sexta-feira

SEM MEDO DE VIVER


SEM MEDO DE VIVER (Fearless, 1993, Warner Bros, 122min) Direção: Peter Weir. Roteiro: Rafael Yglesias, romance de sua autoria. Fotografia: Allen Daviau. Montagem: William Anderson, Armen Minasian, Lee Smith. Música: Maurice Jarre. Figurino: Marilyn Matthews. Direção de arte/cenários: John Stoddart/John Anderson. Produção: Mark Rosenberg, Paula Weinstein. Elenco: Jeff Bridges, Isabella Rossellini, John Turturro, Rosie Perez, Benicio Del Toro, Tom Hulce. Estreia: 15/10/93

Indicado ao Oscar de Atriz Coadjuvante (Rosie Perez)

De vez em quando uma receita com todos os ingredientes certos pode não ter o resultado esperado, por  razões as mais variadas. Cinema, então, apesar de frequentemente usar e abusar de fórmulas já testadas previamente, é uma incógnita: para cada produção que confirma a validade de elementos já devidamente consagrados, outras várias avisam de que nem sempre a confluência de fatores bem-sucedidos é garantia de sucesso. É o caso de "Sem medo de viver", lançado pela Warner no final de 1993 com evidentes intenções de chegar ao Oscar - com um diretor de prestígio, um ator principal dos mais bem quistos na indústria e um tema capaz de suscitar discussões e quiça lágrimas, o filme viu frustrados seus planos quando foi praticamente ignorado pela Academia (concorreu a apenas uma estatueta) e naufragou nas bilheterias, arrecadando pouco menos de sete milhões de dólares pelo mundo. Com o passar dos anos, porém, e com o apoio da crítica, acabou por adquirir o status de cult, encontrando seu público e passando a ser considerado uma pérola escondida na filmografia dos envolvidos. 

Baseado no romance "Fearless", de Rafael Yglesias, publicado no mesmo ano de lançamento do filme, "Sem medo de viver" é um filme estranho: já começa com o protagonista, Max Klein (Jeff Bridges), conduzindo um grupo de atônitos sobreviventes de um desastre aéreo para longe do acidente. Não demora muito para que seu ato de heroísmo faça dele uma espécie de celebridade - uma consequência com a qual não se sente exatamente à vontade. O que o surpreende, na verdade, é sua repentina inabilidade de conexão com a esposa, Laura (Isabella Rossellini), e o filho pequeno, Jonah, e a sensação de invulnerabilidade e imortalidade. Crente de que sobreviver ao acidente foi como nascer de novo, Max quer recomeçar a vida, redescobrir sentimentos e - como parte de sua mente um tanto desequilibrada pelo trauma - testar seus novos poderes de resistir à morte. Através de Bill Perlman (John Turturro), psicólogo da companhia aérea, designado para acompanhar os passageiros que saíram vivos da tragédia, Max conhece Carla Rodrigo (Rosie Perez), uma jovem que perdeu o filho de poucos meses diante de seus olhos. Surge entre ele, com sua síndrome de super-herói, e ela, com seu exarcebado sentimento de culpa, uma relação inesperada.

 

Dois grandes trunfos fazem com que "Sem medo de viver" escape das armadilhas lacrimosas em que poderia cair. Um deles é a direção do australiano Peter Weir, um dos cineastas mais consistentes a aportar em Hollywood na década de 1980 - depois de sucessivos êxitos de crítica em sua terra natal, como "Picnic na montanha misteriosa" (1975) e "Gallipoli" (1981), em 1993 ele já tinha concorrido ao Oscar de direção por "A testemunha" (1985) e "Sociedade dos poetas mortos" (1989). O segundo deles é a atuação inspirada de Jeff Bridges, que ficou com o papel inicialmente pensado para Mel Gibson (parceiro do diretor em "Gallipolli" e "O ano em que vivemos em perigo" (1984)) e lhe deu uma profundidade comovente. Bridges, que chegou a declarar o filme como um de seus trabalhos preferidos, imprime a Max Klein uma verdade que impede que o roteiro - escrito pelo mesmo Rafael Yglesias autor do romance que lhe deu origem - descambe para a inverossimilhança. Por mais improváveis que sejam algumas atitudes do protagonista, a presença de Bridges equilibra a balança e conduz a história de redenção, desespero e culpa de forma sensível e sem apelar excessivamente ao dramalhão. Apesar da história em si ser bastante pesada - especialmente a trama que envolve Rosie Perez -, a mão elegante de Weir é sentida especialmente em sequências mais lúdicas, como o clímax final e a cena de abertura. Sem cair na tentação de dar tudo mastigadinho à plateia, o diretor a convida à reflexão - e talvez este tenha sido o problema de "Sem medo de viver" junto à pouco ousada Academia.

Ao homenagear apenas Rosie Perez com uma indicação - ela perdeu a estatueta para a pequena Anna Paquin, por "O piano" (1993) -, a Academia perdeu a oportunidade de aplaudir a soberba interpretação de Jeff Bridges, a direção econômica e poética de Weir e a trilha sonora eficiente de Maurice Jarre. Mesmo que não esteja no mesmo nível dos melhores trabalhos do diretor - "A testemunha", "Sociedade dos poetas mortos" e o posterior "O show de Truman: o show da vida" (1998) -, "Sem medo de viver" é um belo filme, envolvente e intrigante na medida certa. Não é uma obra-prima, mas é capaz de tocar alguns corações mais sensíveis e confirmar seu realizador como uma das mais interessantes aquisições internacionais de Hollywood.

quinta-feira

AS CRIATURAS ATRÁS DAS PAREDES


AS CRIATURAS ATRÁS DAS PAREDES (The people under the stairs, 1991, Universal Pictures, 102min) Direção e roteiro: Wes Craven. Fotografia: Sandi Sissel. Montagem: James Coblentz. Música: Don Peake. Figurino: Ileane Meltzer. Direção de arte/cenários: Bryan Jones/Molly Flanegin. Produção executiva: Wes Craven, Shep Gordon. Produção: Stuart M. Besser, Marianne Maddalena. Elenco: Brandon Adams, Ving Rhames, Everett McGill, Wendy Robie, A. J. Langer, Sean Whalen. Estreia: 01/11/91

Tudo começou no final dos anos 1970, quando Wes Craven ainda não era o cineasta consagrado por "A hora do pesadelo" (1984) mas já tinha no currículo "Aniversário maldito" (1972) e "Quadrilha de sádicos" (1977): uma matéria publicada em um jornal da Califórnia falava sobre o caso bizarro e assustador de vários adolescentes mantidos em cativeiro por seus pais, que nunca permitiram que eles tivessem acesso ao mundo exterior. Seus pais, considerados cidadãos normais da classe média de Los Angeles, nunca haviam despertado qualquer tipo de suspeita entre sua vizinhança até que, chamada para atender uma ocorrência de possível invasão, a polícia descobriu um assustador caso de cárcere privado. Impressionado com a história, Craven imediatamente dedicou-se a escrever um argumento de 80 páginas. Mais de dez anos depois, já navegando nos louros do merecido sucesso de seu Freddy Krueger, Craven transformou tal sinopse em um filme que, apesar de não compartilhar da mesma popularidade de seus trabalhos anteriores - e os posteriores exemplares da série "Pânico" - conquistou seus fãs com uma narrativa surpreendente e ousada, com um protagonista inusitado e momentos de legítimo suspense.

O personagem principal de "As criaturas atrás das paredes" é Fool (Brandon Adams), um garoto negro de 13 anos de idade passando pelo pior período de sua curta vida: a mãe está seriamente doente a ponto de não conseguir sequer levantar da cama e sua família tem os dias contados para pagar os alugueis atrasados caso não queiram ser despejados pelo cruel proprietário de seu apartamento (Everett McGill). Sem encontrar saída para resolver ao menos o problema financeiro que o assombra, Fool se deixa levar pela conversa de LeRoy (Ving Rhames), namorado de sua irmã. Segundo ele, o proprietário de seu apartamento tem escondido, em sua casa, um grande tesouro em moedas de ouro, o que poderia ser muito útil em sua difícil situação. Certo de que ajudar LeRoy a invadir a propriedade de seu insensível senhorio é o melhor a fazer, o menino concorda em participar de um ousado plano que os colocará diante da solução de seus problemas. Logo depois de entrar na casa, porém, Fool percebe que está muito encrencado. Além de maltratarem sua filha adolescente, Alice (A. J. Langer), o senhorio e sua cruel esposa (Wendy Robie), mantém presos, dentro das paredes da propriedade, um grupo de adolescentes, crianças e jovens - todos aprisionados depois de não seguirem os desejos doentios de seus raptores.

 

Realizado em 1991, quando Craven já praticamente não tinha mais o controle criativo de seu personagem mais famoso, "As criaturas atrás das paredes" mostrou que seu talento em surpreender a audiência se mantinha absolutamente intocado: sem abrir mão de sustos e personagens bizarros, o cineasta conduz o espectador em uma experiência das mais satisfatórias no gênero. Tudo graças a um roteiro que vai introduzindo seus elementos aos poucos, com uma atmosfera claustrofóbica cada vez mais densa e um par de vilões dos mais empolgantes, interpretados por Everett McGill e Wendy Robie, também casados na série "Twin Peaks". Ainda que ocasionalmente caricata - em uma escolha artística acertada -, a dupla de criminosos (cujos nomes jamais são citados em cena, já que se chamam por Pai e Mãe) é um dos trunfos do filme: cruéis e desumanos, sim, mas dotados de uma quase inabilidade em lidar com oponentes inesperados, como Fool e seus comparsas. Aliás, não deixa de ser irônico que todos os adultos do filme sejam facilmente suplantados pelas crianças e adolescentes que os confrontam: não é LeRoy nem seu comparsa que ameaçam a rotina de crimes da mansão, mas sim o pequeno Fool, a sofrida Alice e as tais criaturas atrás das paredes - bem caracterizadas mas nunca excessivamente assustadoras, já que se tornam, no decorrer da sessão, os heróis da história.

