele leva uma rotina simples, que envolve escola, amigos, ensaios para uma montagem estudantil de "Cabaret"e um segredo que mantém escondido a sete chaves: sua homossexualidade. Quando um colega se assume gay em um post no blog da escola - sob o pseudônimo de "Blue" -, Simon vê a chance de finalmente conseguir conversar com alguém sobre seus medos e sentimentos. Também disfarçado com um apelido ("Jacques"), ele inicia um relacionamento online com o rapaz - ambos se sentem atraídos intelectual e sentimentalmente um pelo outro, mas tem medo da exposição. Decidido a descobrir a identidade de seu novo amor, Simon passa, então, a imaginar dezenas de situações e possibilidades - e até chantageado passa a ser antes de finalmente conhecer a verdade.

O roteiro, baseado no livro de Becky Albertalli, brinca com as dúvidas de Simon a respeito da identidade de seu correspondente anônimo com delicadeza e respeito, e ainda encontra espaço para inserir uma fina ironia a respeito do preconceito em relação à homossexualidade. Uma sequência em que Simon imagina seus amigos "saindo do armário" e revelando aos pais que são heterossexuais e uma outra, onde ele se imagina finalmente assumido, ao som de Withney Houston, são momentos leves que não deixam que a trama se torne mais séria do que deveria. No fundo, o diretor Greg Berlanti quer apenas contar uma história de autoaceitação e liberdade pessoal, sem desviar sua atenção para outros temas importantes que o filme poderia levantar (a homofobia, os problemas familiares e outras questões são praticamente ignoradas). É uma escolha arriscada que poderia despertar a ira dos militantes mais radicais, mas que acaba sendo compensada pelo alcance do resultado final: mesmo que seja quase um conto de fadas, "Com amor, Simon" é respeitoso, caloroso e importante, por apresentar a uma plateia jovem (e portanto ainda em formação de caráter e personalidade) uma alternativa ao ódio e à intolerância. Pode não mudar o mundo nem marcar a história do cinema, mas é uma deliciosa sessão da tarde - e das mais corajosas e emocionantes.

quinta-feira

CORRA!

CORRA! (Get out, 2017, Universal Pictures/Blum House Pictures, 104min) Direção e roteiro: Jordan Peele. Fotografia: Toby Oliver. Montagem: Gregory Plotkin. Música: Michael Abels. Figurino: Nadine Haders. Direção de arte/cenários: Rusty Smith/Leonard R. Spears. Produção executiva: Raymond Mansfield, Shaun Redick, Couper Samuelson, Jeanette Volturno. Produção: Jason Blum, Edward H. Hamm Jr., Sean McKittrick, Jordan Peele. Elenco: Daniel Kaluuya, Allison Williams, Bradley Whitford, Catherine Keener, Caleb Landry Jones, Marcus Henderson, Betty Gabriel. Estreia: 23/01/17 (Festival de Sundance)

4 indicações ao Oscar: Melhor Filme, Diretor (Jordan Peele), Ator (Daniel Kaluuya), Roteiro Original
Vencedor do Oscar de Roteiro Original 

Primeiro foi o sucesso comercial: realizado com meros 4,5 milhões de dólares, ele arrecadou mais de 250 milhões pelo mundo. Depois, veio o aplauso da crítica, que o colocou como o mais bem avaliado filme de 2017 no confiável site Rotten Tomatoes. E por fim, a consagração da própria indústria, quando, das quatro importantes indicações ao Oscar (incluindo filme e direção), saiu da cerimônia de premiação com a estatueta de roteiro original. Para um filme de gênero considerado "menor" e lançado quase um ano antes de sua vitória junto à Academia, "Corra!" saiu-se muito melhor do que se poderia esperar, principalmente se for levado em consideração que algumas de suas características não são exatamente comuns aos grandes sucessos de bilheteria e prêmios. Filme de estreia do afro-americano Jordan Peele, conhecido nos EUA por seus trabalhos cômicos, estrelado por um ator negro (Daniel Kaluuya, indicado ao Oscar por seu desempenho) e de um gênero que pouco frequenta listas de indicados e/ou vencedores de grandes premiações (o suspense), "Corra!" pode ser considerado, sem favor algum, um fenômeno. De sua estreia no Festival de Sundance, em janeiro de 2017, até seu Oscar, mais de um ano depois, o filme foi quebrando recordes, paradigmas e preconceitos, chegando ao final de sua carreira nos cinemas como uma unanimidade. O melhor de tudo, porém, é que, deixando-se de lado o hype e o marketing, o filme de Peele continua extraordinário, não perdendo seu frescor e sua inteligência mesmo quando revisto - dessa vez sem as surpresas de uma primeira sessão, mas com a possibilidade de perceber cada detalhe imaginado pela mente de Peele.

Estranhamente relegado à categoria "comédia/musical" pelos eleitores do Golden Globe, "Corra!" até pode ser visto como uma sátira hiperbólica aos filmes de horror - normalmente estrelados por atores brancos e recheados de clichês. Porém, em uma visão mais abrangente, o filme de Jordan Peele é não apenas um filme de suspense arrebatador, mas também uma aberta crítica social ao racismo velado da sociedade norte-americana, ainda que em tons surrealistas. Escrito pelo cineasta antes que o movimento "Black Lives Matter" voltasse a ser assunto do momento nos EUA, o roteiro de "Corra!" não evita os elementos mais básicos do cinema de terror, mas os recicla de forma esperta e atual, inserindo em sua trama discussões bastante sérias a respeito da forma como os negros são vistos pelos brancos. A princípio de maneira sutil e aos poucos mais abertamente, a narrativa vai deixando claro ao espectador que a história que está sendo contada diante de seus olhos não é somente a trajetória de um homem acossado pela família da namorada, mas também a angústia de toda uma raça frente a séculos de preconceito e violência. Parece sério demais para um filme com ambições comerciais e que quase foi estrelado por Eddie Murphy, certo? Mas acontece que um dos maiores méritos de "Corra!" é justamente este: falar de um tema absolutamente crucial sem que pareça estar levantando bandeiras ou forjando discursos inflamados.


Filmado em apenas 23 dias, "Corra!" é uma prova (mais uma) de que talento é muito mais importante do que orçamentos generosos. Sem astros de primeira grandeza no elenco e efeitos visuais discretos e inseridos objetivamente, o filme é calcado basicamente no roteiro (em boa parte improvisado pelos atores) e no clima de tensão construído por Peele de forma gradativa e sufocante. No começo, tudo parece apenas estranho e incômodo, quando o protagonista, Chris Washington (Daniel Kaluuya), um jovem fotógrafo, chega até a elegante propriedade dos pais de sua namorada, Rose Armitage (Allison Williams), onde irá passar o fim-de-semana. Apesar de muito bem recebido pelos Armitage, que fazem questão de declarar sua naturalidade em relação ao fato da filha branca namorar um rapaz negro, Chris não consegue ficar completamente à vontade, especialmente por perceber nos empregados da mansão (todos negros) um comportamento bastante perturbador. A situação fica ainda mais bizarra quando ele é hipnotizado pela sogra, Missy (Catherine Keener), e passa a ter certeza de que há algo de muito perigoso acontecendo à sua volta.

Jordan Peele conduz sua trama de maneira a apresentar seus elementos e reviravoltas ao mesmo tempo para Chris e para o espectador, construindo, assim, uma tensão que vai se avolumando até o final, climático e violento. Mesmo o alívio cômico do filme, na figura de Rod (Lil Rel Howery), melhor amigo de Chris, não chega a evitar a sensação de desconforto que o filme transmite desde o princípio. Mérito também da trilha sonora impecável de Michael Abels, do desenho de som instigante, e da interpretação exata de todo o elenco - que inclui Bradley Whitford como Dan, o pai de Rose, um neurocirurgião de fundamental importância para o desfecho da narrativa. O roteiro, igualmente preciso em liberar informações frequentes que só irão fazer completo sentido no final, lembra a série "Além da imaginação" - não por coincidência, Peele assumiu a apresentação de uma nova temporada da série, lançada em 2019. E se o público compra a ideia central da trama, é necessário que a interpretação visceral de Daniel Kaluuya seja considerada fator preponderante para tal: na pele de Chris Washington, o jovem ator simplesmente domina a cena, entregando uma performance corajosa e surpreendente, aliando carisma e talento com garra de veterano. É graças a ele que o suspense funciona e que a plateia chega ao final da sessão com a ótima sensação de ter sido tragada por uma história forte e emocionante - e que, de quebra, ainda faz pensar e suscita discussões importantes. De quantos filmes se pode falar isso ultimamente?

quarta-feira

O CONTO

O CONTO (The tale, 2018, HBO Films, 114min) Direção e roteiro: Jennifer Fox. Fotografia: Denis Lenoir, Ivan Starsburg. Montagem: Anne Fabini, Alex Hall, Gary Levy. Música: Ariel Marx. Figurino: Tricia Gray. Direção de arte/cenários: Debbie DeVilla/Kelly D. Mills. Produção executiva: Julie Parker Benello, Dan Cogan, Abigail Disney, Geralyn White Dreyfos, Wendy Ettinger, Ali Jazayeri, Jayme Lemons, Ross Marosso, Ben McConley, Amy Rodrigue, David Van Eman, Jason Van Eman. Produção: Sol Bondy, Jennifer Fox, Lawrence Inglee, Mynette Louie, Oren Moverman, Simone Pero, Reka Posta, Laura Rister, Lynda Weiman. Elenco: Laura Dern, Ellen Burstyn, Frances Conroy, Common, Jason Ritter, Elizabeth Debicki, Laura Allen, John Heard. Estreia: 20/01/18 (Festival de Sundance)

É preciso muita coragem para transformar um trauma em uma obra de arte. Mais do que coragem, é preciso talento para não fazer de sua obra apenas uma sessão de análise maçante e egocêntrica. E mais do que talento, é preciso sensibilidade para fazer de seus fantasmas a matéria-prima de um produto forte, ousado e ao mesmo tempo poético e perturbador. E a documentarista Jennifer Fox demonstra, em seu primeiro longa de ficção, "O conto", ter todas essas qualidades indispensáveis a quem procura conquistar sua plateia sem abrir mão da inteligência. Inspirada em fatos pouco agradáveis da vida da própria diretora e roteirista, a produção da HBO, acabou sendo o filme certo na hora certa: ecoando o movimento #MeToo surgido em Hollywood depois de uma série de denúncias sobre assédio sexual, "O conto" serve como a ilustração perfeita de um momento crucial na indústria do entretenimento - mas nem por isso deixa de ser, acima de tudo, um filme excepcional, tanto em termos políticos quanto artísticos. Não à toa, foi uma das produções mais elogiadas de 2018, especialmente devido à atuação gigantesca de Laura Dern, em um dos melhores momentos de sua vitoriosa carreira.

