quinta-feira

O ÚLTIMO DUELO


O ÚLTIMO DUELO (The last duel, 2021, 20th Century Studios/Pearl Street Films/Scott Free Productions, 152min) Direção: Ridley Scott. Roteiro: Ben Affleck, Matt Damon, Nicole Holofcener, livro de Eric Jager. Fotografia: Darius Wolszki. Montagem: Claire Simpson. Música: Harry Gregson-Williams. Figurino: Janty Yates. Direção de arte/cenários: Arthur Max/Judy Farr. Produção executiva: Madison Ainley, Kevin Halloran, Drew Vinton. Produção: Ben Affleck, Matt Damon, James Flynn, Jennifer Fox, Nicole Holofcener, Morgan O'Sullivan, Ridley Scott. Kevin J. Walsh. Elenco: Matt Damon, Adam Driver, Jodie Comer, Ben Affleck. Estreia: 10/9/2021 (Festival de Veneza)

Pode parecer estranho que um filme sobre duelos medievais– via de regra um terreno fértil para demonstrações de virilidade e violência – possa caber tão confortavelmente em discussões contemporâneas, mas é impossível chegar ao final da sessão de "O último duelo" sem a sensação de que, apesar de estarmos seis séculos separados cronologicamente das desditas de sua protagonista feminina, Marguerite de Thibouville, nunca estivemos tão perto delas em termos comportamentais. Ao acrescentar um assunto tão premente como o machismo estrutural em uma trama que do contrário poderia inserir-se como apenas mais uma produção fadada ao esquecimento, a adaptação do livro de Eric Jager – anunciada pela primeira vez em 2015 mas só aprovada pela 20th Century Fox quatro anos mais tarde – acabou por tornar-se um dos filmes mais interessantes de 2021. Tal mérito, no entanto, não impediu o fracasso retumbante nas bilheterias e a polêmica criada por seu diretor, Ridley Scott, ao creditar seu insucesso à preferência do público por filmes de super-heróis (sem deixar de fazer, com tal declaração, uma crítica feroz à inteligência das plateias mundo afora).

O que Scott não levou em consideração em suas declarações foi o fato de que o filme estava fadado a não ter o sucesso que merecia – e que seu orçamento acima de 100 milhões de dólares precisava – graças também ao pouco caso da Disney, que tinha "O último duelo" entre os títulos herdados em sua fusão com a Fox e falhou fragorosamente em sua divulgação. Sem o marketing agressivo que é fator indispensável para o êxito comercial de grandes produções, "O último duelo" estreou sem alarde e teve uma carreira das mais melancólicas, com público escasso e repercussão quase nula. Ignorado pela Academia e pelas cerimônias de premiação mais importantes (apenas o National Board of  Review o incluiu em sua lista dos dez melhores filmes do ano), o primeiro filme de Scott a ser lançado em 2021 (o segundo foi o bem mais comentado "A Casa Gucci") pode não estar entre seus melhores trabalhos – afinal estamos falando do homem que deu ao mundo obras-primas como "Alien: o oitavo passageiro" (1979), "Blade Runner: o caçador de androides" (1982), "Thelma & Louise" (1991) e "Gladiador" (2000) – mas merecia mais atenção. Se não por seus méritos cinematográficos (é um filme sem grandes ousadias narrativas e até mesmo bastante lento em seu desenvolvimento), ao menos pela importância temática e pela inteligência em inserir um surpreendente feminismo em um gênero predominantemente masculino.


É bom deixar claro, no entanto, que boa parte do sucesso de "O último duelo" em navegar em terreno tão delicado vem do desempenho exemplar de Jodie Comer. Revelada ao grande público na série "Killing Eve" – ao lado da ótima Sandra Oh – e agora parte do universo Star Wars graças à sua participação em "Star Wars: a ascensão Skywalker" (2019), Comer é a alma do filme de Scott, o centro de uma trama sobre o poder patriarcal e seus trágicos desdobramentos. Sua personagem, Marguerite de Thibouville, é o catalisador de uma discussão que ecoa, sem muito esforço, nos inacreditáveis ventos “conservadores” que sufocam o mundo do século XXI. Quando finalmente é oferecido ao público sua versão de um drama que envolve estupro, violência física e assédio moral, é difícil não traçar paralelos com as constantes manchetes sobre feminicídio que assolam os telejornais de hoje. A luta de Marguerite nos idos do século XV ainda é a luta das mulheres de 2022: ser vista como um indivíduo com personalidade e direitos próprios, não atrelados a gênero ou quaisquer outros tipos de vínculos afetivos, morais ou financeiros. Vista como propriedade do marido – tido então como o maior prejudicado pelo alegado estupro que sofreu – e questionada pelo fato de ter um dia ousado considerar seu agressor como um homem atraente – quem disse que dá para confiar em outras mulheres só porque elas são mulheres também? -, Marguerite não é vítima apenas de violência sexual, mas sim de uma sociedade machista que não hesita em apelar para preconceitos e crendices para afirmar sua pretensa superioridade. É revoltante, mas é chocantemente atual!