É surpreendente como Wes Craven consegue, em "As criaturas atrás das paredes", manter a atenção do espectador mesmo depois de um pretenso clímax no meio do filme - ao invés de perder o ritmo, a produção parece iniciar um novo e ainda mais violento capítulo. Sem apelar para sangue aos borbotões - ainda que não fuja de sequências bem gráficas - e confiando na empatia da plateia em relação a Fool e seus aliados, o diretor comprova que nem sempre é preciso ter grandes astros estampando os cartazes para levar público às salas de exibição. Sem nenhum ator conhecido no elenco, seu filme, que custou exíguos 6 milhões de dólares, recuperou o orçamento em poucos dias de exibição e ultrapassou a marca de 30 milhões de arrecadação mundial. Apostando em protagonistas negros (o jovem Brandon Adams fez parte do musical "Moonwalker", de Michael Jackson, e Ving Rhames poucos anos depois ganharia o mundo como o vilão Marcellus Wallace, de "Pulp fiction: tempo de violência") e em uma trama que poderia facilmente descambar para o grotesco, Craven acabou por abrir caminho para, em 1994, retomar as rédeas de sua mais famosa criação, em "O novo pesadelo: o retorno de Freddy Krueger". 

Tornado cult movie por excelência, "As criaturas atrás das paredes" parecia morar no coração de Craven: antes de sua morte, em 2015, ele estava por trás da produção de um remake televisivo do filme, a ser transmitido pelo SyFy Channel e dirigido por F. Javier Gutiérrez, projeto que não parece ter ido para a frente depois de sua partida.

quarta-feira

ASSÉDIO SEXUAL


ASSÉDIO SEXUAL (Disclosure, 1994, Warner Bros., 128min) Direção: Barry Levinson. Roteiro: Paul Attanasio, romance de Michael Crichton. Fotografia: Tony Pierce-Roberts. Montagem: Stu Linder. Música: Ennio Morricone. Figurino: Gloria Gresham. Direção de arte/cenários: Neil Spisak/Garrett Lewis. Produção executiva: Peter Giuliano. Produção: Michael Crichton, Barry Levinson. Elenco: Michael Douglas, Demi Moore, Donald Sutherland, Caroline Goodall, Roma Maffia, Dylan Baker, Dennis Miller. Donal Logue. Estreia: 28/11/94

Não tinha como dar errado. Em 1994, quando foi lançado, o filme "Assédio sexual" apresentava todos os ingredientes de um grande sucesso: além do tema polêmico, contava com a assinatura de Barry Levinson (diretor oscarizado por "Rain Man", de 1988, e indicado novamente à estatueta, por "Bugsy", de 1991), uma história criada por Michael Crichton (cujo "Jurassic Park" acabava de ser adaptado às telas por Steven Spielberg e se tornava uma das maiores bilheterias da história) e a presença de dois astros de primeira grandeza, Michael Douglas e Demi Moore. E não deu - pelo menos em parte. Com mais de 200 milhões de dólares de arrecadação mundial, a produção deu o que falar em mesas de bar, em artigos de jornal e em reuniões de família, colocando em pauta um assunto ainda delicado (cuja interessante inversão de papéis ajudou no marketing espontâneo) e reforçando a popularidade de seus atores principais. Porém, à parte sua controvérsia e o talento dos envolvidos, o filme de Levinson não deixa de ser uma decepção àqueles que procuram um bom drama de tribunal: superficial e com sérios problemas de foco, "Assédio sexual" é um passatempo correto, mas que perdeu a chance de se tornar um clássico de seu tempo.

Não deixou de ser uma jogada de mestre mudar o foco do romance "Disclosure", de Michael Crichton, para buscar as plateias que lotaram as salas de exibição para ver Michael Douglas sofrendo as consequências de seu caso extraconjugal em "Atração fatal" (1987) ou Demi Moore despertando a luxúria do milionário Robert Redford em "Proposta indecente" (1993) - ambos dirigidos, por coincidência ou não, por Adrian Lyne. Cientes de que o público formaria filas para ver a normalmente delicada Demi assediando sem meias-palavras o frequentemente garanhão Douglas, os produtores transformaram uma subtrama do livro de Crichton em tema principal - e relegaram a história central do romance, que girava em torno de intrigas corporativas em uma empresa de tecnologia, a segundo plano. A estratégia se mostrou acertada em termos comerciais, mas, como efeito colateral, enfatizou a fragilidade com que o escritor desenvolveu o tema. Nem mesmo um roteirista experiente como Paul Attanasio - indicado ao Oscar por "Quiz show: a verdade dos bastidores" (1994) - foi capaz de disfarçar a inconsistência de tamanha alteração de foco: o que era para ser o grande trunfo do filme acabou esvaziado por uma reviravolta anticlimática que funcionou nas páginas mas se despedaçou nas telas.

 

A trama do filme gira em torno de Tom Sanders (Michael Douglas), gerente de uma importante empresa de tecnologia de Seattle, às vésperas de uma fusão milionária que a colocará dentre as grandes companhias do mundo. No dia em que esperava ser promovido a vice-presidente, porém, o pacato Tom, pai de família correto e leal, é pego de surpresa ao reencontrar uma antiga namorada, Meredith Johnson (Demi Moore): não apenas ela vai trabalhar na mesma empresa que ele, como é anunciada no cargo que seria seu. Frustrado e com medo de perder o emprego ao qual se dedica incansavelmente, Tom entra em uma situação ainda mais delicada quando, depois do expediente, em uma reunião com a bela e decidida executiva, é quase forçado a fazer sexo com ela. No dia seguinte, a coisa fica pior: invertendo completamente os fatos, Meredith o acusa de assédio sexual - e caberá a ele provar que uma mulher linda, sensual e poderosa teria necessidade de obrigar um homem a envolver-se com ela. Nem mesmo seu antigo chefe, Bob Garvin (Donald Sutherland), acredita em sua versão, e as consequências do embate poderão acabar com sua carreira e sua família.

Não há grandes problemas em "Assédio sexual", assim como tampouco há grandes qualidades. A impressão que se tem é que todos estão no piloto automático. A direção de Barry Levinson é burocrática - mesmo a comentada cena do assédio não se decide entre ser quente ou incômoda. Michael Douglas faz muito pouco além do corriqueiro, sem oferecer muitas nuances a sua performance, correta mas sem brilho. Nem a trilha sonora do celebrado Ennio Morricone consegue ser marcante, sublinhando apenas com eficiência as sequências propostas pelo roteiro mas nunca chegando à excelência que lhe é costumeira. Quem acaba se beneficiando desse resultado morno é Demi Moore, que se destaca mesmo com uma personagem tão maniqueísta quanto Meredith Johnson. Na pele da antagonista principal - papel para o qual foram consideradas Michelle Pfeiffer, Geena Davis e Annette Bening -, Demi coroava um período fértil para uma carreira que pouco depois cairia em um melancólico limbo, alavancado por fracassos de bilheteria como "Striptease" (1996) e "Até o limite da honra" (1997). Linda e esforçada, é ela quem se sobressai em uma produção apenas mediana e sem brilho.

terça-feira

EU, EU MESMO E IRENE


EU, EU MESMO E IRENE (Me, myself & Irene, 2000, 20thCentury Fox, 116min) Direção: Bobby Farrelly, Peter Farrelly. Roteiro: Bobby Farrelly, Peter Farrelly, Mike Cerrone. Fotografia: Mark Irwin. Montagem: Christopher Greenbury. Música: Lee Scott, Pete Yorn. Figurino: Pamela Withers.Direção de arte/cenários: Sidney J. Bartholomew Jr./Scott Jacobson. Produção executiva: Tom Schulman, Charles B. Wessler. Produção: Bobby Farrelly, Peter Farrelly, Bradley Thomas. Elenco: Jim Carrey, Renée Zellweger, Chris Cooper, Robert Forster, Richard Jenkins. Estreia: 15/6/2000

Sutileza nunca foi o forte de Bobby e Peter Farrely. Desde que apareceram no radar de Hollywood com "Débi & Lóide: dois idiotas em apuros" (1994), os irmãos não pararam de apelar para a vulgaridade como forma de fazer as plateias gargalharem sem que fosse preciso acionar o cérebro. Atingiram o auge do sucesso com "Quem vai ficar com Mary?" (1998), em que aproveitaram a popularidade e o carisma de Cameron Diaz para um desfile de piadas infames com o verniz de credibilidade oferecido por um grande estúdio (a 20th Century Fox) e se tornaram nomes quentes na indústria. Porém, até mesmo aqueles que fingiam não ver o excesso de grosserias visuais e verbais de seus primeiros filmes não deixaram de ficar chocados com a absoluta falta de noção apresentada em "Eu, eu mesmo e Irene". Estrelado pelo mesmo Jim Carrey de "Débi & Lóide" e valorizado pela presença da sempre ótima Renée Zellweger, o terceiro longa dos Farrelly não poupa o espectador de piadas constrangedoras que atingem todo e qualquer tipo de minoria - racial, étnica ou médica -, mas esbarra perigosamente em sua falta de limites. Mesmo com uma bilheteria polpuda de quase 150 milhões de dólares, a comédia quase romântica dos Farrelly encontrou severa resistência em sua estreia, e foi criticado justamente por aquilo que parecia ser o ponto forte dos cineastas: o humor politicamente incorreto.

Quem primeiro chiou a respeito do filme foram as associações de familiares de portadores de esquizofrenia, que não gostaram nem um pouco de ver a doença tratada como piada - principalmente da forma avassaladoramente histriônica apresentada por Jim Carrey no auge de seu sucesso no gênero. Depois disso, vieram reclamações sobre como o filme debochava de anões, negros e albinos - se quisesse, qualquer um poderia encontrar motivos justos para queixas. A grande questão, porém,  descontado o absoluto desprezo da dupla de realizadores por um mísero traço de sofisticação, é o fato de que, apesar de seguir quase à risca a fórmula dos primeiros filmes dos cineastas, "Eu, eu mesmo e Irene" não é nem de longe tão engraçado quanto eles. Primeiro por forçar piadas que soam deslocadas e nem sempre funcionam. E principalmente porque, ao contrário de seus trabalhos anteriores, elas estão diluídas em uma trama que exige mais do espectador do que simplesmente risadas - por vezes, a história (fraca) que envolve os personagens fica tão confusa que sobra pouco tempo para rir.