"O conto" foge de uma narrativa convencional ao optar por fazer de sua protagonista, Jennifer, os olhos e a memória da trama que vai se desenrolando diante dos olhos do público. Da mesma forma que as recordações da personagem vão surgindo - e muitas vezes substituindo outras até então arraigadas em seu subconscientes -, a plateia vai descobrindo, junto com ela, a verdade sobre fatos escondidos sob a névoa de um romantismo manipulado. O roteiro e a direção, impecáveis, equilibram o realismo com o lúdico, intercalando passado, presente e a imaginação com delicadeza ímpar. É uma providência de extrema importância, uma vez que o tema do filme é indigesto e francamente triste - mas retratado com a sofisticação e a sensibilidade de quem sabe o que está falando. A coragem de Jennifer Fox em expor uma experiência tão dolorosa é de suprema importância social, mas seu maior mérito é indubitavelmente artístico: mesmo com origem no universo dos documentários, ela transita com desenvoltura na linguagem de ficção, evitando as armadilhas do melodrama e demonstrando grande senso de ritmo e fluência - além de uma habilidade rara de criar personagens complexos e verossímeis.


Assim como a Jennifer da vida real, a protagonista de "O conto", Jenny, é uma documentarista bem-sucedida. Vive um relacionamento estável com o fotógrafo Martin (Common), dá aulas em uma universidade e está trabalhando em um filme sobre abuso sexual em mulheres de países do terceiro mundo. Sua rotina é quebrada quando sua mãe, Nettie (Ellen Burstyn) lhe telefona, preocupada: ela acaba de descobrir, entre antigos pertences da filha, um trabalho escolar onde a então adolescente de 13 anos descrevia um relacionamento amoroso com um homem mais velho. Sem dar muita importância às angústias da mãe, Jennifer relê seu conto e começa a relembrar acontecimentos de sua infância, quando, ainda criança (e interpretada por Isabelle Nélisse ), foi envolvida em um jogo de sedução por sua professora de equitação, Sra. G (Elizabeth Debicki) e um instrutor de ginástica que trabalhava a seu lado, Bill Allen (Jason Ritter). Aos poucos suas memórias começam a ficar mais claras e ela percebe que, apesar de realmente ter considerado o fato como uma história de amor, sua inocência foi um fator determinante para uma série de abusos sexuais. Nesse caminho, ela reencontra personagens importantes de seu passado, inclusive outras mulheres que também podem ter sido vítimas da dupla.

Jennifer Fox conduz seu filme como um pesadelo à luz do dia. Sem apelar para clichês visuais, ela penetra no sofrimento de sua protagonista sem forçar o espectador a tirar suas conclusões de forma antecipada. Sua narrativa suave, que contrasta com a dureza das revelações que vão surgindo durante o trajeto de Jenny. Sem demonizar os abusadores ou carregar nas tintas de seus desvios de caráter, ela apresenta inclusive uma certa condescendência em relação a ambos, até o desfecho visceral e adequado como uma catarse. Filmando sempre de forma a manter a elegância e a sensibilidade (mesmo diante de situações desconfortáveis), Fox mostra que não é preciso ser panfletária ou radical para se tratar de assuntos delicados - seu filme é um grito de revolta, sim, mas orientado de forma correta e contundente. Se Jenny julgava ter saído incólume de suas experiências infantis, o filme de Jennifer demonstra que nem sempre as cicatrizes são visíveis ou óbvias - mas são indeléveis e, mesmo soterradas pelo tempo, jamais curam completamente. "O conto" é um filme obrigatório, não apenas pelo tema, mas também porque é dramaturgia de primeira qualidade, antenado com seu tempo e certamente destinado a tornar-se um pequeno clássico. Bravo!

terça-feira

CAPITÃO FANTÁSTICO

CAPITÃO FANTÁSTICO (Captain Fantastic, 2016, Bleeker Street/ShivHands Pictures, 118min) Direção e roteiro: Matt Ross. Fotografia: Stéphane Fontaine. Montagem: Joseph Krings. Música: Alex Somers. Figurino: Courtney Hoffman. Direção de arte/cenários: Russell Barnes/Tania Cupczack, Susan Magestro. Produção executiva: Declan Baldwin, Nimitt Mankad. Produção: Lynette Howell Taylor, Monica Levinson, Jamie Patricof, Shivani Rawat. Elenco: Viggo Mortensen, George McKay, Frank Langella, Ann Dowd, Kathryn Hahn, Samantha Isler, Annalise Basso, Nicholas Hamilton, Missy Pile, Steve Zahn. Estreia: 23/01/16 (Festival de Sundance)

Indicado ao Oscar de Melhor Ator (Viggo Mortensen)

Ben Cash cria seus seis filhos longe de qualquer influência de um mundo capitalista a que ele considera pernicioso e fascista. Educados pelos pais, que lhe indicam leituras, os ensinam a caçar e preparar o próprio alimento, a discutir qualquer assunto com segurança e desafiar o sistema sempre que possível, Cash mora com a família em um ônibus, no meio de uma floresta, e dentre suas excentricidades, está comemorar o dia de Noam Chomsky ao invés do Natal e, ocasionalmente, roubar comida dos supermercados como forma de protesto e autopreservação. A prole - dividida entre adolescentes e crianças - segue uma rígida rotina de exercícios físicos, atividades intelectuais e alimentação saudável, sobrevivendo à margem da sociedade de consumo condenada por seu patriarca, e sua união aponta para um núcleo familiar sadio e feliz. Porém, quando Leslie, a mulher de Ben, sofre uma séria crise nervosa e precisa voltar a conviver com os pais e a irmã, ele se vê obrigado a introduzir os meninos em um universo do qual ele sempre os quis proteger e afastar - e testemunha um inevitável choque cultural.

Em "Capitão Fantástico", segundo longa-metragem dirigido pelo também ator Matt Ross, o ousado Ben Cash é interpretado por Viggo Mortensen, em um trabalho inspiradíssimo que lhe rendeu uma indicação ao Oscar de melhor ator. Na pele de um homem que busca incansavelmente uma sociedade mais justa ao orientar seus próprios filhos a seguirem uma conduta mais próxima da natureza e dos valores humanistas, Mortensen parece ter encontrado o papel de sua vida: é difícil vê-lo em cena e não acreditar em cada um de seus diálogos, de seus sentimentos, de suas atitudes. Em um mundo cada vez mais egocêntrico e avassaladoramente competitivo, seu personagem é um sopro de verdade e resistência, ainda que nem sempre seus métodos possam ser considerados louváveis. É irresistível pensar que Ben está coberto de razão em distanciar sua prole de um mundo doente - mas será que não é sua função de pai lhes dar o direito de escolha? E por que as crianças são educadas dentro de suas convicções, sem chance de discordância? E não é possível que a doença de sua mulher seja consequência de uma vida aparentemente saudável mas alternativa a ponto do segregacionismo e isolamento social? Mortensen dá vida à Ben com sensibilidade e maturidade, e o roteiro de Ross abre espaço para discussões bastante interessantes, e acerta ao jamais abandonar seu principal objetivo: entreter o público com uma trama delicada, emocionante e por vezes bastante engraçada.


Logo nas primeiras cenas, Matt Ross deixa claro que o dia-a-dia da família Cash não é dos mais tediosos: a disciplina que exige dos filhos não é apenas cultural, mas também extremamente focada em atividades físicas, praticadas por todos, desde o mais velho, Bodevan (George McKay), até os menores. Todos eles também são leitores vorazes - ficção, filosofia, história, sociologia e até sexualidade são assuntos banais nas discussões familiares - e questionadores do status quo. São capazes de discutir a Declaração de Direitos Universais e "Lolita", de Vladimir Nabokov, e rejeitam a alimentação equivocada dos norte-americanos. Ben os trata de igual para igual, sem tratá-los com condescendência ou superioridade. São crianças felizes, acima de tudo, mas seu universo particular sofre uma ruptura brusca quando seu avô, Jack (Frank Langella), resolve entrar na Justiça pela guarda de todos: segundo ele, as crianças são prejudicadas por sua falta de convívio com pessoas de sua idade e privadas de uma educação convencional que lhes será útil no futuro. A situação fica ainda mais delicada quando Bodevan revela ao pai seu desejo de cursar uma universidade - desejo compartilhado inclusive por sua mãe.

