quinta-feira

ERA UMA VEZ EM... HOLLYWOOD


ERA UMA VEZ EM... HOLLYWOOD (Once upon a time in... Hollywood, 2019, Sony Pictures, 161min) Direção e roteiro: Quentin Tarantino. Fotografia: Robert Richardson. Montagem: Fred Raskin. Figurino: Arianne Phillips. Direção de arte/cenários: Barbara Ling/Nancy Haigh. Produção executiva: Jeffrey Chan, Georgia Kacandes, Yu Dong. Produção: David Heyman, Shannon McIntosh, Quentin Tarantino. Elenco: Leonardo DiCaprio, Brad Pitt, Margot Robbie, Emile Hirsch, Margaret Qualley, Timothy Olyphant, Dakota Fanning, Bruce Dern, Al Pacino, Luke Perry, Costa Ronin, Lena Dunham, Kurt Russell, Rafal Zawierucha, Damon Herriman. Estreia: 21/5/2019 (Festival de Cannes)

10 indicações ao Oscar: Melhor Filme, Diretor (Quentin Tarantino), Ator (Leonardo DiCaprio), Ator Coadjuvante (Brad Pitt), Roteiro Original, Fotografia, Montagem, Direção de Arte/Cenários. Edição de Som, Mixagem de Som

Vencedor de 2 Oscar: Ator (Brad Pitt), Direção de Arte/Cenários

Vencedor de 3 Golden Globe Melhor Filme Comédia/Musical, Ator Coadjuvante (Brad Pitt), Roteiro

Foi na madrugada de 6 de agosto de 1969 que um crime - violento e chocante em sua gratuidade - acabou, segundo a escritora Joan Didion, com o movimento hippie, a era do amor livre e a atmosfera dos anos 60 como um todo. Um grupo de seguidores do messiânico Charles Manson invadiu a casa da atriz Sharon Tate, grávida de oito meses do cineasta Roman Polanski (em alta com o sucesso de seu "O bebê de Rosemary", lançado no ano anterior) e a assassinou, juntamente com um grupo de amigos, deixando no local uma série de detalhes macabros que alimentaram as manchetes dos jornais por meses a fio. A investigação do crime, a prisão dos responsáveis e o julgamento midiático ocuparam a mente do mundo - e em especial dos EUA - por anos a fio e ainda permanecem como uma lembrança trágica de uma época encerrada abruptamente com um banho de sangue. O trauma foi tanto que demorou meio século para que um grande estúdio de Hollywood finalmente rompesse o silêncio a respeito do assunto - e mesmo assim somente com o aval de um nome de prestígio, com coragem o suficiente para mexer em um vespeiro mantido sob uma redoma de respeito pelos envolvidos e pelo medo de um fracasso de bilheteria. Foi somente quando Quentin Tarantino anunciou que seu filme seguinte ao western "Os oito odiados" (2016) teria Sharon Tate como uma de suas personagens principais que a história (até então contada mal e porcamente em documentários e telefilmes de pouca repercussão) voltou a povoar o imaginário mundial - e despertar uma curiosidade que só fez aumentar conforme chegava a data de estreia.

Pensando em marcar a estreia de "Era uma vez em... Hollywood" para 6 de agosto de 2019, data em que o crime completaria 50 anos, Tarantino foi voto vencido quando a Sony Pictures - que ganhou os direitos de distribuição em uma disputa acirradíssima com a Warner, a Universal, a Paramount, a Lionsgate e Annapurna Pictures - preferiu adiantar a data para 26 de julho, pouco mais de dois meses depois do lançamento da produção no Festival de Cannes. Até que tal evento acontecesse, porém, muito foi dito, inventado, polemizado e misteriosamente escondido a respeito do filme. Com um roteiro secreto (lido apenas por parte da equipe de filmagem, como forma de evitar os dissabores que quase cancelaram "Os oito odiados" depois do vazamento de seu script) e notícias que chegavam aos poucos, "Era uma vez em... Hollywood" já era, muito antes de chegar às telas, uma das produções mais comentadas e esperadas da temporada - por inúmeras razões. Além do marketing espontâneo que qualquer trabalho de Tarantino gera, não era nada mal ter Brad Pitt e Leonardo DiCaprio nos papéis principais em uma trama que misturava, da forma como apenas o cineasta consegue fazer sem soar prolixo, a trajetória de Sharon Tate, a desilusão de um astro da antiga indústria com os novos tempos, a decadência de um gênero específico (o western), bastidores do cinema pelos olhos de um dublê e diálogos preciosos. Tido por Tarantino como seu filme mais pessoal - algo como "Roma" foi em relação a Alfonso Cuarón - e escrito em um período de cinco anos (nos quais o cineasta também o transformou em um romance, lançado em seguida à estreia), "Era uma vez em... Hollywood" provou que a espera valeu a pena, tanto em termos artísticos quanto comerciais. Com uma renda internacional que ultrapassou os 370 milhões de dólares, dez indicações ao Oscar (e duas categorias no bolso), o filme pode até não ter agradado a todo mundo - algo corriqueiro na filmografia de Tarantino -, mas é, inegavelmente, uma das obras cinematográficas mais importantes de seu tempo.