 

O personagem central do filme é Charlie Baileygates, um pacato policial de Rhode Island, cumpridor das leis, afável a ponto de ser tratado como capacho por quase todo mundo e um pai dedicado de trigêmeos que são a prova do adultério da ex-esposa. Continuamente abusado em sua boa-fé, ingenuidade e bondade, um dia Charlie deixa escapar uma nova personalidade: bruto, desbocado, vulgar e sem filtros, Hank assusta os moradores da pequena cidade e principalmente seus colegas de trabalho. Ciente dessa nova condição psíquica de Charlie - administrável quando devidamente medicada -, seu superior, Coronel Partington (Robert Forster) lhe dá uma missão simples: acompanhar com segurança, até o estado de Nova York, a forasteira Irene Walker (Renée Zellweger), presa por dívidas com a polícia rodoviária. No caminho, porém, Charlie descobre que Irene está na mira de policiais corruptos e um ex-namorado tóxico, que farão de tudo para eliminá-la. Intercalando momentos bons com outros dominados por Hank, ele se apaixona pela bela fugitiva e passa a disputá-la com seu grosseiro alterego.

Assumindo o papel central depois que Jack Black pulou fora do projeto, Jim Carrey deita e rola em sua mais absoluta zona de conforto. Seu talento para o humor físico serve como uma luva para as insanidades do roteiro - terminado por Mike Cerrone em 1991 e posteriormente adequado ao estilo dos irmãos Farrelly pelos próprios diretores - e é difícil imaginar outro ator com a coragem suficiente de participar, em uma fase já de grande prestígio na carreira, de algumas sequências francamente duvidosas (sem spoilers, basta citar um momento com uma mãe amamentando um bebê e outro com uma vaca atropelada no meio da estrada). Renée Zellweger está encantadora como Irene Walker, mas tem pouco a fazer diante das atrocidades comandadas por Carrey (com quem namorou durante as filmagens), e o elenco coadjuvante conta com nomes consagrados por indicações ou vitórias no Oscar (Chris Cooper, Richard Jenkins, Robert Forster). Nada disso impede, no entanto, que "Eu, eu mesmo e Irene" fique na história mais como um filme que talvez tenha ido longe demais em seu conceito de humor a qualquer preço do que por suas qualidades artísticas e/ou cômicas. Não à toa, os próprios Farrelly o consideram seu pior filme - e isso que depois eles ainda virariam sua metralhadora giratória para obesos ("O amor é cego", de 2000) e gêmeos siameses ("Ligado em você", de 2003), até Peter deixar de lado seu pendor para o politicamente incorreto, e cometer "Green Book: O Guia", que levou o Oscar de melhor filme de 2018 ao falar sobre racismo (mesmo que sob um ponto de vista branco e pouco profundo).

segunda-feira

CORAÇÃO DE CAÇADOR


CORAÇÃO DE CAÇADOR (White hunter, black heart, 1990, Warner Bros, 112min) Direção: Clint Eastwood. Roteiro: Peter Viertel, James Bridges, Burt Kennedy, romance de Peter Viertel. Fotografia: Jack N. Green. Montagem: Joel Cox. Música: Lennie Niehaus. Figurino: John Mollo. Direção de arte/cenários: John Graysmark/Peter Howitt. Produção executiva: David Valdes. Produção: Clint Eastwood. Elenco: Clint Eastwood, Jeff Fahey, George Dzundza, Marisa Berenson, Richard Vanstone. Estreia: 16/5/90 (Festival de Cannes)

Quando Clint Eastwood decidiu realizar a cinebiografia do músico Charlie Parker, poucos levaram fé que o responsável por filmes como "Impacto fulminante" (1983) e "O cavaleiro solitário" (1985) - produções centradas na adrenalina e em personagens durões - seria capaz de transmitir nas telas a complexa personalidade de um dos ícones do jazz. O sucesso de crítica de "Bird" (1988), porém, mostrou que, por trás da figura quase pétrea do cineasta, havia alguém com sensibilidade o bastante para romper a barreira do cinema de ação/policial/guerra. Embalado por tal inesperado prestígio, o já veterano Eastwood (ainda não consagrado com os Oscar de diretor que conquistaria poucos anos depois) chegou à Warner com uma proposta que, a princípio, contemplaria o melhor de dois mundos: ele oferecia seus préstimos para comandar mais um potencial êxito de bilheteria e, em troca, o estúdio bancaria a produção de um de seus então projetos de estimação. Proposta feita, proposta aceita, e em 1990, dois filmes com a assinatura do eterno Dirty Harry chegaram às telas: o convencional e quase derivativo "Rookie: um profissional do perigo" e "Coração de caçador", que se tornaria um dos maiores fracassos comerciais do ator/diretor/produtor - ao mesmo tempo em que arrancaria entusiasmados elogios da crítica. 

Publicado em 1953, o romance "White hunter black heart", de Peter Viertel, é, a rigor, uma obra de ficção. Porém, logo em seu lançamento ficou claro para todos que se tratava de uma reimaginação a respeito dos bastidores das filmagens do clássico "Uma aventura na África", dirigido por John Huston e lançado em 1951. O filme, que deu a Humphrey Bogart seu único Oscar, teve uma produção conturbada, e Viertel, amigo de Huston, foi um de seus roteiristas, ainda que não creditado oficialmente. Testemunha de boa parte dos problemas da realização do filme, escreveu seu livro disfarçando os nomes dos envolvidos e alterando pequenos detalhes - providências insuficientes para evitar que o livro se tornasse quase um relato oficial, apesar dos protestos de gente que esteve no olho do furacão, como a estrela Katharine Hepburn, ela própria autora de um livro sobre o assunto, chamado "The African Queen, or How I went to Africa with Bogie, Bacall and Huston and almost lost my mind". Hepburn questionou boa parte da narrativa de Viertel, mas o fato é que, apesar de sua posição privilegiada junto à equipe, é uma personagem bastante secundária no filme de Eastwood - o foco de "Coração de caçador" é, conforme o título dá uma boa pista, a obsessão de John Huston (ou, em sua versão fictícia, John Wilson) em caçar um elefante durante sua estadia nas locações africanas.

 

A trama do filme se passa em 1951 e começa quando o famoso cineasta John Wilson (interpretado pelo próprio Clint Eastwood, em atuação discreta e com maneirismos imitando o célebre John Huston) convence seu produtor, Paul Landers (George Dzundza), a financiar seu arriscado novo projeto, "The African Trader", escrito por seu amigo Pete Verrill (Jeff Fahey). Apesar de estar afundado em dívidas e ser considerado excêntrico em excesso, Wilson acaba recebendo sinal verde e parte para a África com o roteirista e a equipe. O que ninguém sabe, porém - com exceção de Verrill - é que, mais até do que realizar sua nova obra cinematográfica, o que Wilson realmente deseja é matar um elefante durante um safári. Contando com a ajuda de guias locais, atrasando o cronograma e aproveitando a estação chuvosa como desculpa para o adiamento das filmagens, ele mergulha profundamente em sua obsessão - a ponto de preocupar os colegas e arriscar a própria vida. Enquanto a equipe aguarda o começo dos trabalhos, Wilson lida placidamente com a preocupação de Landers - que chega à locação disposto a forçar o começo dos trabalhos.

Lançado no Festival de Cannes de 1990, "Coração de caçador" agradou à crítica, que viu nele ecos de um Clint Eastwood mais maduro como cineasta, mas naufragou solenemente nas bilheterias. Talvez reflexo de um tema não exatamente popular, seu fracasso comercial não eclipsou, no entanto, as qualidades de seu resultado artístico. Magnificamente fotografado por Jack N. Green - ajudado pelas belas paisagens do Zimbabue - e com uma trilha sonora exuberante de Lennie Niehaus, colaborador frequente de Eastwood antes que ele mesmo passasse a cuidar da música de seus filmes, o 14º longa-metragem do diretor é uma bela homenagem às idiossincrasias do ser humano em geral - Wilson não se preocupava com coisas como ecologia mas não pensa duas vezes em sair no soco com racistas/nazistas e afins - e de John Huston em particular. Mesmo não tendo conhecido o veterano diretor pessoalmente, Eastwood o revive em uma caracterização caprichada, aprovada até mesmo por sua filha, Anjelica, com quem viria a trabalhar em "Dívida de sangue" (2002) - não muito longe do tom durão de seus personagens mais famosos, o diretor/ator/produtor abraça novos horizontes e novos temas em uma carreira que ainda daria muitos frutos e muitos sucessos. 

Em tempo: o filme que Eastwood fez para a Warner como parte do acordo para realização de "Coração de caçador" também não foi propriamente um grande êxito financeiro: "Rookie: um profissional do perigo", estrelado por ele mesmo, Charlie Sheen e Sônia Braga faturou pouco mais de 21 milhões de dólares no mercado doméstico (EUA e Canadá), contra um custo de aproximadamente 30 milhões. Já seu filme seguinte, "Os imperdoáveis" (1992) mudaria sua carreira para sempre, com um estrondoso sucesso comercial e o primeiro Oscar de melhor filme e direção.

sexta-feira

OS TRADUTORES


OS TRADUTORES (Les traducteurs, 2019, Trésor Films/Mars Films/France 2 Cinéma, 105min) Direção: Régis Roinsard. Roteiro: Régis Roinsard, Daniel Presley, Romin Compingt. Fotografia: Guillaume Schiffman. Montagem: Loic Lallemand. Música: Jun Miyake. Figurino: Emmanuelle Youchnovski. Direção de arte/cenários: Sylvie Olivé/Julien Tesseraud, Félix Guittet, Prune Lacroix. Produção: Alain Attal. Elenco: Lambert Wilson, Olga Kurylenko, Riccardo Scamarcio, Eduardo Noriega, Sidse Babett Knudsen, Alex Lawther, Anna Maria Sturm, Frédéric Chau, Maria Leite, Manolis Mavromatakis, Sara Giraudeau, Patrick Bauchau. Estreia:23/11/2019 (Festival de Francouzskych)

Se estivesse viva e fosse roteirista de cinema, certamente Agatha Christie estaria por trás de produções como "Os tradutores". Perceptivelmente calcado no estilo da escritora inglesa em criar seus mistérios, o filme franco-belga do diretor Régis Roinsard apresenta ao espectador uma trama repleta de reviravoltas, meias-verdades e personagens dúbios, em um entretenimento de visual atraente e - por que não?? - um interessante subtexto que questiona o mercado editorial e a prostituição da arte. Com um elenco internacional que conta com nomes conhecidos dos cinéfilos mais antenados - como o italiano Riccardo Scamarcio, o espanhol Eduardo Noriega, a ucraniana Olga Kurylenko e o francês Lambert Wilson - e referências culturais que remetem a obras universalmente reconhecíveis, "Os tradutores" é uma bela surpresa, uma mescla empolgante entre cinema e literatura que jamais se mostra pretensiosa e/ou hermética. De quebra, é uma homenagem aos profissionais da tradução, frequentemente relegados a segundo plano na indústria literária.