Não há cenas desnecessárias em "Capitão Fantástico": seu roteiro é preciso e eficaz é construído exemplarmente a modo de apresentar à plateia seus personagens, seus conflitos e suas questões sem que nada pareça aleatório ou soe forçado. O elenco infantil tira de letra o desafio de representar membros de uma família que tem ecos do movimento hippie e se desenha como uma utopia moderna, e Viggo Mortensen aparece como o maestro de uma sinfonia comovente e, em certos momentos, bastante divertida - o embate entre a cultura natural e intelectual dos Cash com a sociedade capitalista e ególatra do resto dos familiares tem cenas preciosas. Matt Ross não busca a emoção rasteira ou a discussão maniqueísta: seus personagens são complexos e falíveis, e embora Ben seja o herói da estória, ele tampouco está absolutamente correto e acima de críticas. O diretor equilibra com presteza todos os elementos de sua trama, constrói uma atmosfera sólida e crível, e consegue, com inteligência, criar um desfecho que torna tudo ainda mais humano e honesto - mas que pode não agradar aos mais radicais. Elogiadíssimo pela crítica, principalmente pelo desempenho de Mortensen, "Capitão Fantástico" é, sem favores, um dos melhores filmes de sua temporada, e uma pérola a ser constantemente revisitada como um presente para a alma.

segunda-feira

CÉU AZUL

CÉU AZUL (Blue sky, 1994, Orion Pictures, 101min) Direção: Tony Richardson. Roteiro: Rama Laurie Stagner, Arlene Sarner, Jerry Leitchling, estória de Rama Laurie Stagner. Fotografia: Steve Yaconelli. Montagem: Robert K. Lambert. Música: Jack Nitzsche. Figurino: Jane Robinson. Direção de arte/cenários: Timian Alsaker/Gary John Constable. Produção: Robert H. Solo. Elenco: Jessica Lange, Tommy Lee Jones, Powers Boothe, Carrie Snodgress, Amy Locane, Chris O'Donnell, Anna Klemp. Estreia: 24/8/94

Vencedor do Oscar de Melhor Atriz (Jessica Lange)
Vencedor do Golden Globe de Melhor Atriz/Drama (Jessica Lange) 

Na longa lista de males que vem para o bem na história de Hollywood, "Céu azul" merece um lugar de destaque. Filmado no verão norte-americano de 1990 e pronto para ser lançado em 1991, o último filme do diretor Tony Richardson acabou ficando na prateleira por mais três anos devido à falência de seu estúdio (Orion Pictures) e só chegou aos cinemas em 1994. A má notícia é que, a essa altura, o cineasta já havia morrido e não chegou a ver seu filme estrear. A boa notícia é que, lançado em um ano particularmente fraco de grandes desempenhos femininos, o filme empurrou sua estrela Jessica Lange em direção a um Golden Globe e a seu segundo Oscar (o primeiro na categoria principal). Sua premiação foi absolutamente justa: é Lange, com sua sensualidade e sua precisão em interpretar mulheres à beira do precipício, é o corpo e a alma de uma produção fraca e, não fosse por sua presença magnética, facilmente esquecível. Indeciso entre um drama familiar e conflitos políticos, o roteiro acaba por não explorar a contento nenhum dos dois enfoques e, em vez de ser dois filmes em um, o resultado final é apenas o resultado de duas metades que nem sempre se comunicam com coerência.

Uma heroína com a sensualidade trágica de uma Ava Gardner e a densidade psicológica de um personagem de Tennessee Williams, a protagonista de "Céu azul" é Carly Marshall, a esposa bipolar de um engenheiro nuclear que trabalha para o governo dos EUA. No início da década de 60, antes da morte de Kennedy e do trauma da guerra do Vietnã, o afável Hank (Tommy Lee Jones) é parte fundamental dos estudos do país em relação a testes atômicos - mas é sua mulher a mais perigosa das armas com as quais ele tem de lutar: transferido do Havaí para o Alabama (em boa parte por causa do comportamento errôneo de Carly), ele não precisa apenas lidar com suas crises nervosas, mas também com o efeito que ela causa aos homens a seu redor. No novo lar, por exemplo, ela tira do sério o oficial Vince Johnson (Powers Boothe), superior de Hank, homem casado e pai de um adolescente, Glenn (Chris O'Donnell), que se envolve justamente com a filha mais velha do casal, Alex (Amy Locane). O relacionamento escandaloso entre Carly e Vince - que fica evidente a todos que os rodeiam - acaba tendo consequências também na vida profissional de Hank, que testemunha um acidente e se vê no centro de um jogo de interesses políticos em que a conduta de sua mulher é peça fundamental.


Único roteiro escrito por Rama Laurie Stagner até hoje, "Céu azul" é livremente baseado em sua mãe, que também viveu um conturbado relacionamento com o marido militar na década de 60. É perceptível seu carinho no desenho da protagonista, uma personagem complexa e rica em nuances, todas muito bem exploradas por uma Jessica Lange particularmente inspirada. Carly não é alguém com quem se possa simpatizar completamente - seu comportamento chega às raias da irresponsabilidade -, mas Lange injeta humanidade e alma a cada cena, enfatizando suas carências e inseguranças e a aproximando do público. O problema do filme é sua tentativa de contar duas histórias paralelas sem que haja maior aprofundamento em nenhuma delas - o que a edição apressada apenas deixa ainda mais claro. A trama que envolve Hank e seu embate com militares superiores a respeito da radiação nuclear que deixa vítimas inesperadas é interessante, mas praticamente some diante da imponência da atuação da atriz principal, que engole a tudo e a todos. E tampouco ajuda o fato de Tommy Lee Jones não ser exatamente um ator carismático e o desfecho ser tão anticlimático.

Em poucas palavras, "Céu azul" é um filme que existe e se mantém graças ao desempenho notável de uma atriz no auge do talento e a uma personagem que lhe permite explorar uma variedade imensa de possibilidades. Não é o filme marcante que poderia ser com um roteiro um pouco menos superficial ou uma direção mais segura - o que é de surpreender levando-se em conta a longa e premiada carreira de Tony Richardson. Não fosse a performance oscarizada de Jessica Lange - e até a sorte de ter sido lançado em um período favorável à sua premiação, poderia se tornar facilmente esquecível e relegado à história como uma produção quase medíocre. Salva-se como uma sessão descompromissada e uma aula de interpretação feminina, mas é apenas isso.

domingo

A CASA DO FIM DO MUNDO

A CASA DO FIM DO MUNDO (A home at the end of the world, 2004, Warner Independent Pictures, 97min) Direção: Michael Mayer. Roteiro: Michael Cunningham, romance de sua autoria. Fotografia: Enrique Chediak. Montagem: Andrew Marcus, Lee Percy. Música: Duncan Sheik. Figurino: Beth Pasternak. Direção de arte/cenários: Michael Shaw/Mark Steel. Produção executiva: Michael Hogan, John Sloss. Produção: John N. Hart Jr., Tom Hulce, Pamela Koffler, Katie Roumel, Jeffrey Sharp, Christine Vachon, John Wells. Elenco: Colin Farrell, Dallas Roberts, Robin Wright Penn, Sissy Spacek, Erik Smith, Harris Allan. Estreia: 09/6/94

Michael Cunningham é um excelente escritor. Vencedor do Pulitzer por "As horas" - que deu origem ao filme vencedor do Oscar de melhor atriz (Nicole Kidman) - e autor devidamente reconhecido pela qualidade consistente de seus personagens, ele achou que poderia, também, virar roteirista de cinema. Porém, uma coisa é escrever um romance, com espaço para divagações e aprofundamentos psicológicos e outra bem diferente é colocar em imagens as situações e personagens imaginadas - especialmente quando não se tem muito tempo para isso. É por isso que "A casa do fim do mundo", baseado em um livro escrito por ele mesmo, não funciona como poderia em sua transição para as telas. Enquanto "As horas" foi adaptado pelo dramaturgo David Hare, acostumado com a linguagem dramática e experiente em dotar de ritmo até mesmo um enredo truncado por uma estrutura que comportava três tempos diferentes, a versão para as telas de "Uma casa no fim do mundo" (título bem mais apropriado, apesar da pequena diferença) não chega nem aos pés do material original, esvaziando seus personagens e a trama central e banalizando sua discussão a respeito de amizade, amor e definições de família.

Prejudicado pela inexperiência de seu diretor, Michael Mayer, estreando em longas-metragem, e pelo roteiro superficial (uma decepção, haja visto que Cunningham é um escritor comprovadamente capaz), "A casa do fim do mundo" não atinge nem de longe todo o seu potencial. Começando pelas caracterizações um tanto óbvias e preguiçosas, passando por um desenvolvimento sonolento e culminando com um final anticlimático, o filme desperdiça bons atores em uma produção que nem ao menos tenta ser ousada ou corajosa. Os personagens, riquíssimos nas páginas do romance, parecem apenas estereótipos na tela, clichês ambulantes que não conseguem cativar o espectador ou sequer interessá-lo em uma trama que corre aos tropeções, sem nenhuma sutileza ou emoção. Some-se a isso a falta de carisma de Dallas Roberts - um dos protagonistas - e a falta de química entre Colin Farrell e Robin Wright (então ainda assinando com o sobrenome de Sean Penn) e o resultado é desastroso. Só não é pior porque, apesar da direção sem inspiração, Farrell e Wright são sensacionais e compensam (quase) todos os deslizes.