Mas, afora as discussões que levanta e o trabalho irretocável de Jodie Comer, o quão bom "O último duelo" é como cinema? Em primeiro lugar, é preciso reconhecer que Ridley Scott não está em seus melhores momentos como realizador – "A Casa Gucci" chega a constranger, em alguns momentos -, mas mesmo no piloto automático ele é capaz de contar sua história sem maiores sobressaltos. O roteiro, escrito por Matt Damon e Ben Affleck (em sua primeira reunião na função desde o Oscar por "Gênio indomável", de 1997), tem a colaboração preciosa de Nicole Holofcener para dar o necessário toque feminino à trama, mas sofre com a pouca profundidade de seus protagonistas (com a exceção gloriosa de Marguerite) e com o ritmo lento em excesso em sua primeira hora de projeção – algo que a edição poderia ter resolvido com poucas perdas no desenvolvimento da história. O desenho de produção é caprichado e a fotografia de Darius Wolsky sublinha o tom opressivo do enredo – algo para o qual a trilha sonora de Harry Gregson-Williams também colabora com precisão. E se o elenco masculino sofre com personagens pouco simpáticos para defender (Matt Damon e Adam Driver empalidecem diante de Comer), a técnica de contar várias versões do mesmo fato – importada do clássico japonês "Rashomon" (1950) – lhes dá a possibilidade de buscar nuances diferentes a cada novo depoimento.

"O último duelo" não é a obra-prima que Ridley Scott merece apresentar em sua maturidade – ele completou 84 anos em novembro passado e está prolífico como nunca -, mas merece ser descoberto e tratado como o ótimo filme que é. Em um momento com tantas produções inócuas e sem muito a dizer, é uma produção capaz de fazer pensar mesmo depois de seus letreiros finais.

quarta-feira

O FESTIVAL DO AMOR


O FESTIVAL DO AMOR (Rifkin's Festival, 2020, Gravier Productions/Wildside/Orange, 88min) Direção e roteiro: Woody Allen. Fotografia: Vittorio Storaro. Montagem: Alisa Lepselter. Música: Stephane Wrembel. Figurino: Sonia Grande. Direção de arte/cenários: Alain Bainée/Mariona Ferrer. Produção executiva: Lorenzo Gargarossa, Mario Gianani, Lorenzo Mieli, Javier Méndez, Adam B. Stern. Produção: Erika Aronson, Letty Aronson, Jaume Rouers. Elenco: Wallace Shawn, Gina Gershon, Louis Garrell, Christoph Waltz, Sergi Lopez, Elena Anaya, Steve Guttenberg. Estreia: 18/9/2020 (Donostia-San Sebastian Film Festival)

Uma das críticas mais frequentes à obra cinematográfica de Woody Allen diz respeito à sua pretensa intelectualidade – uma falácia, como se percebe facilmente diante de alguns de seus melhores trabalhos, que vão da comédia rasgada de “Um assaltante bem trapalhão” (1969) ao drama nostálgico de “A era do rádio” (1987) – passando pelo suspense de “Match point: ponto final” (2005), a comédia romântica atípica de “Noivo neurótico, noiva nervosa” (1977) e o agridoce suspense de “Crimes e pecados” (1989). Seu novo filme, “O festival do amor”, dá munição bastante aos detratores que o acusam de autorreferente, mas, ao mesmo tempo, oferece aos fãs uma dose a mais do charme, da inteligência e do bom humor sofisticado que Allen já havia apresentado em “Meia-noite em Paris” (2011), seu último grande filme (premiado com o Oscar de roteiro original). Se em sua incursão pela capital francesa durante a década de 1920 – quando ela abrigava uma efervescência cultural das mais férteis do século XX – o diretor apresentava nomes como Ernest Hemingway, F. Scott Fitzgerald, Picasso, Cole Porter, Salvador Dalí e Gertrude Stein convivendo pacificamente com um escritor nascido quarenta anos mais tarde, dessa vez ele volta seus olhos ao cinema clássico europeu –berço de alguns de seus maiores ídolos.