Na trama criada pelos roteiristas, o terceiro capítulo de "Dédalus" uma trilogia de vendagem avassaladora escrita por um recluso autor de nome Oscar Brach está para ser publicada. Em uma estratégia de marketing ousada, a editora, comandada pelo ambicioso Eric Angstrom (Lambert Wilson), resolve fazer um lançamento mundial, com tradução simultânea para vários idiomas - e assim evitar a pirataria, que ele considera a maior ameaça ao mercado. Para isso, ele contrata nove tradutores de lugares distintos do mundo para uma missão absolutamente secreta em um bunker localizado em um luxuoso castelo da França. O que poderia parecer o emprego dos sonhos na verdade é quase uma prisão: sem acesso a Internet e celular e sem contato com o mundo exterior, os escolhidos terão um período de trabalho árduo que nem mesmo o conforto é capaz de atenuar. Para piorar, depois de algum tempo de isolamento, as dez primeiras páginas do livro surgem online e um hacker exige uma fortuna para não prosseguir as publicações. Furioso e apavorado com a possibilidade de perder sua galinha dos ovos de ouro, Angstrom inicia então uma caçada ao responsável pelo vazamento - se utilizando de meios nem sempre éticos ou dentro da lei.

 

Servindo-se de idas e vindas no tempo, em uma edição que por vezes soa um tanto confusa mas que se justifica nos momentos finais, "Os tradutores" envolve o espectador em um redemoinho de traições, mentiras e pistas falsas que, conforme o andamento da projeção, vão se demonstrando cruciais para a verdade sobre o caso. Fugindo do clichê dos longos discursos e das revelações catárticas que frequentemente minam a credibilidade das produções hollywoodianas, os roteiristas optam, acertadamente, em resolver gradativamente as questões que levantam - um artifício que mostra sua inteligência quando tais resoluções apontam para outras perguntas talvez ainda mais intrigantes. Aos poucos a pergunta sobre quem é o hacker vai abrindo espaço para outras: quem é Oscar Brach? Qual a relação dele com Angstrom? Quem está na cadeia e por quê? E o que o passado de um determinado personagem tem a ver com a situação do momento - se é que tem? Mais do que simplesmente jogar indagações a esmo, o roteiro tenta organizá-las de forma a prender a atenção do público e buscar uma coerência interna satisfatória. Nem sempre consegue, mas o faz na maioria esmagadora do tempo, e ainda conta com um elenco de excelentes atores.

Mesmo que nem todos sejam explorados como poderiam, os atores que forspensmam o elenco de "Os tradutores" são um capítulo à parte. O italiano Riccardo Scamarcio, considerado um os mais promissores galãs do país, tem no currículo a ótima comédia "O primeiro que disse" (2010) - que deu origem ao execrável remake brasileiro "Quem vai ficar com Mário?"; o espanhol Eduardo Noriega é o protagonista de "Preso na escuridão" (1997), de Alejandro Amenábar, e "Plata quemada" (2000), de Marcelo Pinyero; Lambert Wilson é conhecido como Merovingian  de "Matrix Reloaded" (2003); Olga Kurylenko foi bondgirl em "007: Quantum of Solace" (2008) e o jovem Alex Lawther esteve no elenco de "O último duelo", de Ridley Scott e "A crônica francesa", de Wes Anderson, ambos lançados em 2021. Ao lado de outros intérpretes nem tão conhecidos mas igualmente talentosos, eles oferecem à plateia um quebra-cabeças envolvente que não hesita em homenagear explicitamente sua maior fonte de inspiração (Agatha Christie, quem mais?) em uma referência direta e carinhosa. Um filme sem contraindicações a quem busca diversão inteligente.

quinta-feira

A METADE NEGRA


A METADE NEGRA (The dark half, 1993, Orion Pictures, 122min) Direção: George A. Romero. Roteiro: George A. Romero, romance de Stephen King. Fotografia: Tony Pierce-Roberts. Montagem: Pasquale Buba. Música: Christopher Young. Figurino: Barbara Anderson. Direção de arte/cenários: Cletus Anderson/Jane Catherine Hyland, Brian J. Stonestreet. Produção executiva: George A. Romero. Produção: Declan Baldwin. Elenco: Timothy Hutton, Amy Madigan, Michael Rooker, Robert Joy, Rutanya Alda, Tom Mardirosian. Estreia: 23/3/93

Publicado em 1989, o livro "A metade negra", de Stephen King tem, em seu cerne, várias ligações pessoais com seu autor. Última obra sua antes de abandonar de vez o álcool, a trama reflete, segundo ele mesmo, a batalha de duas personalidades pelo domínio da mente de um escritor. Além disso, sua premissa espelha os fatos que levaram à revelação de que era ele, na verdade, o homem que vinha publicando, com sucesso, vários livros com o pseudônimo de Richard Bachman. À parte esses detalhes particulares, centrar seu foco em um protagonista escritor não era novidade a King - basta lembrar, entre as obras adaptadas para o cinema, de "O iluminado" (1980) e "Louca obsessão" (1990) - e o encontro do mestre do terror literário norte-americano com George A. Romero, um dos maiores expoentes do gênero na sétima arte, parecia um projeto dos sonhos para os fãs. Para frustração de todos, no entanto, as coisas não correram como o esperado: finalizado em 1991, o filme de Romero demorou quase dois anos para chegar às telas, vítima dos problemas financeiros da Orion Pictures, e fracassou nas bilheterias, não arrecadando, no mercado doméstico (EUA e Canadá), nem mesmo o suficiente para cobrir seu orçamento de aproximadamente 15 milhões de dólares. Dividindo a crítica mas agradando ao público-alvo - graças a uma adaptação bastante fiel -, "A metade negra" ficou no meio do caminho: não é um fiasco como algumas versões de obras de King mas tampouco chega a ser um filme inesquecível.

Quando assumiu as rédeas de "A metade negra", Romero não assinava um longa-metragem inteiro desde "Instinto fatal" (1988) - em "Dois olhos satânicos" (1990) ele havia dirigido apenas um episódio, deixando o outro a cargo de Dario Argento - e seu retorno, principalmente em uma trama criada por Stephen King, deixou todo mundo empolgado. Os problemas, no entanto, já começaram nas filmagens, com constantes atritos entre diretor e ator principal. Premiado com o Oscar de coadjuvante por sua estreia no cinema, em "Gente como a gente" (1980), Timothy Hutton não emplacava um sucesso há muito tempo, e sua relação com o veterano cineasta não era exatamente das mais tranquilas - uma das brigas chegou a resultar em um quase abandono do projeto, retomado depois de alguns dias. Com o filme pronto, outro baque: em sérias dificuldades comerciais, o estúdio por trás da produção, a Orion, foi obrigado a adiar indefinidamente a estreia. Parecia que os ventos realmente não estavam favoráveis, e o lançamento, quase dois anos depois do prazo inicialmente previsto, também não foi dos mais auspiciosos: com desempenho medíocre de bilheteria e críticas mornas, o filme de Romero perdeu a oportunidade de ficar marcado como uma das obras mais importantes do cinema de terror dos anos 1990.

 

O protagonista de "A metade negra" é Thad Beaumont (Timothy Hutton), escritor e professor universitário que esconde, de seus alunos e do público em geral, ser o verdadeiro autor de uma bem-sucedida série de livros assinada por um tal de George Stark. Tendo mantido em segredo por anos seu pseudônimo, Beaumont se vê chantageado por um desconhecido que ameaça desmascará-lo e por em xeque seu atual prestígio. Para evitar tal situação, ele mesmo revela o caso, e dá uma entrevista onde figurativamente mata Stark - com direito a foto em um túmulo. Quando o fotógrafo da matéria é assassinado, Thad é procurado pelo xerife Alan Pangborn (Michael Rooker) e descobre ser o principal suspeito do crime. O que parecia absurdo fica ainda mais inacreditável quando outras pessoas ligadas ao escritor passam a ser violentamente mortas - tudo indica que o responsável pelos crimes é George Stark, a personalidade sombria de Thad, que se recusa a ser abandonada e deseja assumir o domínio sobre ele. Cabe então ao atormentado autor evitar mais mortes, provar sua inocência (??) e manter a salvo sua mulher, Liz (Amy Madigan) e seus dois filhos gêmeos - uma estrutura familiar que lembraria a da sua infância, caso ele não tivesse absorvido, em seu organismo, um irmão que não se desenvolveu de forma normal.

O problema de "A metade negra" não é a adaptação - que segue o material original com fidelidade quase canina - nem a direção de Romero - que explora com gosto todas as possibilidades visuais de um romance bastante violento. Tampouco o responsável é Timothy Hutton, um ator de grandes recursos e que consegue viver as duas faces do protagonista de forma convincente e orgânica. O que prejudica o resultado final é a edição pouco ágil - o corte de uns bons quinze minutos faria maravilhas - e a falha do roteiro em oferecer verossimilhança aos personagens. A forma com que Thad lida com o fato de ser acusado de uma série de brutais assassinatos e a maneira com que tenta convencer o xerife de que o responsável é alguém criado em sua imaginação, por exemplo, não soam naturais nem mesmo dentro do universo ficcional em que estão inseridas. E se as cenas dos assassinatos são, em sua maioria, empolgantes, o clímax não deixa de ser um tanto cansativo - justamente por se estender demais. Enquanto estabelece seu clima, oferece a violência gráfica esperada de um produto George A. Romero e brinda o espectador com a lealdade ao texto de Stephen King, "A metade negra" brilha e envolve. Uma pena que, em seu terço final, perca a potência, ao abraçar o trash - que mesmo sendo característica do diretor, destoa do tom até então apresentado. Mesmo assim, é uma produção acima da média no gênero e sobrevive bem ao teste do tempo, principalmente pelo esforço do elenco.

quarta-feira

EDUARDO E MÔNICA


EDUARDO E MÔNICA (Eduardo e Mônica, 2020, Gávea Filmes/Barr Company/Fogo Cerrado/Globo Filmes) Direção: Renê Sampaio. Roteiro: Claudia Souto, Jessica Candal, Matheus Souza, Michele Frants, canção de Renato Russo. Fotografia: Gustavo Hadba. Montagem: Lucas Gonzaga, Letícia Giffoni. Música: Pedro Guedes, Fabiano Krieger, Lucas Marcier. Figurino: Valeria Stefani. Direção de arte/cenários: Tiago Marques Teixeira. Produção executiva: Gabriel Bortolini, Mariana Ricciardi. Produção: Bianca De Felippes, Juliana Funaro, Renê Sampaio. Elenco: Alice Braga, Gabriel Leone, Otávio Augusto, Juliana Carneiro da Cunha, Victor Lamoglia. Estreia: 08/3/2020 (Festival de Miami)

Eduardo abriu os olhos mas não quis se levantar: ficou deitado e viu que horas eram, enquanto Mônica tomava um conhaque noutro canto da cidade, como eles disseram...