Assim como no livro, a estória começa mostrando o início da amizade entre Bobby e Jonathan, dois adolescentes que, em 1974, estão prestes a se aventurar no mundo das drogas e do sexo. Bobby é traumatizado pela morte trágica do irmão mais velho, e vive com o pai alcóolatra desde que perdeu a mãe - o que o faz aproximar-se ainda mais de Alice (Sissy Spacek), a mãe de Jonathan. O relacionamento dos rapazes vai ficando cada vez mais íntimo (em todos os quesitos) e eles se separam apenas quando Jonathan abandona Cleveland para estudar em Nova York. Alguns anos mais tarde, Bobby (já na pele de Colin Farrell, um tanto deslocado no papel) resolve procurar o velho amigo e tentar a vida longe da zona de conforto. É então que chega ao apartamento onde Jonathan (interpretado pelo novato Dallas Roberts) vive com Clare (Robin Wright Penn), uma mulher um pouco mais velha com quem ele mantém um relacionamento pouco tradicional. Logo Bobby e Clare se envolvem - a despeito dela ser apaixonada por Jonathan - e os três passam a viver juntos, como uma atípica família. As coisas avançam quando Clare fica grávida e todos eles resolvem se mudar para uma propriedade afastada, perto de Woodstock.

Os lances dramáticos da trama, costurados com delicadeza no romance, são jogados ao espectador sem muita parcimônia, na adaptação feita por Cunningham. Todas as nuances que envolvem o triângulo amoroso central - Bobby ama Clare, que ama Jonathan, que ama Bobby - são desenvolvidos quase com medo, sem aprofundamento algum. Temas como a homossexualidade de Jonathan, seu relacionamento com Bobby e a doença que os aproxima ainda mais, são tratados sem a delicadeza esperada - assim como a relação entre Clare e Bobby, que soa abrupta e inverossímil. O próprio Bobby é dono de uma inocência tão grande que é difícil de acreditar, principalmente porque Colin Farrell - um ótimo ator, fato já demonstrado diversas vezes - soa desconfortável em boa parte do filme. Além disso, tudo parece muito fácil para os protagonistas: não há conflitos, não há grandes problemas (ao menos na forma como tudo é tratado pelo roteiro) e até o final é completamente incoerente. Uma pena que um livro tão formidável tenha sido adaptado com tão pouco cuidado justamente por seu autor. Poderia ser mais uma obra-prima, mas é apenas um filme muito aquém de suas possibilidades.

sábado

SONATA DE OUTONO

SONATA DE OUTONO (Hostsonaten/Autumn Sonata, 1978, Personafilms, 89min) Direção e roteiro: Ingmar Bergman. Fotografia: Sven Nykvist. Montagem: Sylvia Ingmarsdotter. Figurino: Ingher Pehrsson. Direção de arte: Anna Asp. Elenco: Ingrid Bergman, Liv Ullman, Lena Nyman, Halvar Bjork. Estreia: 08/8/78

2 indicações ao Oscar: Atriz (Ingrid Bergman), Roteiro Original
Vencedor do Golden Globe de Melhor Filme Estrangeiro 

Apesar de dividirem o mesmo sobrenome e serem dois dos maiores ícones que o cinema sueco fabricou em sua história, o cineasta Ingmar Bergman e a atriz Ingrid Bergman se encontraram apenas uma única vez nos sets de filmagem. O destino quis, porém, que esse encontro fosse mais do que especial: não apenas marcou o último trabalho da estrela, que morreu de câncer em 1982, como também retratava, de forma incômoda, boa parte de seus sentimentos em relação à sua história pessoal. Assim como Ingrid abandonou sua família para viver seu romance com o cineasta italiano Roberto Rossellini, no final dos anos 1940, sua personagem em "Sonata de outono" é uma mãe cujo relacionamento com a filha é marcado por ressentimentos e rancores oriundos de sua opção pela carreira em detrimento da maternidade. Falando sueco nas telas pela primeira vez em onze anos e entregando uma atuação visceral, Bergman arrebatou uma indicação ao Oscar de melhor atriz por seu desempenho e conquistou os prêmios do National Board of Review, da National Society of Film Critics e dos críticos de Nova York. Tão generosa receptividade teve muito a ver com o prestígio do diretor e da atriz, mas o fato é que é impossível ficar incólume às devastadas emoções oferecidas pelo filme em pouco menos de noventa minutos.

Explorando ao máximo a estrutura teatral de seu roteiro, com marcações bem definidas e ênfase nos diálogos, fortes e emocionais, "Sonata de outono" se beneficia ao máximo com o talento de seu elenco - Bergman e Liv Ullman à frente - e a fotografia espetacular de Sven Nykvist, seu habitual colaborador. Nykvist registra com sensibilidade tanto os exteriores bonitos por natureza da Noruega - onde o cineasta se refugiou por um tempo devido a problemas com o fisco sueco - quanto as cores quentes que refletem o estado de espírito de suas protagonistas - em especial  o vermelho, que enfatiza a distância entre mãe cosmopolita e filha retraída. Embaladas por uma trilha sonora que inclui Chopin, Bach e Handel, as personagens centrais se enfrentam em embates dolorosos e cruéis, testemunhados apenas pela câmera discreta do diretor e pelo público, agoniado pelas palavras não ditas e pelas verdades dilacerantes que as atingem como chicotadas. Se em seus primeiros minutos o filme passa uma atmosfera de doce reencontro familiar, aos poucos vai deixando claro que, apesar das aparências, há muito a ser resolvido entre todos para que a paz enfim reine (ou não).


Com sua costumeira classe, Ingrid Bergman vive Charlotte Andergast, uma pianista clássica internacionalmente reconhecida que, depois de quase uma década, finalmente aceita ser recebida na casa de sua filha mais velha, Eva (Liv Ullman), que vive com o marido, Viktor (Halvar Bjork), em uma cidadezinha costeira, onde ele é pastor. Recuperando-se da morte do segundo marido, a quem acompanhou em seus últimos dias, Charlotte imagina um período de tranquilidade e descanso de suas excursões e compromissos, mas assim que chega é surpreendida com a presença de sua outra filha, Helena (Lena Nyman), que sofre de uma doença mental grave e que ela julgava estar internada. Seu reencontro com as duas faz com que a pianista seja obrigada a confrontar fantasmas do passado, principalmente quando Eva faz questão de aproveitar a visita da mãe para desabafar a respeito dos traumas originados pela ausência constante da figura materna na infância e adolescência.

O público acostumado à filmografia de Ingmar Bergman sabe de suas inclinações psicanalíticas, e "Sonata de outono" não foge à regra. Os longos e profundos diálogos transbordam sensibilidade e dor, mas a poesia das imagens criadas pelo cineasta transformam a experiência em uma sessão de análise das mais instigantes e incômodas. Eva, a personagem de Liv Ullman vai crescendo a cada cena, acumulando coragem para, no clímax, disparar as verdades que a vem destroçando desde criança - e Charlotte, sua mãe, transita entre sua zona de conforto (enterrar as mágoas e fingir uma felicidade que talvez não exista) e o medo de ver-se como um monstro, responsável pela infelicidade de quem deveria cuidar. Bergman filma o embate entre mãe e filha com delicadeza e plasticidade impecável, jamais apelando para o sentimentalismo mas enfatizando, sempre que possível, a distância (física e emocional) de suas protagonistas. O resultado é um drama psicológico e familiar dos mais impactantes - e um dos filmes mais importantes de um cineasta de valor inestimável à sétima arte.

sexta-feira

BEM-VINDOS A MARWEN

BEM-VINDOS A MARWEN (Welcome to Marwen, 2018, Universal Pictures/DreamWorks, 116min) Direção: Robert Zemeckis. Roteiro: Robert Zemeckis, Caroline Thompson. Fotografia: C. Kim Miles. Montagem: Jeremiah O'Driscoll. Música: Alan Silvestri. Figurino: Joanna Johnston. Direção de arte/cenários: Stefan Dechant/Hamish Purdy. Produção executiva: Jacqueline Levine, Jeff Malmberg. Produção: Cherylanne Martin, Jack Rapke, Steve Starkey, Robert Zemeckis. Elenco: Steve Carell, Leslie Mann, Diane Kruger, Janelle Monáe. Estreia: 21/12/18

Em 2015, Robert Zemeckis transformou o documentário "O equilibrista" (2008) no drama "A travessia", estrelado por Joseph Gordon-Levitt e amargou um dos raros fracassos de bilheteria de uma carreira repleta de êxitos incontestáveis, como a trilogia "De volta para o futuro" e "Forrest Gump: o contador de histórias", que lhe deu o Oscar de melhor filme e direção em 1995. Depois de novamente decepcionar comercialmente com "Aliados" (2016), drama de guerra que, mesmo com a presença de Brad Pitt e Marion Cottilard não chamou a atenção do público, ele voltou a buscar na vida real a inspiração para seu trabalho. "Bem-vindos a Marwen", que estreou no final de 2018 nos cinemas americanos, é a dramatização do documentário "Marwencol", dirigido por Jeff Malmberg e vencedor de diversos prêmios da crítica desde seu lançamento. A fascinante história de um homem que tenta recobrar a sanidade mental através da criação de um mundo de fantasia protagonizado por bonecos encontrou, em Zemeckis, o diretor ideal - mas acabou se tornando o terceiro malogro consecutivo em sua trajetória. Completamente ignorado até pela Academia, que esnobou seus espetaculares efeitos visuais, o filme estrelado pelo cada vez melhor Steve Carell já pode ser considerado uma das mais injustiçadas produções de seu tempo - afinal, apesar de tudo, é um trabalho belo e sensível, que reitera o talento do cineasta em equilibrar com maestria técnica e emoção.