 Com um título inspirado em Sergio Leone e seus "Era uma vez no Oeste" (1968) e "Era uma vez na América" (1984), o nono filme de Tarantino - se as duas partes de "Kill Bill" forem consideradas apenas um único projeto - quase foi realizado em preto-e-branco e poderia ter estreado com uma duração de 4 horas e 20 minutos. Mas cinema é uma arte de concessões e do jeito que está, o filme é uma pequena obra-prima (mais uma na carreira do Tarantino diretor ). Tudo funciona perfeitamente - até mesmo o que parece gratuito tem ressonâncias bem mais profundas do que aparenta. Por trás dos longos diálogos (característica inconfundível do Tarantino roteirista) e das referências que podem soar como grego ao público médio, a trama é uma pérola de nostalgia, melancolia e pitadas generosas de uma ironia tão fina que pode até passar despercebida - ao menos até o clímax, tão inesperado e surpreendente que foi objeto de um pedido especial dos realizadores para que não fosse comentado pela imprensa ou pela plateia. Justificável: assim como em "Bastardos inglórios" (2009), Tarantino rege seu próprio universo, manda em seus próprios domínios, subverte as próprias regras e a história, se for preciso. Longe de desagradar aos puristas, encontra uma maneira de fazer com que a magia do cinema sempre se sobressaia - e sublinhe seu talento em encantar e decepcionar com a mesma intensidade.

O filme se passa em 1969, quando a Era de Ouro de Hollywood está em seus estertores. Longe de ainda ter a relevância que tinha na década de 1950, quando estrelava populares séries de western na televisão, Rick Dalton (vivido por Leonardo DiCaprio) paira sob uma Los Angeles a que mal reconhece, tentando encontrar uma maneira de manter uma carreira já tida como acabada. Vizinho do cineasta Roman Polanski (praticamente um símbolo de uma nova indústria, moderna e jovem), Dalton luta contra o próprio instinto de autodestruição enquanto relembra seus melhores momentos, ao lado de grandes atores e cercado de respeito e adulação. Invariavelmente acompanhado de seu dublê, Cliff Booth (Brad Pitt, vencedor do Oscar de ator coadjuvante) - bem mais confortável com as novas regras do jogo, a ponto de quase deixar-se envolver com um grupo de hippies bem mais jovens -, o ex-astro vê, aos poucos, uma nova Hollywood surgir diante de seus olhos. Enquanto isso, sua deslumbrante vizinha, Sharon Tate (Margot Robbie), começa a sentir o gostinho da fama e vislumbrar um brilhante futuro, tanto na carreira quanto na vida doméstica. Com visões distintas de sua época e de sua profissão, Dalton e Tate terão suas vidas cruzadas de forma totalmente inesperada e violenta.

Lançado no mesmo Festival de Cannes que 25 anos antes deu a Tarantino a Palma de Ouro e o aval necessário para que se tornasse um dos autores mais prestigiados do cinema norte-americano, "Era uma vez em... Hollywood" não saiu ileso a críticas e polêmicas. Se Debra Tate, irmã de Sharon, viu sua resistência ao projeto ruir ao encontrar Margot Robbie e reconhecer nela qualidades que a faziam lembrar da saudosa atriz, o mesmo não pode ser dito em relação às queixas de Shannon Lee, filha do ator Bruce Lee que não achou graça nenhuma na forma como o roteiro retratou seu pai - bastou uma única sequência para que Shannon considerasse tudo um insulto à memória do ator. Também foi alvo de críticas as liberdades artísticas tomadas pelo cineasta em relação à uma trama crucial para o roteiro: ao criar personagens novos na famigerada Família Manson (ou mesclar personagens reais com fictícios), Tarantino incomodou os puristas que esperavam uma descrição real dos crueis fatos de 6 de agosto de 1969 - que não tiveram interesse em perceber as reais intenções do diretor ao unir a realidade (ainda que alterada) com a fantasia: "Era uma vez em... Hollywood" não é um documentário sobre os assassinatos cometidos naquela fatídica noite - é uma comédia dramática sobre a união de dois mundos, sobre os meandros do destino e sobre a inexorabilidade do tempo até mesmo dentro de um universo que vende fantasia. É um filme com a cara de seu diretor - para o bem ou para o mal - e uma inteligente homenagem a uma atriz cujo futuro foi interrompido pela força do fanatismo. Como qualquer filme de Tarantino, não é para todos os públicos. Mas é sensacional!