Não havia quem ouvisse rádio na segunda metade da década de 1980 que não conhecesse a terna história de amor de Eduardo e Mônica, personagens principais de uma das mais populares obras da banda Legião Urbana. Lançada no álbum "Dois", de 1986, a canção tornou-se, com o tempo, atemporal e parte do inconsciente coletivo nacional, conhecida até mesmo por aqueles para quem o grupo liderado por Renato Russo não passa de uma peça de museu. Como uma crônica irônica e ao mesmo tempo sensível de um tempo e uma geração, a quilométrica letra de Russo já era, desde sua gênese, um roteiro implorando para ser filmado - e diante disso até que demorou para que Eduardo e Mônica passassem de ícones culturais oitentistas a protagonistas de uma produção cinematográfica. Dirigido pelo mesmo Renê Sampaio que traduziu outra obra de Russo para as telas - o polêmico "Faroeste Caboclo", de 2013 - e estrelado pelos carismáticos Alice Braga e Gabriel Leone, a versão em carne de osso dos improváveis amantes teve seu lançamento atrasado pela Covid-19 (sua pré-estreia aconteceu em março de 2020, no Festival de Miami), mas finalmente chegou ao público. A boa notícia: apesar de alguns probleminhas de ritmo e de uma segunda metade que praticamente abandona o material original, o resultado final é leve, agradável e romântico na medida certa. 

A primeira metade do roteiro de Claudia Souto, Jessica Candal, Matheus Souza e Michele Frantz segue quase à risca a letra de Renato Russo. Está tudo lá: Mônica fazendo Medicina, falando alemão, gostando de Bauhaus e Rimbaud; Eduardo vendo novela e jogando futebol de botão com seu avô; as diferenças dos dois como combustível para a paixão nascente. Nessa fase, é fascinante a maneira como Renê Sampaio se utiliza dos anos 1980 como cenário de um período onde tudo apontava para tempos melhores. A trilha sonora repleta de hits da época ajuda não apenas a situar cronologicamente a trama, mas também para comentar a ação - por coincidência, a balada "Total Eclipse Of The Heart", clássico de Bonnie Tyler, que serve como catarse para uma divertida sequência, também serve como apoio no belo "Deserto particular", de Aly Muritiba - e não deixa de ser inteligente acrescentar um tom político à trama. Se a música da Legião Urbana sequer tocava em temas espinhosos, o filme de Sampaio faz do avô de Eduardo um militar aposentado e conservador e do falecido pai de Mônica um comunista exilado durante a ditadura. Tal subtrama não chega a ser desenvolvida como poderia, mas levando-se em conta que a história se passa em Brasília no período da abertura democrática, não deixa de ser interessante - principalmente graças ao talento de Otávio Augusto dando vida a um famigerado "cidadão de bem".

 

A segunda metade do filme, no entanto, deixa de lado o que se conhece para apostar na fórmula já consagrada do cinema romântico a que todos estão acostumados. Separados por motivos profissionais, Eduardo e Mônica precisam lidar com a distância, com as inseguranças a respeito de suas diferenças - as mesmas que os atraíram a princípio - e com todas as questões complicadas atreladas a um relacionamento. A queda do ritmo nessa fase da narrativa é perceptível, e é de se questionar os motivos que levaram os roteiristas a tal opção - talvez os mesmos que fizeram com que a versão para as telas de  Faroeste Caboclo tenha sido tão diferente de sua origem musical. Na tentativa de fugir do previsível e do óbvio, os realizadores de "Eduardo e Mônica" acabaram por desfigurar uma história já consagrada na mente de milhões de fãs. Para sua sorte, contam com atores do nível de Alice Braga e Gabriel Leone - ele, principalmente, transmite toda a gama de sentimentos de seu Eduardo com segurança de veterano, e impede que os clichês atrapalhem a diversão. É difícil não se identificar com seu adolescente desajeitado apaixonado por uma mulher mais velha e experiente - justamente a questão que fez com que todo mundo, por décadas a fio, questionasse se existe razão nas coisas feitas pelo coração.

"Eduardo e Mônica" é um drama romântico com tudo que isso tem de bom e de ruim. É repleto de lugares-comuns, é previsível e não se preocupa em aprofundar psicologicamente seus personagens. Porém, é agradável, é simpático, é leve e tem um irresistível apelo nostálgico que disfarça muito bem seus defeitinhos. Renato Russo estaria orgulhoso!

terça-feira

MORRENDO E APRENDENDO


MORRENDO E APRENDENDO (Heart and souls, 1993, Universal Pictures, 104min) Direção: Ron Underwood. Roteiro: Brent Maddock, S.S. Wilson, Gregory Hansen, Erik Hansen, estória de Gregory Hansen, Erik Hansen, Brent Maddock, S.S. Wilson, curta-metragem de Gregory Hansen. Fotografia: Michael Watkins. Montagem: O. Nicholas Brown. Música: Marc Shaiman. Figurino: Jean-Pierre Dorleac. Direção de arte/cenários: John Muto/Anne Ahrens. Produção executiva: Cari-Esta Albert, James Jacks. Produção: Sean Daniel, Nancy Roberts. Elenco: Robert Downey Jr., Kyra Sedgwick, Tom Sizemore, Charles Grodin, Alfre Woodard, Elisabeth Shue, David Paymer. Estreia: 13/8/93
 

O sucesso avassalador de "Ghost: do outro lado da vida", que em 1990 pegou até mesm a Paramount de surpresa, ao tornar-se um enorme êxito comercial e concorrer ao Oscar de melhor filme (além de ter arrebatado duas estatuetas), fez com que os estúdios de Hollywood começassem a prestar mais atenção em roteiros que explorassem, de uma forma ou outra, a espiritualidade. Nenhum deles resultou em um filme memorável - até mesmo o esperado "A mulher do açougueiro", estrelado pela mesma Demi Moore, fracassou retumbantemente -, mas algumas produções acabaram injustamente renegadas, tidas como subprodutos oportunistas enquanto, na verdade, tinham qualidades o bastante para, no mínimo, fazer uma bela carreira como cult. É o caso de "Morrendo e aprendendo", emocionante e divertida comédia dramática dirigida por Ron Underwood que passou praticamente em branco nos cinemas - e, no caso de países como Inglaterra e Hungria, foi lançado diretamente em vídeo: com um roteiro bem amarrado, atuações precisas e um tom acertadamente nostálgico, o filme cativa logo nos primeiros minutos e, se não chega a ser uma obra-prima ou um marco na carreira dos envolvidos, ao menos não faz feio em sua tentativa de emocionar aos mais sensíveis.

Originado de um curta-metragem de nove minutos dirigido pelo corroteirista Gregory Hansen, "Morrendo e aprendendo" chegou aos cinemas quando seu astro, Robert Downey Jr., já estava devidamente reconhecido como um dos mais promissores astros de sua geração - prestígio alcançado pelos prêmios conquistados por seu desempenho em "Chaplin" (1992). Isso não impediu, no entanto, que naufragasse solenemente nas bilheterias e se tornasse, com o tempo, um dos trabalhos menos lembrados do ator - que, apesar dos pesares, o considera um de seus filmes preferidos. Não é para menos: anos antes de atingir o status de grande astro com "Homem de ferro" (2008), ele teve a oportunidade de exercitar seu timing cômico, seu carisma e seus dotes dramáticos, com um protagonista que, em outros tempos, poderia muito bem ter sido interpretado por Cary Grant. E isso que ele só aparece depois de meia hora de projeção.

 

"Morrendo e aprendendo" começa em 1959, quando duas situações completamente opostas confluem em uma terceira. Em um delas, um trágico acidente com um ônibus causa a morte do motorista e dos quatro passageiros. Em outra, um casal comemora o nascimento do primeiro filho, Thomas, ocorrido quase ao mesmo tempo. Presos à Terra mesmo depois da morte, as vítimas acabam se tornando anjos da guarda do menino, que pelos próximos sete anos, conviverá com eles com naturalidade e segurança - pelo menos até que eles percebam que sua presença está atrapalhando o desenvolvimento natural da criança. Sempre presentes em sua vida, mesmo que invisíveis, os quatro espíritos acabam por voltar à ciência de Thomas anos mais tarde, quando Thomas já é um adulto bem sucedido profissionalmente - ainda que com sérios problemas em assumir um compromisso com a bela namorada, Anne (Elisabeth Shue): procurados pelo motorista do ônibus, Hal (David Paymer), eles descobrem que deveriam ter aproveitado seu tempo ao lado do rapaz para resolver as pendências deixadas no momento de suas mortes. Com os dias contados antes de partirem definitivamente, eles precisam, então, contar com a ajuda do incrédulo jovem para limpar as arestas de suas vidas - o que não é exatamente tarefa das mais fáceis.