Os primeiros minutos de "Bem-vindos a Marwen" dão a impressão de que Zemeckis voltou a brincar  com suas técnicas de captura de movimento, que marcou uma fase de sua carreira na primeira década dos anos 2000. Na sequência de abertura, um capitão norte-americano sofre um acidente com seu avião e se vê prestes a morrer nas mãos de nazistas quando é salvo por um grupo de mulheres armadas, lideradas pela corajosa Wendy. Toda a cena é apresentada em forma de animação, e logo se percebe que a situação narrada é fruto da imaginação de Mark Hogancamp (Steve Carell), um homem que tenta esquecer de um traumático incidente, quando foi violentamente espancado por um grupo de neonazistas na saída de um bar. Preso à sua nova realidade, ele mergulha sem medo na confecção de uma narrativa na qual ele mesmo é um corajoso capitão do exército que conta com a ajuda de um time de mulheres - todas inspiradas em pessoas reais - e que luta contra os alemães durante a II Guerra, em uma cidadezinha belga chamada Marwen. Enquanto espera o julgamento de seus agressores, Mark se encanta com a nova vizinha, Nicol (Leslie Mann), que passa a fazer parte de sua imaginação fértil, assim como a hostil Deja Thoris (Diane Kruger), uma bruxa que serve como uma espécie de conselheira e terapeuta.


O roteiro de "Bem-vindos a Marwen" é um achado: ao mesmo tempo em que sensibiliza o espectador com o drama de Mark (interpretado com sutilezas por Carell, em uma atuação inspiradíssima), aproveita para demonstrar o domínio que tem das técnicas de animação, oferecendo à plateia momentos divertidos e violentos com os bonecos manipulados pelo protagonista. Os efeitos visuais são perfeitos - e criados a partir da ação dos próprios atores, em um processo fascinante que impede a sensação de frieza que muitas vezes acompanha as produções mais ambiciosas. O grande achado do diretor, porém, é a forma encontrada de transmitir, através dos bonecos, a angústia e a personalidade complexa do personagem central: aos poucos o público vai compreendendo a extensão de seu problema e de como seu hobby é, mais do que uma diversão, uma terapia que pode lhe salvar da depressão mais absoluta. Sem estender-se desnecessariamente em sua trama, Zemeckis encontra o contraponto ideal entre a realidade e a ilusão, convidando a audiência a uma viagem inusitada e emocionante, que foge dos clichês graças ao talento de todos os envolvidos - com especial destaque à trilha sonora de Alan Silvestri, que evoca docemente todas as fases mentais de Mark.

Talvez o motivo do fracasso de "Bem-vindos a Marwen" seja justamente sua delicadeza.  Acostumados ao excesso de informações dos blockbusters e à total falta de sutileza das produções dos grandes estúdios, é bem possível que os espectadores não tenham se interessado por um filme que fala de pequenas emoções, de pessoas feridas em seu mais íntimo e do poder da imaginação como parte da cura de um trauma inimaginável. Azar de quem perdeu a oportunidade de ter contato com uma pequena pérola do cinema hollywoodiano - que, vez ou outra, ainda consegue acertar no alvo quando se trata contar boas histórias de forma criativa. Que o tempo lhe faça justiça e que o filme se transforme, com o passar do anos, no cult movie que merece ser.

quinta-feira

A BELA DA TARDE

A BELA DA TARDE (Belle de jour, 1967, Robert et Raymond Hakim Productions, 100min) Direção: Luis Buñuel. Roteiro: Luis Buñuel, Jean-Claude Carrière, romance de Joseph Kessel. Fotografia: Sacha Vierny. Montagem: Louisette Houtecoeur. Figurino: Hélène Noury. Direção de arte/cenários: Robert Clavel. Produção: Raymond Hakim, Robert Hakim. Elenco: Catherine Deneuve, Jean Sorel, Michel Piccoli, Geneviève Page, Pierre Clementi, Françoise Fabian. Estreia: 24/5/67
 
Não é difícil entender o fascínio que "A bela da tarde" vem despertando nos cinéfilos do mundo inteiro desde sua estreia, em 1967. Além de contar com a beleza estonteante de Catherine Deneuve - no auge da carreira - e ser dirigido pelo prestigiado Luis Buñuel, mestre do surrealismo no cinema, o filme, que ganhou o Leão de Ouro no Festival de Veneza, ficou décadas longe dos olhos do público, devido a problemas de direitos autorais e, até 1995, através de uma campanha liderada por Martin Scorsese, manteve inalterada sua aura de filme cult. Quando voltou a seu lugar de direito - os braços da plateia e o coração dos críticos - ganhou uma nova geração de fãs e reabriu discussões a respeito de seus simbolismos e questionamentos. Maior sucesso comercial da carreira de Buñuel e admirado até mesmo por Alfred Hitchcock - o que não é nenhuma surpresa, haja visto o histórico do cineasta inglês a respeito de louras sensuais -, "A bela da tarde" é, também, o mais acessível dos trabalhos do diretor espanhol: mesmo que faça uso de elementos narrativos pouco convencionais em alguns momentos, é uma produção muito menos complexa do que, por exemplo, "O anjo exterminador" ou "Esse obscuro objeto do desejo" (77), dois dos mais ambíguos de seus filmes - e, sintomaticamente, dois de seus maiores êxitos profissionais.

Polêmico e sensual, "A bela da tarde" é, também, um presente para estudantes de psicologia, que vem, desde seu lançamento, se prestando a longos debates a respeito de suas metáforas visuais e sonoras - além da riqueza de seus personagens, desde a protagonista até os coadjuvantes mais efêmeros na trama. Construído alternando uma atmosfera de sonho com uma realidade crua, o roteiro de Buñuel e Carrière segue uma estrutura convencional, mas que abre espaço para digressões psicanalíticas e/ou sexuais que casavam com perfeição com o momento histórico e social pelo qual passava o mundo (e mais precisamente a Europa) no final dos anos 60. Retratando a hipocrisia da alta sociedade e questionando o papel da mulher como puro objeto, o filme subverte as expectativas e apresenta uma heroína que vai contra os ideais femininos mais clássicos. Séverine (interpretada por uma Catherine Deneuve no limite entre a castidade e o furor) pode até parecer como a mais devotada e compreensiva esposa, mas por dentro é um vulcão de desejos secretos, os quais exorciza primeiro em forma de sonhos eróticos pouco banais, e depois através de uma atitude radical: a prostituição de luxo. O que pode parecer apenas a realização de voyeurismo barato, porém, torna-se material rico de possibilidades nas mãos inteligentes e iconoclastas de Buñuel.


Fotografado com requinte pelo experiente Sacha Vierny, "A bela da tarde" já mostra a que veio na primeira sequência, em que um idílico momento entre um atraente e jovem casal dá lugar a uma situação de violência e submissão sexual. Logo se descobre que o acontecimento é apenas parte dos sonhos de Séverine, que vive uma relação tranquila e asséptica com o marido, Pierre (Jean Sorel). Os dois chegam a dormir em camas separadas, e seu casamento é o retrato do tédio amoroso - o que não reflete os constantes desejos da esposa, recheados de fetiches pouco triviais. A solução que ela encontra para dar vazão a tais sentimentos sem que precise acabar com seu relacionamento surge na figura de Madame Anais (Geneviève Page), a dona de uma casa de alta prostituição, que a recebe de braços abertos. Linda, sexy e exalando classe, Séverine recebe a alcunha de A Bela da Tarde - ela necessariamente precisa deixar o trabalho às cinco da tarde para voltar à vida normal. Nos períodos em que passa na casa de Madame Anais, Séverine entra em contato com clientes com os mais variados tipos de fantasia - até que encontra Marcel (Pierre Clementi), um marginal do submundo que se torna obcecado por ela e ameaça quebrar a harmonia entre as aparências e a realidade.

Com simbolismos facilmente decodificáveis até para o menos experiente dos espectadores, Luis Buñuel conduz a trajetória de Séverine como uma espécie de coleção de anedotas a respeito de seus clientes - todos levemente bizarros e ao menos um francamente assustador - e suas aspirações sensuais. Apesar da beleza de Deneuve, o filme não se permite em ser um inventário de taras e cenas de sexo gratuitas, muito pelo contrário: a atriz só aparece nua em uma cena (envolta em um véu preto) e o erotismo é apenas sugerido, nunca explícito. Através de sons e imagens cuidadosamente escolhidas, o cineasta convida a plateia a penetrar em um mundo tanto excitante quanto sombrio - mesmo que o filme jamais pese a mão na violência e no estudo da psique humana. Ao optar por apenas contar uma história e apresentar seus personagens, sem julgá-los ou forçar uma compreensão óbvia, "A bela da tarde" consegue ser, ao mesmo tempo, um belo e elegante drama sobre sexo e uma obra de arte que atravessou gerações e continua, ainda hoje, atual e visualmente atraente. Seu final, em aberto, apenas confirma tudo que foi mostrado antes: uma obra inteligente e perspicaz, mas nem por isso vazia e superficial. Um belo e indispensável filme - uma porta de entrada para a curiosa filmografia de seu irrequieto diretor.

quarta-feira

OPERAÇÃO FRONTEIRA

OPERAÇÃO FRONTEIRA (Triple frontier, 2019, Netflix/Atlas Entertainment, 125min) Direção: J.C. Chandor. Roteiro: Mark Boal, J.C. Chandor, estória de Mark Boal. Fotografia: Roman Vasyanov. Montagem: Ron Patane. Música: Disasterpiece. Figurino: Marlene Stewart. Direção de arte/cenários: Greg Berry/Jay Hart. Produção executiva: Kathryn Bigelow, Mark Boal, Anna Gerb, Thomas Hayslip, Andrés Calderon. Produção: Neal Dodson, Alex Gartner, Andy Horwitz, Charles Roven. Elenco: Ben Affleck, Oscar Isaac, Charlie Hunnam, Garret Hedlund, Pedro Pascal, Adria Arjona. Estreia: 06/3/2019

Em abril de 2017, o projeto de um filme de ação escrito por Mark Boal (vencedor do Oscar por "Guerra ao terror") saiu definitivamente dos planos da Paramount, que, durante o processo de pré-produção, contava com Tom Hardy e Channing Tatum nos papéis principais. A dupla de astros não gostou das mudanças feitas no roteiro e pularam fora do barco, iniciando um processo de deserção que culminou também com a saída da diretora Kathryn Bigelow, que preferiu dedicar seu tempo ao polêmico "Detroit em rebelião" (2017). Um mês depois, a Netflix, empenhada em adquirir prestígio com suas produções próprias, resolveu arriscar e bancar o filme, dessa vez já com os nomes de Ben Affleck e Oscar Isaac garantidos. Com a volta de Charlie Hunnam - que retornou ao projeto depois de uma desistência anterior - ao elenco e à aquisição de Garret Hedlund e Pedro Pascal, os cinco personagens centrais encontraram intérpretes ideais. A grande surpresa, no entanto, ficou com o anúncio do nome do diretor. Conhecido por obras mais cerebrais, como "Margin call: o dia antes do fim" (2011) e "O ano mais violento" (2014), o cineasta J. C. Chandor parecia um tanto inadequado para uma produção calcada mais na adrenalina do que em palavras e sutilezas. Mas como nem só de cartas marcadas vive a indústria, "Operação Fronteira" acabou se saindo melhor que a encomenda: é um filmaço que nada deve às produções dos grandes estúdios - e é, de longe, um dos melhores trabalhos da carreira de Ben Affleck.