Fã confesso de Ingmar Bergman e Federico Fellini, Woody Allen já havia feito citações a suas obras – de forma mais ou menos explícita. “Memórias” (1980) flertava com o estilo surreal do cineasta italiano e “Interiores” (1978) emulava claramente a filmografia do diretor sueco. Em “O festival do amor” a obsessão vai ainda mais longe – mas compartilhada com sua paixão por Godard, Truffaut, Orson Welles e Luís Buñuel. Pode soar hermético a um público menos afeito à nostalgia e a produções menos comerciais, mas é uma festa aos olhos e ao coração dos cinéfilos. Fotografado com excelência pelo veterano Vittorio Storaro – que aproveita cada cantinho dos deslumbrantes cenários naturais de San Sebástian para emoldurar uma história repleta das neuroses típicas do cineasta -, “O festival do amor” tem o cinema em seu cerne: a sétima arte não é apenas o ganha-pão de seus protagonistas, mas é também seu referencial, a régua pela qual suas próprias vidas são medidas. Mort Rifkin (Wallace Shawn finalmente assumindo um papel principal em uma produção do amigo Allen) é um professor de cinema, apaixonado por clássicos, que aceita acompanhar a esposa mais jovem, Sue (Gina Gershon), uma publicista, a um festival de cinema na Espanha, onde ela será responsável pela assessoria de imprensa de um novo talento do cinema francês, Philippe (Louis Garrell) – cujo próximo filme, segundo ele mesmo, terá a solução para a crise no Oriente Médio. Enquanto Sue não abandona seu cliente – para ciúme de Rifkin -, ele se vê irremediavelmente atraído pela bela Jo (Elena Anaya), a médica que lhe atende em uma emergência.


Algumas situações da trama lembram outros trabalhos de Allen – incluindo aí a eterna paixão de um homem mais velho por uma mulher mais nova, situação dramática que tantos problemas causou ao cineasta em sua vida pessoal – e Rifkin apresenta muitas das características dos personagens criados pelo diretor ao longo de sua carreira. Longe de ser um problema, tal opção permite ao roteiro levar seu protagonista a devaneios que passeiam por “Acossado” (1960), “Jules & Jim: uma mulher para dois” (1962), “Morangos silvestres” (1957), “8 ½” (1963), “Um homem, uma mulher” (1966), “Cidadão Kane” (1941), “O anjo exterminador” (1962), “Quando duas mulheres pecam” (1966) e “O sétimo selo” (1957) – uma sequência genial com a participação especialíssima de Christoph Waltz. E se Mort Rifkin é um personagem típico da filmografia de seu criador, o desempenho de Wallace Shawn é exemplar: sem tentar ser maior que o filme em si, o ator serve como um mestre de cerimônias ao “festival” de citações cinematográficas, se apropriando com segurança de diálogos ferinos (“Francamente, eu preferiria não morrer por motivo nenhum. Nem por doença, nem por velhice e nem engasgado com um bagel....”) e fugindo da imitação óbvia de Allen (o que, de certa forma, atrapalhou Kenneth Branagh em “Celebridades”, de 1999). Seu interesse romântico, a espanhola Elena Anaya (de “A pele que habito”) já não tem muito a fazer senão enfeitar a tela – enquanto Gina Gershon e Louis Garrel parecem se divertir a cada cena.

E se a sétima arte é a razão de ser de “O festival do amor”, um dos maiores prazeres em se assistí-lo é tentar reconhecer suas referências e relembrar grandes momentos do cinema europeu – uma viagem simpática que demonstra claramente que, a despeito de suas dificuldades recentes em conseguir financiamento e distribuição nos EUA, Woody Allen ainda tem muito a oferecer a seus fãs – e àqueles que não abrem mão de inteligência quando procuram por uma boa diversão.

terça-feira

A FORMA DA ÁGUA


A FORMA DA ÁGUA (The shape of water, 2017, Fox Searchlights, 123min) Direção: Guillermo Del Toro. Roteiro: Guillermo Del Toro, Vanessa Taylor. Fotografia: Dan Laustsen. Montagem: Sidney Wolinsky. Música: Alexandre Desplat. Figurino: Luis Sequeira. Direção de arte/cenários: Paul D. Austerberry/Jeffrey A. Melvin, Shane Vieau. Produção: J. Miles Dale, Guillermo Del Toro. Elenco: Sally Hawkins, Michael Shannon, Richard Jenkins, Octavia Spencer, Michael Stuhlbarg, Doug Jones. Estreia: 31/8/2017 (Festival de Veneza)