Milo Peck (Tom Sizemore), um ladrão de galinhas, embarcou no ônibus depois de arrumar encrenca com um de seus contratantes - que lhe pagou para roubar, de uma criança, uma revista em quadrinhos rara e valiosa. Harrison Winslow (Charles Grodin) sofria com uma timidez atroz, que o impedia de fazer carreira como cantor lírico. Julia (Kyra Sedgwick) estava em crise no relacionamento com o namorado, a quem amava apesar de não ter a coragem de dar um passo definitivo. E Penny Washington (Alfre Woodard), uma mãe solteira, tinha dúvidas a respeito de sua competência materna em cuidar sozinha de três crianças. Com a possibilidade de usar o corpo de Thomas para encerrarem seus ciclos terrenos, os quatro partem em busca de redenção, em uma jornada que envolve risos, lágrimas e música. Para sorte do espectador, cada etapa dessa trajetória é apresentada de forma lúdica e orgânica: até mesmo as coincidências que surgem no caminho dos personagens soam plausíveis - responsabilidade de um roteiro sem medo de mergulhar na emoção e de protagonistas adoráveis, capazes de conquistar o público sem fazer muito esforço. Dirigido com sensibilidade por um Ron Underwood que acabara de assinar "Amigos, sempre amigos" (1991) - que deu o Oscar de coadjuvante a Jack Palance - e passaria à televisão já no começo dos anos 2000, "Morrendo e aprendendo" é uma delícia de sessão da tarde, um filme despretensioso e leve que mostrava, já em 1993, o imenso talento de Downey Jr..

segunda-feira

NA CAPTURA DOS FRIEDMAN


NA CAPTURA DOS FRIEDMAN (Capturing the Friedmans, 2003, HBO Documentary, 107min) Direção: Andrew Jarecki. Fotografia: Adolfo Doring. Montagem: Richard Hankin. Música: Andrea Morricone. Direção de arte: Nava Lubelski. Produção: Andrew Jarecki, Marc Smerling. Estreia: 17/01/2003 (Festival de Sundance)

Indicado ao Oscar de Melhor Documentário

No começo dos anos 2000, o cineasta Andrew Jarecki estava trabalhando na produção de um documentário que falaria sobre pessoas que ganhavam a vida como palhaços em festas de aniversário infantis em Nova York. Sua pesquisa o levou até David Friedman, considerado então o melhor profissional do ramo, na cidade. Mal sabia Jarecki que tal encontro o levaria a caminhos bem diferentes em sua carreira - incluindo uma indicação ao Oscar e uma polêmica que chegou a questionar o sistema judiciário norte-americano. "Na captura dos Friedman", o filme que gerou tanta controvérsia e o colocou na luta pela estatueta da Academia é, ainda hoje, quase duas décadas depois de seu lançamento, uma produção capaz de fazer questionar não apenas os desdobramentos de uma história no mínimo dúbia - mas também o papel da mídia na divulgação e cobertura de crimes graves.

O encontro de Jarecki com David Friedman o apresentou a uma história que lhe pareceu muito mais interessante e promissora do que seu projeto original - que foi lançado como extra na versão em DVD de "Na captura dos Friedman" nos EUA. Em 1987, seguindo uma investigação sobre pornografia infantil, a polícia chegou até a casa de Arnold Friedman  - um conhecido professor de computação para pré-adolescentes, pai de família e membro respeitado da comunidade de Great Neck, Long Island. Ao confessar ser receptador do material, Arnold acabou por dar margem a um aprofundamento maior àsinvestigações, e viu sua vida completamente destruída a partir daí. Acusado de molestar sexualmente seus alunos - devidamente interrogados pelas autoridades -, o aparentemente exemplar cidadão é preso juntamente com seu filho caçula, Jesse (de dezoito anos de idade), igualmente acusado pelos crimes. Enquanto aguardam julgamento em liberdade, pai e filho lidam com a pressão da vizinhança, da imprensa, da opinião pública e, mais grave ainda, da própria família. Enquanto os filhos mais velhos, David e Seth, acreditam na inocência do pai e do irmão mais jovem, Elaine, a esposa de Arnold, não tem tanta certeza assim - e essa desconfiança é a pá de cal na harmonia familiar.


 

Repleto de imagens registradas por David em filmes caseiros feitos durante o período pré-julgamento - e que acabaram sendo providenciais para a edição final do documentário de Jarecki -, "Na captura dos Friedman" é um estudo fascinante sobre a dissolução de um núcleo familiar de aparência sólida e, ao mesmo tempo, um inquietante drama policial, em que nada parece ser exatamente o que é. Mesmo que o filme seja perceptivelmente favorável à teoria de que as investigações sobre os abusos sexuais foram em boa parte forjadas - por interrogatórios duvidosos e tecnicidades que acabaram por prejudicar os réus -, há muito espaço, entre as entrevistas, as imagens de arquivo e as consequências do caso em si, para vastos questionamentos. O próprio Arnold Friedman assume, em determinado momento, que não a imagem que sempre transmitiu não corresponde à realidade: não apenas confessa ser pedófilo, mas revela também já ter cometido abusos sexuais em menores (fato nunca confirmado por qualquer evidência, mas mesmo assim perturbador). E o que dizer da possibilidade de Jesse ter sido molestado pelo próprio pai? Verdade ou jogada da defesa para diminuir a pena do rapaz? E as entrevistas do filme com as alegadas vítimas do professor - postas em xeque depois da estreia, por suas inconsistências? Nada é definitivo em "Na captura dos Friedman" - o que explica seus desdobramentos judiciais, que se mantiveram ativos por muitos anos depois da morte do patriarca.

As críticas feitas a "Na captura dos Friedman" à época de seu lançamento tinham muito mais a ver com a postura dúbia do cineasta em relação à culpa ou não de seus protagonistas do que a respeito do filme em si. Realmente há pouco do que reclamar em relação ao documentário de Andrew Jarecki - que depois mergulharia na história de outro réu célebre nos EUA, com o filme "Entre segredos e mentiras" (2010), estrelado por Ryan Gosling e Kirsten Dunst, e com a série documental "The Jinx: a vida e as mortes de Robert Durst" (2015): mantendo o interesse do público até seu último minuto, graças a uma edição ágil mas recheada de informações, o diretor conduz seu trabalho com seriedade e respeito aos envolvidos, evitando ao máximo o sensacionalismo barato. O resultado final pode até ser discutido em termos morais, éticos e/ou jurídicos, mas enquanto cinema é daqueles filmes de tirar o fôlego.

sexta-feira

BAGDAD CAFÉ


BAGDAD CAFÉ (Bagdad Cafe, 1987, Palemele Film/Pro-jetc Filmproduktion, 95min) Direção: Percy Adlon. Roteiro: Percy Adlon, Eleonore Adlon. Fotografia: Bernd Heinl. Montagem: Norbert Herzner. Música: Bob Telson. Figurino: Regine Batz, Elizabeth Warner. Direção de arte/cenários: Bernt Amadeus Capra/Byrnadette DiSanto. Produção: Percy Adlon, Eleonore Adlon. Elenco: Marianne Sagebrecht, CCH Pounder, Jack Palance, Christine Kaufmann, Monica Calhoun. Estreia: 12/11/87

Indicado ao Oscar de Canção Original ("Calling you")

Premiada no Festival Internacional de Cinema do Rio em 1988, a comédia dramática "Bagdad Café" tornou-se, com o passar do tempo, um cult movie por excelência e o mais duradouro e aplaudido cartão de visitas de seu diretor, Percy Adlon. Terceiro filme do cineasta alemão que ficou conhecido no Brasil por seu "Estação Doçura" (1984), a história da inusitada amizade entre duas mulheres com muito mais em comum do que as aparências mostram em um primeiro olhar conquistou as plateias internacionais e chegou a concorrer a um Oscar - o de melhor canção, quando a bela "Calling you" perdeu para a popular e deliciosa "Let the river run", de Carly Simon, tema do filme "Uma secretária de futuro". De narrativa simples, ainda que permeado de alguns lances visuais criativos e que apontam para um estilo próprio, o filme de Adlon pode soar estranho a uma plateia acostumada com as produções hollywoodianas, mas bastam poucos minutos para que seu universo atípico envolva o espectador de forma calorosa e inevitável.

A estranheza já começa nos primeiros momentos, quando a protagonista, Jasmin (Marianne Sagebrecht, parceira do diretor em três produções) é abandonada pelo marido no meio do deserto do Arizona, de mala, cuia e completa desorientação geográfica e física. O público não entende os motivos da briga e nem como o casal de alemães foi parar no caminho para Las Vegas - com o tempo, isso nem irá ter muita importância - e logo se vê também diante de outra personagem feminina forte mas aparentemente oposta - Brenda (CCH Pounder) é forte, determinada e irascível, e aprendeu na marra a sobreviver a um mundo pouco hospitaleiro a mulheres, especialmente negras pouco dispostas a seguir mansamente as regras impostas pelo patriarcado. Brenda acaba de expulsar o marido do posto-motel que administra na beira da estrada, o Bagdad Cafe, e passa os dias lidando com os hóspedes desajustados - em especial o pintor e hippie Rudi Cox (Jack Palance) e a tatuadora Debby (Christine Kaufman) - e os três filhos, que lhe dão problemas o bastante. A mais velha, Phyllis (Monica Calhoun), é uma adolescente que se envolve com os caminhoneiros que passam pelo local; o do meio, Sal (Darron Flagg), passa os dias praticando música no piano (e irritando aos menos pacientes); e o bebê de colo, a quem precisa dar atenção constante. Logo de cara Brenda não simpatiza com Jasmine, uma hóspede de modos estranhos e pouco comuns, mas conforme o tempo vai passando surge uma relação inesperada entre elas: com seu jeito de ser afável, Jasmine rompe a bolha raivosa de Brenda e conquista todos a seu redor.

 

A forma com que Adlon narra a transformação do tedioso e melancólico hotel de Brenda em um local festivo e repleto de calor humano é um dos maiores destaques de "Bagdad Café". O roteiro não se satisfaz em apenas mostrar o gradativo descobrimento das semelhanças entre suas duas protagonistas através de suas vidas sofridas e/ou difíceis - cada uma dentro de seu espectro social, racial e cultural. De maneira inteligente, a trama vai se desdobrando diante do espectador com seu ritmo quase contemplativo, mergulhando-o em um cotidiano modorrento e sem grandes lances dramáticos, até que seja quase impossível abandoná-lo. Ao lançar um olhar poético e carinhoso até mesmo a situações problemáticas (como os romances fugazes de Phyllis com homens mais velhos), o filme permite ao público que goste inclusive de personagens pouco simpáticos, oferecendo a eles a oportunidade de mostrar suas qualidades mais recônditas. É assim com a agressiva Brenda - que, conforme a história avança, revela um lado menos bruto de sua personalidade - e até com a dócil Jasmine - cuja inteligência em lidar com as adversidades irá salvá-la da solidão e empurrá-la em direção a relacionamentos mais saudáveis e completos. É através de um show de mágicas (uma solução lúdica e emocionante) que a forasteira misteriosa - ao menos para aqueles que se conhecem há muito tempo e convivem sem maiores sobressaltos - irá unir os hóspedes e clientes do posto/café, e transformá-los em uma uma grande família (a ponto de uma hóspede preferir ir embora a ter de viver "com tanta harmonia").