Um projeto que já existia desde 2010, quando Johnny Depp e Tom Hanks estavam cotados para seu elenco, "Operação Fronteira" despertou interesse em vários astros de Hollywood, que, por um momento ou outro, tiveram seus nomes ligados a ele. Antes que o elenco estivesse formado em definitivo, atores dos mais variados tipos e gerações estiveram em negociação com os produtores. Quando ainda estava na Columbia, o roteiro foi considerado por veteranos (Denzel Washington, Sean Penn), oscarizados (Leonardo DiCaprio, Mahershala Ali, Casey Affleck) e atores populares (Will Smith, Mark Wahlberg), mas foi somente quando a Netflix entrou na jogada é que, de uma ideia empacada em discussões, o roteiro finalmente saiu do papel. Com Ben Affleck e Oscar Isaac - que já havia trabalhado com Chandor em "O ano mais violento" -, "Operação Fronteira" ganhou prestígio e uma seriedade que talvez não tivesse com atores mais afeitos à bilheteria do que à qualidade. O resultado é um filme de ação com mais inteligência que a média, e que equilibra com precisão momentos de tensão com um desenvolvimento interessante de personagens.


Tudo bem que o roteiro não abre mão de certos clichês e não se aprofunda em nenhum drama pessoal, preferindo apenas delinear rapidamente seus protagonistas para entrar logo na ação, mas abraça sem vergonha alguns lugares-comuns e os insere de forma orgânica na trama. É assim que o público não se importa em ver Ben Affleck como Redfly Davis, um antigo soldado que tenta ganhar a vida vendendo imóveis e com problemas de relacionamento com a ex-mulher e a filha adolescente, ou Garret Hedlund como Ben Miller, que sobrevive às custas de muito sangue perdido em ringues de luta. Redfly e Miller são apenas dois integrantes do grupo que o ambicioso Pope Garcia (Oscar Isaac) reúne com o objetivo de exterminar um famoso traficante e roubar milhares de dólares escondidos em uma casa escondida no meio da Floresta Amazônica. A eles unem-se o irmão de Miller, Ironhead (Charlie Hunnam) - que ganha dinheiro com palestras de autoajuda, desde que saiu do Exército - e o experiente piloto Catfish Morales (Pedro Pascal), cuja licença para pilotar foi cassada quando ele foi flagrado transportando drogas. Pela primeira vez em suas vidas os cinco embarcam em uma missão com objetivos pessoais e não patriotas, mas a preocupação ética logo é substituída por outras muito maiores quando o plano começa a dar errado - e eles precisam improvisar e abrir mão de alguns princípios para chegarem vivos a seu final.

Apesar do nome de Mark Boal no roteiro e da direção do elogiado J.C. Chandor, "Operação Fronteira" nada mais é do que um excelente filme de ação, sem maiores preocupações artísticas. Sua maior qualidade é aliar com sucesso entretenimento popular e qualidade narrativa. Como era de se esperar, as coisas dão muito errado para Pope e seus parceiros, e Chandor aproveita a situação para conduzir o público por uma aventura tão perigosa quanto empolgante, onde a personalidade de cada um se choca com as decisões que precisam ser tomadas em prol da segurança e do cumprimento da missão. Por ser um filme que destaca mais o elenco do que performances individuais, o conjunto é mais interessante do que atuações específicas, mas ainda assim a presença de Oscar Isaac como o líder do grupo consegue se sobressair - especialmente porque seu personagem é o que mais dá margem a dúvidas a respeito de seu caráter. No final das contas, quando o filme apresenta seu desfecho (coerente e satisfatório), resta ao público confirmar que a Netflix se firma cada vez mais no universo dos grandes estúdios - e que sua presença diante dos grandes conglomerados é fato mais que consumado. "Operação Fronteira" é um de seus mais consistentes produtos e, embora não vá sair vitorioso em cerimônias de premiação, agrada plenamente aos fãs do gênero.

terça-feira

CAFÉ SOCIETY

CAFÉ SOCIETY (Café Society, 2016, Gravier Productions/Perdido Productions/FilmNation Entertainment, 96min) Direção e roteiro: Woody Allen. Fotografia: Vittorio Storaro. Montagem: Alisa Lepselter. Figurino: Suzy Benzinger. Direção de arte/cenários: Santo Loquasto/Regina Graves, Nancy Haigh. Produção executiva: Ronald L. Chez, Adam B. Stern, Marc I. Stern. Produção: Letty Aronson, Stephen Tenenbaum, Edward Walson. Elenco: Jesse Eisenberg, Kristen Stewart, Steve Carrell, Corey Stoll, Blake Lively, Parker Posey, Sheryl Lee, Jeannie Berlin, Ken Stott. Estreia: 11/5/16 (Festival de Cannes)

Em sua longa carreira como cineasta, Woody Allen pode ter seus filmes divididos em três grupos: as obras-primas (onde se inserem "Noivo neurótico, noiva nervosa", "Manhattan", "Crimes e pecados", "A rosa púrpura do Cairo", "Hannah e suas irmãs", "Match point" e "Meia-noite em Paris"), os pouco inspirados (onde cabem "O escorpião de jade", "Para Roma, com amor" e "Magia ao luar") e os simpáticos mas pouco memoráveis (caso de "Misterioso assassinato em Manhattan", "Igual a tudo na vida" e "Scoop: o grande furo"). "Café Society", que abriu o Festival de Cannes 2016 faz parte do último grupo: é uma comédia dramática sofisticada e inteligente como se poderia esperar do diretor, mas lhe falta aquele lance de genialidade que destaca suas melhores obras de tudo que é produzido em Hollywood. Filme mais caro de sua carreira (o orçamento inicial de 18 milhões de dólares inchou até inacreditáveis - para seus padrões - 30 milhões ao final da produção), ele também marca o primeiro trabalho de Allen depois da morte de seu coprodutor executivo Jack Rollins - seu parceiro artístico há 40 anos - e sua primeira colaboração com o festejado diretor de fotografia Vittorio Storaro. Além disso, retoma um dos temas mais caros ao veterano realizador (os bastidores da indústria cinematográfica, ainda que apenas como pano de fundo) e é um de seus filmes mas simples em termos de narrativa, além de ser um de seus raros filmes com protagonistas mais jovens.

Ao contrário da maioria de seus trabalhos anteriores, em que os personagens principais são normalmente intelectuais de meia-idade atravessando crises existenciais enquanto exorcizam seus dilemas nas melhores paisagens de Nova York (ou, no caso de seus filmes mais recentes, pelas cidades mais belas da Europa), em "Café Society" grande parte da trama se passa na Los Angeles dos anos 1930 e acompanha um jovem de vinte e poucos anos em sua tentativa de assumir uma vida adulta diante do glamour oferecido por seu tio milionário e do caminho da contravenção que vislumbra ao lado do irmão mais velho. Retornando o recurso da narração em off que tanto funcionou em "A era do rádio" (87), Allen apresenta o público ao desajeitado e ingênuo Bobby Dorfman (Jesse Eisenberg em seu segundo filme com o cineasta), que deixa o Brooklyn de seus pais e chega à capital do cinema para encontrar seu tio, Phil Stern (Steve Carell), um agente de astros de Hollywood a quem mal conhece. Stern lhe emprega como seu assistente e logo Bobby se vê frequentando festas à beira da piscina e coquetéis frequentados por grandes produtores. Deslocado, ele se apaixona pela secretária do tio, Vonnie (Kristen Stewart), que não esconde dele o fato de ter um relacionamento com um homem casado. Algum tempo depois, já de volta à sua cidade natal, ele se torna sócio do irmão mais velho, Ben (Corey Stoll) - que tem sérios problemas com os gângsters do submundo - em uma boate, e se casa com a bela Veronica (Blake Lively). Seu amor por Vonnie, porém, não o deixa ser completamente realizado e feliz.


O maior problema de "Café Society" nem é sua trama tênue - muitos grandes filmes de Allen se sustentam em enredos aparentemente banais -, mas sim a forma como o cineasta parece não saber exatamente como conectar os dois atos de seu roteiro. A impressão que se tem é de que são duas ideias distintas unidas por uma linha frágil demais para justificar um longa-metragem, especialmente quando personagens cruciais da primeira metade praticamente desaparecem de cena: é o caso de Steve Carell, cujo Phil Stern parece nunca atingir todo o seu potencial mesmo quando se revela muito mais importante do que parecia em um primeiro olhar. O mesmo pode ser dito do ótimo Corey Stoll, que brilhou como Hemingway em "Meia-noite em Paris" (2011) e aqui se vê tentando dar destaque a um personagem que é mais citado do que mostrado, apesar de ser uma das bússolas morais (ou amorais) do protagonista. Não bastasse isso, Jesse Eisenberg parece mais deslocado que seu Bobby Dorfman - como muitas vezes acontece na filmografia de Woody Allen, o ator transmite a sensação de estar tentanto emular o estilo do diretor, com seu gestual desajeitado e modo de falar titubeante. Para surpresa de todos, quem se sai melhor é Kristen Stewart, que consegue romper o estigma "Crepúsculo" e entrega uma atuação sensível e convincente.