13 indicações ao Oscar: Melhor Filme, Diretor (Guillermo Del Toro), Atriz (Sally Hawkins), Ator Coadjuvante (Richard Jenkins), Atriz Coadjuvante (Octavia Spencer), Roteiro Original, Fotografia, Montagem, Trilha Sonora Original, Figurino, Direção de Arte/Cenários, Mixagem de Som, Edição de Som

Vencedor de 4 Oscar: Melhor Filme, Diretor (Guillermo Del Toro), Trilha Sonora Original, Direção de Arte/Cenários

Vencedor de 2 Golden Globes: Melhor Filme/Drama, Trilha Sonora Original

Quando tinha apenas seis anos de idade, o cineasta Guillermo Del Toro assistiu ao clássico "O monstro da lagoa negra" (1954) e não se conformou com o fato da mocinha do filme, interpretada por Julie Adams, não ter tido um final feliz com a criatura do título. Mais de quarenta anos depois, já consagrado como o diretor de filmes mundialmente aclamados -  "A espinha do diabo" (2001) e "O labirinto do fauno" (2006) - Del Toro pode finalmente contar a história a seu modo. Disfarçadamente, é claro - mas nem tanto - e com um toque de fantasia que dialoga diretamente com suas obras mais admiradas., "A forma da água" transformou-se, em pouco tempo, do projeto dos sonhos do realizador (e um de seus filmes mais pessoais) em um grande êxito de bilheteria e crítica. Vencedora do Leão de Ouro do Festival de Veneza e de quatro Oscar (incluindo melhor filme e diretor), a romântica história da relação entre uma tímida e sonhadora faxineira e uma criatura anfíbia tida como prisioneira em um laboratório do governo norte-americano durante a Guerra Fria, subverte as convenções de heroísmo, beleza e amor e entrega à plateia uma das mais deslumbrantes produções de seu tempo - calcada no capricho visual característico de Del Toro, em um roteiro que funciona como um passe de mágica e, principalmente, em um elenco escolhido a dedo, no qual se destaca a impecável Sally Hawking.

Primeira e única escolha do diretor para viver a delicada Elisa Esposito - "Eu queria que Elisa fosse bonita a seu próprio modo, não do modo de um comercial de perfume. Que você acreditasse que essa personagem, essa mulher poderia estar sentada a seu lado no ônibus. Mas que ao mesmo tempo tivesse uma luminosidade, uma beleza quase mágica, etérea...-, Sally Hawking entrega uma atuação fascinante, em que mescla inocência, inteligência e uma inusitada sensualidade. Indicada ao Oscar de melhor atriz, perdeu a estatueta para Frances McDormand em "Três anúncios para um crime", mas alcança, em seu trabalho, notas de uma sutileza ímpar. Interpretando uma personagem muda sem que se utilize dessa característica para forçar a simpatia do público, ela faz cada espectador acreditar não apenas na força que demonstra quando é obrigada a isso, mas também - e aí o mérito é dela e da direção delicada de Del Toro - de que seu amor redentor por um ser aparentemente inalcançável é passível de um final feliz. Tal ousadia do roteiro - a de eleger como herói romântico alguém que em outros tempos não seria mais do que o principal antagonista (ou até mesmo um vilão cujo destino esperado e desejado era a morte mais trágica possível) - faz de "A forma da água" uma história de amor e fantasia que embaralha as cartas dos gêneros para criar uma realidade alternativa doce e comovente.