"Bagdá café" não chega a aprofundar-se em questões que futuramente seriam cruciais em histórias essencialmente femininas - violência doméstica, machismo, abandono parental, prostituição - ou universais - racismo, xenofobia -, mas acerta em cheio ao apostar na sororidade e identificação entre duas protagonistas ao mesmo tempo distantes e tão próximas. Para isso, conta com as atuações iluminadas de Marianne Sagebrecht (de "Estação Doçura" e "Rosalie vai às compras", ambos de Percy Adlon, e que fez pouca coisa em Hollywood, sendo relegada a segundíssimo plano em "A guerra dos Roses", de 1989) e CCH Pounder (cujo currículo inclui sucessos de bilheteria, como "Avatar" e "A órfã"): juntas, elas transformam a experiência de se assistir ao filme de Adlon um passatempo ao mesmo tempo agradável e de uma profundidade emocional que justifica seu êxito internacional. Além disso, a produção ainda conta com a luxuosa participação especial do veterano Jack Palance antes de seu Oscar de coadjuvante e em um papel completamente destoante da persona violenta que criou em sua longa carreira. Um triunfo delicado e sutil

quinta-feira

ARTHUR: O MILIONÁRIO SEDUTOR


ARTHUR: O MILIONÁRIO SEDUTOR (Arthur, 1981, Orion Pictures, 97min) Direção e roteiro: Steve Gordon. Fotografia: Fred Schuler. Montagem: Susan E. Morse. Música: Burt Bacharach. Figurino: Jane Greenwood. Direção de Arte/Cenários: Stephen Hendrickson/Carol Joffe, Steven J. Jordan. Produção executiva: Charles H. Joffe. Produção: Robert Greenhut. Elenco: Dudley Moore, Liza Minelli, John Gielgud, Geraldine Fitzgerald, Jill Eikenberry. Estreia: 17/7/81

4 indicações ao Oscar: Ator (Dudley Moore), Ator Coadjuvante (John Gielgud), Roteiro Original, Canção Original ("Arthur's Theme (Best you can do")

Vencedor do Oscar de Canção Original: "Arthur's Theme (Best you can do)"

Vencedor de 4 Golden Globes: Melhor Filme Comédia/Musical, Ator Comédia/Musical (Dudley Moore), Ator Coadjuvante (John Gielgud), Canção Original ("Arthur's Theme (Best you can do)")

Nem só de dramas lacrimosos e épicos históricos vive a cerimônia do Oscar. Em 1981, mesmo ano em que "Carruagens de fogo" surgiu como o grande vencedor da festa da Academia, contra pesos-pesados como "Num lago dourado", "Reds" e "Caçadores da arca perdida", uma comédia romântica de grande sucesso popular demonstrou um poder de fogo inesperado, arrebatando duas das quatro estatuetas douradas a que estava indicada. "Arthur, o milionário sedutor", único filme escrito e dirigido por Steve Gordon (que morreu precocemente, aos 44 anos, em novembro de 1982) não apenas acabou a temporada como a quarta maior bilheteria do ano (com quase 100 milhões de dólares arrecadados pelo mundo) como conquistou a crítica a ponto de ganhar quatro Golden Globes (incluindo melhor filme e ator em comédia/musical) e chegar ao Oscar com moral suficiente para colocar Dudley Moore na disputa com nomes fortes como Paul Newman, Burt Lancaster e Henry Fonda - que acabou prevalecendo depois de uma carreira longa e vitoriosa. Estrelado ainda por uma Liza Minelli no auge da graça e da popularidade e por um John Gielgud brilhante em sua elegância britânica, "Arthur" se tornou, com o tempo, um incontestável clássico contemporâneo que nem mesmo a refilmagem desnecessária e sofrível estrelada por Russell Brand e Helen Mirren em 2011 conseguiu estragar.

Excêntrico, alcóolatra contumaz, mulherengo e de língua ferina, Arthur Bach não é apenas o personagem-título do longa de Gordon, mas seu centro absoluto - assim como suas relações com o fiel mordomo Hobson (John Gielgud) e a espevitada Linda Marolla (Liza Minnelli). Mas se é impensável imaginar ator mais apropriado do que o impagável Dudley Moore para vivê-lo, é preciso saber que o britânico estava bem longe de ser a primeira escolha do diretor. E nem apenas George Segal foi substituído por ele, como já havia acontecido em "Mulher nota dez" (1979): na lista de possíveis intérpretes para Arthur figuraram Al Pacino, James Caan, John Travolta, John Belushi, Robert Redford, Jeff Bridges, Chevy Chase, Steve Martin, Bill Murray, Jack Nicholson, Sylvester Stallone, Robin Williams, Burt Reynolds e Tom Selleck - um verdadeiro quem é quem na indústria no começo dos anos 1980. O êxito absoluto de Moore no papel não deixa de ser mérito do cineasta, que admitiu depois do lançamento, que suas dúvidas a respeito do ator central não eram as únicas a lhe atormentar: nada menos que quatro finais diferentes foram filmados e somente no processo de edição as coisas finalmente entraram nos eixos - detalhe que não impediu que o roteiro original fosse indicado ao Oscar e de certa forma servisse de influência a todas as comédias românticas que viriam a seguir.


A trama de "Arthur" não é exatamente inovadora - e nem o era à época de seu lançamento: o protagonista é um milionário irresponsável mas de bom coração que passa seus dias (ou melhor, noites) bebendo e dando em cima de toda bela mulher que passa em seu caminho. Seu fiel escudeiro, o mordomo Hobson, está sempre à espreita, consertando seus erros e tentando amenizar as consequências de seus atos tresloucados causados pelo excesso de bebida. Por trás da existência errática de Arthur, no entanto, existe um grande problema: a pressão para que se case com outra milionária, a deslumbrada Susan Johnson (Jill Eikenberry), única condição para que não tenha todo o seu dinheiro bloqueado por seu pai e sua avó. Pouco tempo antes de tomar a decisão mais importante de sua vida, porém, Arthur esbarra em Linda Marolla (Liza Minnelli), uma garçonete espevitada e de bem com a vida, que mora com o pai, Ralph (Barney Martin), e lhe mostra uma existência mais leve e distante do luxo a que está acostumado. Apaixonado por ela, o milionário precisa decidir entre o dinheiro e o amor - e descobrirá que a decisão não é tão fácil quanto poderia parecer.

"Arthur" é uma comédia deliciosa, que faz rir de forma orgânica e conquista pela simpatia dos atores principais - uma química preciosa que por pouco não aconteceu. Além da dificuldade de escalar um ator apropriado para viver o protagonista masculino, a produção também sofreu para encontrar uma atriz capaz de dividir a cena com Dudley Moore de forma a não ser eclipsada. Antes que Liza Minnelli entrasse no jogo, Carrie Fisher e Debra Winger já haviam recusado o papel, e na lista de possíveis intérpretes para a carismática Linda Marolla constavam Mia Farrow, Goldie Hawn, Farrah Fawcett, Barbara Hershey, Diane Keaton, Jessica Lange, Bette Midler, Susan Sarandon, Cybill Sheperd e Meryl Streep. A entrada de Minnelli no projeto se aproveitava do sucesso pós-Oscar por "Cabaret" (1977), mas é impossível não perceber que, apesar de seu talento incontestável, sua personagem é pouco desenvolvida, praticamente vivendo em função de seu relacionamento com Arthur. Quando juntos, ela e Dudley Moore brilham cintilantes - mas é uma pena a trama muitas vezes se desloque para as desventuras familiares do ricaço, em detrimento de seu nascente e divertido romance. Isso não impede, no entanto, que o filme de Steve Gordon seja um passatempo dos mais agradáveis e felizes de sua época

quarta-feira

DE-LOVELY: VIDA E AMORES DE COLE PORTER


DE-LOVELY: VIDA E AMORES DE COLE PORTER (De-lovely, 2004, MGM Pictures, 125min) Direão: Irwin Winkler. Roteiro: Jay Cocks. Fotografia: Tony Piece-Roberts. Montagem: Julie Monroe. Figurino: Janty Yates. Direção de arte/cenários: Eve Stewart/John Bush. Produção executiva: Simon Channing Williams, Gail Egan. Produção: Rob Cowan, Charles Winkler, Irwin Winkler. Elenco: Kevin Line, Ashley Judd, Jonathan Pryce, Kevin McNally, Sandra Nelson, Allan Corduner, Kevin McKidd. Estreia: 22/5/2004 (Festival de Cannes)

Um dos mais influentes compositores populares dos EUA, Cole Porter deixou sua marca indelével de elegância e inteligência em centenas de canções antológicas, que ultrapassaram os limites dos palcos da Broadway, dos estúdios de Hollywood e de gravações clássicas de nomes como Frank Sinatra, Bing Crosby e Gene Kelly. Símbolo de um período de glamour que o surgimento de gêneros musicais bem menos sutis fez desaparecer, Porter viu sua vida ser transformada em filme - o romântico e pouco confiável "Canção inesquecível" (1946) - e morreu em 1964 depois de uma série de problemas de saúde e perdas irreparáveis que fizeram de seus últimos anos um período melancólico e pouco produtivo. E levando-se em conta sua importância para a cultura - tanto em termos locais quanto internacionais -, não deixa de ser surpreendente que tenham levado quatro décadas desde sua morte para que finalmente contassem sua história de forma digna. "De-lovely: vida e amores de Cole Porter" pode não ser a obra-prima que poderia, mas é uma produção que faz jus a tudo que seu protagonista representou, representa e representará no futuro, ao aproximar suas inesquecíveis canções do tom de modernidade que sempre foram sua maior característica. Com um Kevin Kline impecável no papel central - a ponto de cantar e dançar sem artifícios baratos -, o filme do bissexto Irwin Winkler (seis filmes em treze anos) é uma ode ao artista e ao homem, recheada de excelentes números musicais e com uma caprichada reconstituição de época.