Visualmente atraente, com a fotografia deslumbrante de Vittorio Storaro enchendo os olhos do espectador e uma direção de arte caprichadíssima, "Café Society" se ressente de um roteiro mais coeso e de personagens mais empáticos do que aqueles que apresenta. Bobby Dorfman, com sua falta de traquejo social e uma interpretação quase preguiçosa de Jesse Eisenberg (repetindo tiques de seu Mark Zuckerberg, de "A rede social", filme que lhe rendeu uma indicação ao Oscar), não cativa a plateia e acaba abrindo espaço para personagens coadjuvantes muito mais interessantes, como sua irmã - cuja rixa com um vizinho acelera o destino da família - e a socialite vivida por Parker Posey, que infelizmente é quase totalmente posta de lado em detrimento da história principal. São pequenos defeitos estruturais, mas que comprometem o resultado final e fazem do filme um produto apenas regular, muito longe do brilhantismo dos melhores momentos da carreira de Woody Allen - mas também acima de seus maiores tropeços. Um entretenimento de classe, mas apenas isso.

segunda-feira

DURANTE A TORMENTA

DURANTE A TORMENTA (Durante la tormenta, 2018, Atresmedia Cine/Mirage Studio, 128min) Direção: Oriol Paulo. Roteiro: Oriol Paulo, Lara Sendim. Fotografia: Xavi Giménez. Montagem: Jaume Martí. Música: Fernando Velázquez. Figurino: Anna Aguilà. Direção de arte/cenários: Balter Gallart/Marta Bazaco. Produção executiva: Sandra Hermida, Laura Rubirola. Produção: Mercedes Gamero, Mikel Lejarza, Eneko Lizagarra, Jesus Ulled Nadal. Elenco: Adriana Ugarte, Chino Darín, Javier Gutiérrez, Álvaro Morte, Nora Navas, Miquel Fernández, Clara Segura, Belén Rueda. Estreia: 13/11/18

Quem ainda não conhece a obra do cineasta espanhol Oriol Paulo não sabe o que está perdendo. Diretor de dois dos melhores filmes de suspense dos últimos anos, "Um contratempo" (2016) e "O corpo" (2012) - que prendem o espectador na poltrona do início ao fim com suas tramas engenhosas e reviravoltas surpreendentes -, ele volta agora ainda mais ambicioso. "Durante a tormenta" é quase como dois filmes em um só, misturando suspense e ficção científica com extrema habilidade e deixando o público ansioso à espera das próximas reviravoltas (algumas previsíveis, outras muito bem disfarçadas pelo roteiro complexo e ágil). Ao se utilizar de elementos consagrados de outros filmes do gênero, como a trilogia "De volta para o futuro" (85/90), e os subestimados "Alta frequência" (2000) e "Efeito borboleta" (2004), Paulo demonstra versatilidade e competência em seduzir sua plateia mesmo diante de uma trama quase absurda e inverossímil. Apoiado no talento da protagonista Adriana Ugarte (estrela de "Julieta", de Pedro Almodóvar), "Durante a tormenta" é, ao mesmo tempo, uma grata surpresa e a confirmação de um talento com tudo para explodir em um futuro muito próximo.

Nascido em Barcelona em 1975, Oriol Paulo estreou como cineasta aos 23 anos, com o média-metragem "McGuffin" (1998), mas ficou alguns anos trabalhando como roteirista e diretor de curtas e filmes para a televisão até que seu "O corpo" lhe rendeu uma indicação ao Goya de melhor diretor estreante. Seu trabalho seguinte, "Um contratempo", reafirmou um estilo narrativo próprio, que emula Alfred Hitchcock e Brian De Palma ao mesmo tempo em que lhe confere uma identidade particular - não apenas seus movimentos de câmera e o domínio da técnica são o ponto forte, mas também seus roteiros, construídos milimetricamente com o objetivo de surpreender a plateia. "Durante a tormenta" apresenta estas mesmas qualidades, mas de forma muito mais radical. Ainda existe a atenção aos detalhes e à construção impecável do clima de tensão, mas dessa vez o diretor ousa ainda mais nos desvios da trama, de forma a deixar qualquer um desconcertado. Como é normal em filmes do gênero, é provável que uma análise mais detalhada - e ranzinza - encontre falhas no roteiro, mas é inegável que, durante o tempo da sessão, é impossível despregar o olho da tela e não tentar adivinhar os próximos acontecimentos.


Como é de se esperar de um bom filme de suspense, quanto menos se sabe da trama, melhor, mas não atrapalha saber o básico: em 1989, no mesmo dia da queda do Muro de Berlim, um menino de 12 anos morre tragicamente pouco antes de uma violenta tormenta prevista para durar 72 horas. Vinte e cinco anos mais tarde, a enfermeira Vera (Adriana Ugarte) acaba de mudar-se para a casa do menino, junto com o marido, David (Álvaro Morte), e a filha pequena, Gloria. Uma nova tormenta está para acontecer, exatamente como no passado, e Vera, impressionada com a morte do primeiro morador e o assassinato ocorrido na casa em frente, acaba tendo contato, através de um antigo vídeo-cassete e uma fita gravada, com o jovem Nico (Julio Bohigas), pouco antes de sua morte. Misteriosamente ela consegue falar com ele e evitar o desfecho violento da situação - mas quando acorda, no dia seguinte, se descobre presa a uma outra vida, bastante diferente da anterior. Nessa nova vida, ela é médica, não está casada com David e tampouco tem uma filha. Desesperada, ela tenta reverter os acontecimentos, no que é parcialmente ajudada pelo Inspetor Leyra (Chino Darín, filho do ator Ricardo Darín). Nessa batalha, ela reencontra personagens importantes de sua "vida anterior" - e percebe que todas elas foram afetadas, de uma forma ou outra, por sua intervenção.

O roteiro de Paulo - redondo, inteligente, sutil - apresenta algumas explicações para o fenômeno retratado, mas felizmente não se aprofunda em nenhuma delas, deixando as conclusões para o espectador. Sua narrativa empolga principalmente porque consegue virar do avesso as certezas do público e dos personagens, com reviravoltas que dão novo sentido a cada um dos acontecimentos da primeira linha temporal. Buscar uma resposta definitiva para o ponto de partida é perder o encantamento que suas consequências trazem, uma viagem de montanha-russa repleta de surpresas e momentos de genuíno suspense. A trama policial - que se mantém como pano de fundo até o terço final - é a mais inesperada, mas é a trajetória de Vera em provar-se sã e ciente de todo o caos à sua volta que prende o público, que, angustiado como ela, tenta encontrar a maneira certa de resolver um problema aparentemente sem solução. Adriana Ugarte dá conta do recado com maestria, transmitindo todas as sensações conflitantes de sua personagem sem cair no exagero ou na caricatura. O mesmo pode se dizer do restante do elenco - discreto mas extremamente eficiente - e da edição, costurada com ritmo e enxuta na medida certa. Um filme imperdível, "Durante a tormenta" é tão bom que vale por dois.

domingo

RASGA CORAÇÃO

RASGA CORAÇÃO (Rasga coração, 2018, Casa de Cinema de Porto Alegre/Globo Filmes, 115min) Direção: Jorge Furtado. Roteiro: Jorge Furtado, Ana Luiza Azevedo, Vicente Moreno, peça teatral de Oduvaldo Vianna Filho. Fotografia: Glauco Firpo. Montagem: Giba Assis Brasil. Figurino: Rosângela Cortinhas. Direção de arte: Fiapo Barth. Produtor associado: Guel Arraes. Elenco: Marco Ricca, Drica Moraes, Chay Suede, João Pedro Zappa, George Sauma, Luisa Arraes, Nelson Diniz, Anderson Vieira. Estreia: 06/12/18

Último texto dramático de Oduvaldo Vianna Filho - o Vianinha, conhecido do grande público por ser o criador e roteirista da primeira versão de "A grande família" - e um dos marcos do teatro brasileiro mesmo tendo estreado com seis anos de atraso por problemas com a censura, "Rasga coração" conseguiu, em sua primeira montagem, de 1979, emocionar até mesmo o irascível Nelson Rodrigues, não exatamente um entusiasta do autor, mas que declarou-a como uma das mais belas e fascinantes obras-primas do teatro nacional. Um retrato real, inteligente e visceral do choque de gerações e um brilhante inventário dos sonhos de revolução da juventude, a peça nunca pareceu tão atual quanto agora, quando o país atravessa uma de suas mais severas crises de intolerância política. Por isso não chega a surpreender o fato de que sua versão cinematográfica - pelas mãos do gaúcho Jorge Furtado, fã da obra original e um dos cineastas mais criativos do Brasil - pareça tão fresca e relevante. Ao se entregar sem medo à emoção e à potência dramática do texto de Vianinha e adequá-lo à realidade atual com respeito e inteligência, Furtado faz de seu novo filme o que pode ser considerado seu melhor trabalho - e isso que se trata do mesmo diretor de pérolas como "O homem que copiava" e "Saneamento básico: o filme", duas comédias das mais incríveis que se tem notícia na filmografia nacional.