Enquanto nos filmes clássicos de horror dos anos 1950 - época em que a Universal Pictures reinou absoluta com seus vampiros, lobisomens e cientistas lunáticos - a fórmula mandava que o monstro jamais fosse capaz de conquistar o amor da mocinha por quem se apaixonava perdidamente ("King Kong", "A bela e a fera") e preferencialmente encontrasse um desfecho que comprovasse a superioridade dos humanos em relação às bestas, no mundo invertido de Del Toro os pretensamente seres racionais é que sofrem de desvios graves de caráter (especialmente o detestável Richard Strickland interpretado com gosto por Michael Shannon) e são as minorias que não só demonstram uma humanidade à toda prova como são capazes de alterar destinos tidos como definitivos (o homossexual enrustido vivido pelo excelente Richard Jenkins, a faxineira negra criada por Octavia Spencer e a protagonista quase invisível de Hawking). O universo de Del Toro é um mundo à parte, desenhado com precisão - a vitória da equipe de direção de arte no Oscar não foi à toa: perdidos em um período da década de 1960, os cenários retratam uma visão particular e afetiva do diretor, um espaço no tempo em que o passado conservador estava em vias de se encontrar com um futuro que apontava a Lua e o espaço sideral. A paleta de cores - em que tons mais vivos vão surgindo conforme Elisa descobre a capacidade do amor em transformar a forma como ela vê o mundo até então cinzento - serve como comentário visual às ideias românticas da trama e deslumbra pela força com que envolve a audiência em sua espiral de fantasia e emoção.

E seria injusto não citar o trabalho de Doug Jones como um dos pontos fundamentais do sucesso de "A forma da água": na pele da criatura anfíbia que desperta a curiosidade, o carinho e posteriormente o amor de Elisa - e no caminho conquista seus amigos e mostra que a devoção que despertava "nos selvagens da América do Sul, que o idolatravam como a um deus" não era algo desproporcional -, Jones oferece um desempenho poucas vezes visto no cinema. Debaixo das claustrofóbicas roupas do ser anfíbio - um processo que lhe custava horas -, o ator impressiona com uma interpretação silenciosa mas extremamente expressiva. São comoventes todas as sequências em que ele e Elisa descobrem um ao outro sem trocar uma única palavra - cenas sublinhadas pela genialidade de Del Toro em utilizar-se do cinema como pano de fundo para o despertar do amor. Com um ritmo invejável - são duas horas que passam voando - e um dos finais mais poéticos que o cinema já proporcionou (ao menos nas últimas décadas), "A forma da água" é uma obra-prima indelével, o tipo de filme que já nasceu clássico e que provavelmente irá resistir bravamente à prova do tempo. É um filme para sonhadores - de todos os tipos, raças e espécies.

quinta-feira

ELA É O DIABO


ELA É O DIABO (She-devil, 1989, Orion Pictures, 99min) Direção: Susan Seidelman. Roteiro: Barry Strugatz, Mark R. Burns, romance de Fay Weldon. Fotografia: Oliver Stapleton. Montagem: Craig McKay. Música: Howard Shore. Figurino: Albert Wolsky. Direção de arte/cenários: Santo Loquasto/George DeTitta Jr.,William Durning Sr.. Produção: Jonathan Brett, Susan Seidelman. Elenco: Meryl Streep, Roseanne Barr, Ed Begley Jr., Linda Hunt, Sylvia Miles. Estreia: 06/12/89

Até 1989, com a estreia de "Ela é o diabo", havia uma cobrança quase unânime de público e crítica para que Meryl Streep, já então considerada uma das maiores atrizes de Hollywood - e com dois Oscar no currículo - fizesse uma comédia. Não uma comédia sutil, como "Manhattan" (1979), ou de tintas românticas, como "A difícil arte de amar" (1986), mas uma comédia rasgada, que pudesse apresentar à plateia um lado menos sombrio e dramático de seu potencial. Saída do denso "Um grito no escuro" (1988), que lhe renderia mais uma indicação ao prêmio da Academia, Streep acabou finalmente se rendendo à expectativa dos fãs ao entrar no elenco de "Ela é o diabo", que, dirigido pela mesma Susan Seidelman de "Procura-se Susan desesperadamente" (1986), lhe daria a chance de explorar ainda mais seus talentos. Como forma de inovar ainda mais e sair de vez da zona de conforto, Streep abriu mão do papel de esposa sofredora, traída e abandonada - e posteriormente vingativa - e escolheu viver uma escritora fútil, vaidosa e egocêntrica. Não poderia ter dado mais certo: com um frescor raro e um senso cômico preciso, Meryl Streep conseguiu ofuscar aquela que deveria ser a principal estrela do filme - a comediante Roseanne Barr, em sua estreia no cinema - e deixou na audiência a sensação de que realmente ela poderia fazer qualquer papel.