Contada em formato de musical, como convém, a história de Cole Porter é mostrada, em "De-lovely", em três atos, através de flashbacks, onde o próprio Porter vê sua vida reconstituída enquanto um espetáculo sobre ele é montado sob a supervisão do atencioso Gabe (Jonathan Pryce). O primeiro ato se concentra nos primeiros anos do relacionamento entre o compositor e a socialite Linda Lee Thomas (Ashley Judd) - ela divorciada e presença frequente nas melhores festas da alta sociedade, ele notoriamente homossexual e a alma das recepções, com seu humor afiado e sofisticação à toda prova. Casado e compreendido, Porter se vê encorajado a tornar-se compositor profissional, depois de temporadas em Veneza e Nova York. O segundo ato já lhe mostra bem-sucedido na carreira, criando obras-primas para a Broadway e Hollywood, o que de certa forma aprofunda a crise no casamento - cada vez mais atraído pela boemia e por rapazes, Porter aos poucos passa a abandonar Linda e seu relacionamento mais estável. O terceiro e final ato - mais dramático e trágico - começa com um grave acidente, que irá determinar seus últimos anos de vida, além de reaproximá-lo de sua mulher e fortalecer de vez seus laços afetivos, principalmente quando ela também se descobre gravemente doente.


"De-lovely" é uma produção com inúmeras qualidades. O desenho de produção requintado e o figurino de Janty Yates conduz o público por uma viagem no tempo, pelo glamour das altas rodas da Europa e dos EUA desde o final da década de 1910 até os anos 1960, ocasião da morte de Porter. Os números musicais são preciosos, apresentando artistas contemporâneos como Alanis Morissette, Robbie Williams, Elvis Costelo, Sheryl Crow, Diana Krall, Lara Fabian e Natalie Cole entoando as canções imortais do compositor em sequências organicamente inseridas no contexto onírico criado pelo roteirista Jay Cocks - colaborador frequente de Martin Scorsese. Ashley Judd, apesar de jovem demais para o papel de Linda - na verdade quase uma década mais velha do que Porter -, sai-se muito bem no desafio de encarnar uma mulher à frente do seu tempo, ao mesmo tempo confiante o bastante para encarar um casamento com um homem cuja orientação sexual só poderia lhe trazer sofrimento e romântica o suficiente para acreditar que seu amor poderia evitar tais lágrimas. E Kevin Kline deita e rola em um papel capaz de mostrar à plateia - se é que ela ainda não sabe - todos os seus dotes como ator, cantor e dançarino. Mesmo assim, com tantos elementos admiráveis, algo falta ao filme de Irwin Winkler para torná-lo uma produção inesquecível. E não é difícil perceber o que.

Sem experiência na direção de musicais, Winkler não parece à vontade em comandar um filme do gênero, ficando no meio-termo entre um musical assumido ou um drama biográfico de narrativa clássica.. Logicamente seria inaceitável falar de Cole Porter sem que suas obras atravessassem a tela, e nesse ponto o filme de Winkler é feliz, sabendo espalhar canções pela tela sem deixar o programa cansativo. O problema é que, como frequentemente acontece com filmes que tentam abraçar vidas inteiras em poucas horas, é inevitável que haja falta de profundidade no desenvolvimento dos personagens. Até mesmo a relação entre Cole e Linda deixa dúvidas na mente do espectador - até que ponto a homossexualidade do compositor atrapalhava o casamento, por exemplo? E como ele passou de novato a estrela da Broadway? E como foi sua passagem pelo cinema, já que não é dada muita atenção a essa parte de sua carreira? Como o subtítulo em português deixa claro, o filme se dedica às relações interpessoais do músico - com sua esposa e seus ocasionais amantes -, mas mesmo elas não são desenvolvidas a contento. Resta a excelência visual, o desempenho de Kline e as canções, essas sim eternas.

terça-feira

FEROCIDADE MÁXIMA


FEROCIDADE MÁXIMA (Fierce creatures, 1997, Universal Pictures, 93min) Direção: Robert Young, Fred Schepsi. Roteiro: John Cleese, Iain Johnstone, ideia "The Fierce Animal Policy", de Terry Jones e Michael Palin. Fotografia: Ian Baker, Adrian Biddle. Montagem: Robert Gibson. Música: Jerry Goldsmith. Figurino: Hazel Pethig. . Direção de arte/cenários: Roger Murray-Leach/Peter Howitt, Stephenie McMillan, Brian Read. Produção executiva: Steve Abbott. Produção: John Cleese, Michael Shamberg. Elenco: Kevin Kline, Jamie Lee Curtis, John Cleese, Michael Palin. Estreia: 23/01/97

Em 1988, o mundo foi tomado de assalto por uma comédia despretensiosa que, unindo o senso de humor nonsense do grupo britânico Monthy Phyton com o cinismo norte-americano, conquistou público (com uma renda acima de 60 milhões de dólares de arrecadação) e a crítica (com três indicações ao Oscar, incluindo direção e roteiro original, levou pra casa a estatueta de ator coadjuvante). "Um peixe chamado Wanda" mesclava, de forma inteligente e ácida, piadas verbais e visuais com uma velocidade estonteante, deu à Jamie Lee Curtis um dos melhores papéis de sua carreira e mostrou às plateias a veia cômica de Kevin Kline, até então celebrado por papéis dramáticos em filmes como "A escolha de Sofia" (1982) , "O reencontro" (1983) e "Um grito de liberdade" (1987). Desde então, entusiasmados com o êxito, os fãs da produção tinham apenas uma pergunta em mente: "quando eles irão se reunir novamente?" Demorou, mas aconteceu. Quase uma década depois, estreava nos cinemas "Ferocidade máxima". A notícia boa: quase todo mundo da equipe original estava de volta (com exceção do diretor Charles Crichton). A notícia ruim: apesar de algumas boas ideias e do talento inquestionável de todos os envolvidos, o filme não apresentava o mesmo frescor de "Um peixe" e naufragou solenemente nas bilheterias mesmo com as mudanças exigidas depois de uma série de exibições-teste.

Talvez o maior problema no caminho de "Ferocidade máxima", além da tentativa de emplacar um filme de piada única estendida à exaustão, tenha sido o excesso de expectativas. Depois de quase dez anos de espera, o público estava ávido por gargalhar à exaustão com as novas besteiras da trupe capitaneada por John Cleese e Michael Palin - este com um papel ainda menor do que o que lhe coube em "Um peixe chamado Wanda". O que encontrou foi o resultado de uma produção problemática, que necessitou de refilmagens depois de pronta - com um novo diretor, Fred Schepsi - e estreou quase um ano depois da data programada. Dotado de algumas cenas realmente engraçadas - em especial aquelas que envolvem o mal-entendido a respeito das aventuras sexuais de Rollo Lee (Michael Palin) - e uma ideia central das mais inusitadas, o filme assinado por Robert Young deixa a desejar principalmente devido à irregularidade do roteiro, que não permite ao espectador se envolver suficientemente com os personagens, e à direção sem os toques de genialidade de Charles Crichton - indicado ao Oscar por "Um peixe chamado Wanda" e deixado de fora do novo filme pela idade avançada de 84 anos de idade, o que prejudicaria o sinal verde para o projeto). Kevin Kline - que ganhou um merecido Oscar pelo filme anterior - faz papel duplo, mas está longe de sua melhor forma, prejudicado por personagens pouco simpáticos, e Jamie Lee Curtis tampouco é explorada em todo o seu potencial, sendo relegada quase a segundo plano. Resta John Cleese, que arranca o máximo de cada cena, utilizando sua experiência de décadas para valorizar cada diálogo e gesto. 

A trama central é um achado: um poderoso e irascível empresário, Rod McCain (Kevin Kline), acaba de comprar, dentro de um de seus vários negócios, um zoológico londrino, o London Marwood Zoo, e contrata para dirigí-lo o tímido e desajeitado Rollo Lee (John Cleese), que tem a dura missão de encontrar uma maneira de aumentar a lucratividade do local. Lee tem a ideia de acabar com os animais dóceis e dedicar o zoológico apenas a feras de alta periculosidade, o que imediatamente causa revolta nos funcionários mais antigos, principalmente no veterano Adrian Malone (Michael Palin), que vê na novidade o risco de perder o emprego. As coisas ficam ainda mais complicadas quando chegam a Londres o filho de Rod, o frívolo Vince (também Kevin Kline) e a sensual Willa Carter (Jamie Lee Curtis), recém-contratada para trabalhar com Lee - por quem se sente surpreendentemente atraída ao julgá-lo um sedutor contumaz. Juntos, Vince e Willa irão testemunhar a batalha dos funcionários, capazes de qualquer coisa para provar que até mesmo os coelhinhos do zoológico são ferozes e perigosos.

Algumas cenas de "Ferocidade máxima" são sensacionais: ao descobrir a armação dos empregados, Lee tenta desmascará-los à custa de uma visitante ferida do zoológico; Willa e Vince ouvem Lee falando com os animais que resgatou e julgam que ele está acompanhado de várias mulheres; uma aranha venenosa escapa enquanto Malone está escondido em um armário para gravar conversas comprometedoras. Infelizmente elas não são o bastante para fazer de "Ferocidade máxima" um sucessor à altura de "Um peixe chamado Wanda", cuja estrutura era muito mais firme e redonda. O elenco ainda é seu maior trunfo - apesar de nem sempre ser completamente explorado -, mas a direção carece de inventividade. Ficam patentes a confusão de bastidores, a troca de diretores, a indecisão do roteiro em focar no zoológico ou nos problemas entre os McCain. É uma pena que todo o potencial da produção não tenha sido atingido e que não tenha se tornado mais um clássico instantâneo. É uma boa comédia, capaz de arrancar uma ou outra gargalhada - mas em comparação com seu antecessor, não deixa de ser decepcionante, apesar de suas qualidades óbvias. 

VAMPIROS DO DESERTO

VAMPIROS DO DESERTO (The forsaken, 2001, Screen Gems/Sandstorm Films, 90min) Direção e roteiro: J. S. Cardone. Fotografia: Steven Bernstein...