Abdicando de seu estilo facilmente reconhecível e consagrado, Furtado entrega, em "Rasga coração",  uma obra madura e sensível, sem artifícios narrativos que ofusquem a força de seus personagens e de sua mensagem. Consegue até mesmo fugir da armadilha tão comum de realizar apenas um teatro filmado: graças à edição do veterano Giba Assis Brasil, o espectador raramente lembra que está assistindo à adaptação de um texto cuja montagem se passava em um único cenário desdobrado em várias fases. Indo e voltando no tempo em flashbacks que revelam muito mais semelhanças entre as duas gerações retratadas do que elas mesmas gostariam de perceber, o filme mergulha o público em uma experiência tão gratificante quanto tensa, explorando as diversas camadas da narrativa de forma orgânica. É aos poucos que a plateia vai se dando conta de que as duas histórias que estão sendo contadas pelo diretor não se unem apenas devido à presença do mesmo personagem principal, mas também porque, por mais que o tempo passe, os problemas e as (tentativas de) solução parecem sempre os mesmos - e cada geração lida com eles da maneira que acha mais correta.


Enquanto no texto original a trama se desdobrava em três tempos distintos, na estupenda adaptação, feita por Furtado, Ana Luiza Azevedo e Vicente Moreno, o enredo enfoca apenas a relação entre pai e filho, corroída por diferenças que aparentemente não existiam. Manguari Pistolão (Marco Ricca, em uma interpretação rica em nuances) é funcionário público, leva uma vida razoavelmente estável ao lado da esposa Nena (Drica Moraes, sempre uma atriz avassaladora) e tem problemas apenas relacionados a trivialidades, como encaixar no orçamento as novas manias veganas do único filho, Luca (Chay Suede, surpreendente). Seu sonho é ver o rapaz cursando Medicina e abrindo um consultório com o dinheiro que ele vem economizando há anos, mas as coisas começam a sair do controle quando Luca informa aos pais que, SE fizer a faculdade, pretende praticar a medicina no interior, ajudando aos mais carentes. Os ideais do jovem apavoram sua mãe, mas fazem Manguari lembrar de sua juventude (quando é interpretado por João Pedro Zappa, protagonista do ótimo "Gabriel e a montanha"): durante a ditadura militar, ele e um grupo de amigos, entre os quais o excêntrico Lorde Bundinha (George Sauma) e o engajado Camargo Velho (Anderson Vieira), lutavam bravamente contra o regime, sonhando com uma sociedade mais justa e a liberdade de expressão - fatos que, obviamente, o colocavam em rota de colisão com o próprio pai (Nélson Diniz).

O difícil relacionamento entre Manguari e seu pai começa a se redesenhar em seu contato com Luca quando o rapaz entra em rota de colisão com a escola onde estuda: ao lado da namorada e outros colegas, ele compra a briga de ideologia de gêneros (mais atual que o movimento hippie do original) e, suspenso, desperta no pai a velha paixão pela luta. Porém, as coisas não são exatamente como antes, e o que poderia ser consenso entre os dois se torna motivo de discórdia - o que alimenta ainda mais as memórias de Manguari a respeito de seus antigos amigos e de sua juventude militante. Ao intercalar presente e passado sem necessariamente se prender a uma fórmula banal, "Rasga coração" provoca uma reflexão pertinente e muito atual sobre a falta de diálogo e compreensão mútua, além de resgatar a velha, mas nunca ultrapassada, discussão sobre as semelhanças e diferenças entre gerações - e a conclusão de que, apesar de tudo que se faz, a tendência é sempre repetir os erros e/ou acertos anteriores. Apesar desse travo de certa amargura, o filme termina com uma ponta de esperança, ao apontar, discreta mas efetivamente, o caminho para a tolerância e a convivência pacífica. É um filme que faz jus à sua origem e orgulha a cinematografia nacional: emocionante, pungente, corajoso e imprescindível.

sábado

O ANO MAIS VIOLENTO

O ANO MAIS VIOLENTO (A most violent year, 2014, A24, 125min) Direção e roteiro: J.C. Chandor. Fotografia: Bradford Young. Montagem: Ron Patane. Música: Alex Ebert. Figurino: Kasia Walicka-Maimone. Direção de arte/cenários: John Goldsmith/Melanie J. Baker. Produção executiva: Glen Basner, Joshua Blum, Jonathan King, Jeff Skoll. Produção: J.C. Chandor, Neal Dodson, Anna Gerb. Elenco: Oscar Isaac, Jessica Chastain, Albert Brooks, David Oyelowo, Alessandro Nivola, Elyes Gabel, Catalina Sandino Moreno. Estreia: 06/11/14

"Margin call: o dia antes do fim", filme de estreia do cineasta J.C. Chandor, lançado em 2011, arrancou elogios entusiasmados da crítica e chegou a ser indicado ao Oscar de roteiro original - além de contar com um elenco de bambas que incluía Jeremy Irons, Kevin Spacey, Stanley Tucci e Demi Moore. Não fez lá muito sucesso de bilheteria, principalmente por causa do tema (a crise financeira que abalou o mercado em 2000), mas lhe deu prestígio o bastante para que seu filme seguinte, "Até o fim", estrelado por Robert Redford, tivesse visibilidade razoável. Mais uma vez a crítica gostou, e mais uma vez o público não deu muita importância. Acostumado com essa receptividade dúbia a seus trabalhos, não foi nenhuma surpresa para ele que seu terceiro longa-metragem, "O ano mais violento", tenha seguido caminho semelhante. Mesmo com uma vitória tripla pelo conceituado National Board of Review - melhor filme, ator (Oscar Isaac) e atriz coadjuvante (Jessica Chastain) -, a produção passou praticamente em brancas nuvens pelos cinemas. Talvez culpa do estilo minimalista do cineasta, talvez pelo tema pouco atraente ao público médio, o drama policial de Chandor é mais um filme para entrar na vasta lista de produções subestimadas que um dia felizmente serão vistas como tal.

Apesar do título sugerir um filme de ação (ou no mínimo com tensão o suficiente para justificá-lo), "O ano mais violento" é uma produção que investe muito mais no clima, na ambientação e no desenho dos personagens. O ano mais violento a que se refere é o de 1981, considerado historicamente como um dos períodos mais difíceis da cidade de Nova York, com um aumento considerável da criminalidade - mas também pode retratar a complicada fase do protagonista, o dono de uma companhia de petróleo que se vê envolvido em uma série de situações adversas que ameaçam seu negócio e sua família. A violência retratada por Chandor é mais psicológica do que física, mais sugerida que explícita - e mais inesperada porque imprevisível. Abel Morales, o personagem central, interpretado por Oscar Isaac, é um imigrante que construiu sua companhia à custa de muito trabalho honesto, ainda que tenha herdado parte dele do sogro pouco confiável. Tentando manter a integridade de sua trajetória, ele tenta fazer um negócio de milhões, que pode finalmente lhe trazer a estabilidade desejada, mas esbarra em dois grandes problemas, que podem ou não estarem interligados. O primeiro diz respeito a uma série de assaltos a caminhões de sua companhia, que vem lhe trazendo grandes prejuízos. O segundo (e talvez mais complicado de resolver) é uma investigação detalhada sobre sua fortuna, liderada pelo promotor de Justiça D.A. Lawrence (David Oyelowo).


Quanto aos assaltos, o que Abel pode fazer é tentar descobrir quem é o responsável - e aceitar, mesmo indo contra seus princípios, armar seus motoristas, entre eles o jovem latino Julian (Elyes Gabel), principal vítima dos criminosos. Incentivado por seu sinistro advogado, Andrew Walsh (Albert Brooks, se especializando em papéis dúbios), ele resolve entrar na briga contra concorrentes pouco confiáveis, o que pode trazer sérias consequências à sua família. Quanto às investigações da promotoria, ele conta com o apoio da esposa, Anna (Jessica Chastain), responsável pelos livros da companhia e disposta a qualquer coisa para manter seu estilo de vida e a segurança das filhas. Chastain é um dos destaques do filme, ao construir uma Anna imprevisível em sua determinação e sua falta de escrúpulos em defender seus interesses. É um contraponto interessante à ética do marido, interpretado com sutileza ímpar por Oscar Isaac, um dos atores mais competentes da nova geração. Os diálogos entre o casal estão entre os melhores momentos do filme, justamente por sublinhar o contraste radical entre os dois - tanto personagens quanto atores. Enquanto Isaac opta pelo minimalismo, pelo olhar angustiado, Chastain por sua vez investe em uma atuação mais visceral, sem medo de expor seus maiores dotes dramáticos.

Assumindo um papel que seria de Javier Bardem e não deixando nada a desejar com seu desempenho, o guatemalteco Oscar Isaac se confirma, em "O ano mais violento", como um ator de grandes recursos. Sem precisar apelar para longos diálogos, ele transmite ao espectador uma vasta gama de sentimentos, que vão do autocontrole à ira, da humildade ao rancor. Em alguns momentos lembra o jovem Al Pacino de "O poderoso chefão" (72) - e a caprichada reconstituição de época e a fotografia ajudam em fortalecer o tom de paranoia e tensão criado por Chandor. Um filme sem grandes reviravoltas ou emoções grandiloquentes, "O ano mais violento" lembra muito os policiais mais cerebrais da década de 1970, e resta ao público aceitar essa particularidade para descobrir suas inúmeras qualidades. Assistida sem expectativas equivocadas, é uma bela e competente realização de um dos diretores menos óbvios a surgir em Hollywood nos últimos anos.

VAMPIROS DO DESERTO

VAMPIROS DO DESERTO (The forsaken, 2001, Screen Gems/Sandstorm Films, 90min) Direção e roteiro: J. S. Cardone. Fotografia: Steven Bernstein...