Baseado no romance "The life and loves of s She-devil", da britânica Fay Weldon, publicado pela primeira vez em 1983, o roteiro de "Ela é o diabo" transfere a ação da Inglaterra para os Estados Unidos e altera o tom um tanto pesado do original para oferecer uma atmosfera mais alto-astral ao público - o que difere bastante da primeira adaptação do livro, feita em forma de minissérie em 4 capítulos para a televisão, em 1986. A escolha de Roseanne Barr - bastante popular nos EUA graças à série "Roseanne" - também já demonstrava que Seidelman não tinha intenção de pesar a mão em sua visão da história, e sim pretendia transformá-la na base de um conto feminista e esperançoso. Com um enredo que, a despeito da origem geográfica, fazia sentido no mundo todo - não à toa teve duas versões no cinema indiano, durante a década de 1990 -, "Ela é o diabo" assumiu importância social inesperada ao falar ao público feminino de forma franca e divertida... e ao eleger como protagonista uma mulher longe do ideal estético e cultural fomentado pela sociedade do século XX. Ruth Pratchett, a personagem principal, está acima do peso, se veste mal, não é exatamente vaidosa (sua verruga monstruosa no rosto pode soar exagerada, mas não deixa de ser um símbolo a mais de sua rebeldia em relação ao convencional) e tampouco tem interesses além da casa, dos filhos e do marido - mas é capaz de qualquer coisa para dar o troco quando se sente apunhalada pelas costas.


 

Antes que Roseanne Barr assumisse o papel de Pratchett - que lhe cai como uma luva, diga-se de passagem -, uma lista de atrizes dos mais variados tipos físicos, etários e currículos foram sondadas e/ou testadas. É difícil imaginar que Kathy Bates, Bette Midler, Rosie O'Donnell e Beverly D'Angelo tenham sido imaginadas para o mesmo papel para o qual foram cogitadas Michelle Pfeiffer, Barbara Hershey, Ally Sheedy e Kathleen Turner, mas foi o que aconteceu. O mesmo ocorreu com a escalação de Ed Begley Jr. para viver Bob, o marido de Ruth: se Jeff Daniels e Jeff Bridges foram seriamente cotados, nomes diversos como Harrison Ford, Richard Dreyfuss, Chevy Chase, Steve Martin, Robin Williams (e até Michael Douglas e Robert DeNiro!!) passaram pela mente dos produtores, o que dá uma bela ideia de como a proposta do filme foi sendo alterada com o passar do tempo. Isso não impede, no entanto, que o resultado final tenha ficado bastante sólido - ainda que não exatamente inesquecível. Seidelman explora ao máximo o talento de seus atores e impõe um belo ritmo ao roteiro, mas falha ao oferecer um conteúdo um tanto superficial: a ideia de fazer Ruth descobrir-se uma mulher com mais qualidades do que pensava ter e com um insuspeito talento para o empreendedorismo acaba ficando em segundo plano diante da vingança inconsequente e pouco crível a que se dedica para infernizar a vida do ex-marido.

A trama começa quando Ruth - uma dona-de-casa dedicada mas pouco atraente e bastante simplória - perde o marido, Bob, para Mary Fisher, uma escritora bem-sucedida, bela, milionária e famosa. Fútil e afetada, Fisher representa o completo oposto de Ruth, que vê na situação o motivo de que precisava para virar a mesa. Ciente de tudo que importa para o ex-marido - família, casa, carreira e liberdade -, a esposa traída arma um plano meticulosamente armado para destruir tudo - e no caminho descobre que a separação talvez tenha sido o melhor que lhe poderia ter acontecido. A trama pode até soar um pouco maniqueísta, mas serve como comédia e envolve até os minutos finais - mesmo que pudesse ser explorada com menos pressa e mais atenção a situações que poderiam render mais, como a relação de Mary com a mãe (a veterana Sylvia Miles) e a amizade entre Ruth e Hooper (Linda Hunt), de quem se torna colega como parte do seu plano de vingança. Susan Seidelman é uma cineasta que busca a simplicidade como parte fundamental de sua obra - e "Ela é o diabo" consegue unir as expectativas de uma produção de estúdio (Orion Pictures) e o senso de independência de um videoclipe. É problemático em termos de condicionar a felicidade feminina ao suporte masculino - ainda que tente timidamente ensaiar aplausos à independência da mulher -, mas é uma sessão da tarde saudosista e divertida.

VAMPIROS DO DESERTO

VAMPIROS DO DESERTO (The forsaken, 2001, Screen Gems/Sandstorm Films, 90min) Direção e roteiro: J. S. Cardone. Fotografia: Steven Bernstein...