segunda-feira

DO JEITO QUE ELAS QUEREM


DO JEITO QUE ELAS QUEREM (Book club, 2018, June Pictures/Apartment Story/Endeavor Content, 104min) Direção: Bill Holderman. Roteiro: Bill Holderman, Erin Simms. Fotografia: Andrew Dunn. Montagem: Priscilla Nedd-Friendly. Música: Peter Nashel. Figurino: Shay Cunliffe. Direção de arte/cenários: Rachel O'Toole/Dena Roth. Produção executiva: Alan Blomquist, Ted Deiker. Produção: Andrew Duncan, Bill Holderman, Alex Saks, Erin Simms. Elenco: Diane Keaton, Jane Fonda, Candice Bergen, Mary Steenburgen, Andy Garcia, Craig T. Nelson, Don Johnson, Ed Begley Jr., Richard Dreyfuss, Wallace Shawn, Alicia Silverstone. Estreia: 17/5/2018

Em uma era que as aparências, a juventude e a popularidade nas redes sociais valem mais do que talento, é um alento perceber que ainda existe a possibilidade de se nadar contra a corrente mesmo na pouco ousada indústria de cinema de Hollywood. "Do jeito que elas querem" pode até não ter mudado a história da sétima arte ou a forma dos executivos enxergarem mulheres maduras como algo indesejável comercialmente, mas sua bilheteria internacional acima dos 100 milhões de dólares certamente demonstrou que, a despeito do pensamento comum, ainda existe espaço para filmes protagonizados por gente acima dos 60 anos de idade - principalmente quando esta gente é do calibre de Diane Keaton, Jane Fonda, Candice Bergen e Mary Steenburgen. São elas, do alto de seu carisma e de sua capacidade de extrair o melhor até mesmo de um roteiro bobo e quase superficial, o principal atrativo do filme de Bill Holderman - uma produção leve, divertida e que não tem medo de falar de um assunto tabu (sexo na maturidade) com a naturalidade de uma comédia adolescente. Pode até soar inverossímil em alguns momentos, mas é difícil não simpatizar com um elenco tão sensacional - que conta com participações luxuosas de Richard Dreyfuss, Andy Garcia e Don Johnson.

Filme de estreia de Holderman como diretor - como produtor seu currículo conta com obras que valorizam atores veteranos, como "O velho e a arma", que deu a Robert Redford, em 2018, um dos melhores papeis de sua carreira -, "Do jeito que elas querem" é, nitidamente, um veículo para o brilho cômico de suas estrelas, todas brilhantes e extremamente à vontade ao assumir a idade e seus efeitos colaterais na vida sexual. Tudo bem que todas são ricas (ou ao menos de classe média alta), sem problemas maiores a resolver e relativamente bem-sucedidas, mas isso não impede o público de rir de suas desventuras amorosas - e, dependendo do espectador (ou espectadora), atéomesmo identificar-se com algumas delas. Ao centrar sua trama em quatro personagens principais, o roteiro abarca diferentes tipos de relacionamentos e personalidades, e mesmo que não tente se aprofundar em nenhuma delas apresenta à plateia, de forma agradável e esteticamente sofisticada, um interessante painel sobre o amor na terceira idade.

Vivian (Jane Fonda) é uma empresária do ramo da hotelaria que tem uma vida sexual razoavelmente ativa mas que é incapaz de assumir um relacionamento sério - simplesmente não consegue dormir ao lado de um homem depois do sexo - até que reencontra um amor do passado, o músico Arthur (Don Johnson). Diane (Diane Keaton) ficou viúva recentemente e é pressionada pelas filhas casadas (uma delas vivida por Alicia Silverstone, musa dos anos 1990) para mudar de cidade e morar perto delas - sua preocupação é com sua segurança e sua saúde, como se ela fosse uma idosa inválida -, mas que se vê surpresa quando o charmoso piloto de avião Mitchell (Andy Garcia) se demonstra muito mais interessado nela do que se poderia imaginar. Sharon (Candice Bergen) é uma poderosa juíza que atravessa um período difícil depois da separação e do novo amor juvenil do ex-marido - e descobre que os sites de relacionamento podem esconder boas chances de realização sexual. E Carol (Mary Steenburgen) é uma dona-de-casa que tenta reacender a faísca amorosa do marido aposentado, Bruce (Craig T. Nelson). As quatro, amigas há décadas, se reúnem frequentemente em um Clube do Livro, onde falam de suas vidas e discutem literatura, embaladas por boas doses de vinho. Quando a obra escolhida é o polêmico "50 tons de cinza", todas elas se deixam influenciar pelo alto teor erótico da história e buscar dentro de si o melhor caminho para a felicidade a dois.


 Que não se espere maiores elocubrações intelectuais do roteiro, coescrito por Holderman e Erin Simms - atriz pouco conhecida e produtora do romântico "Nossas noites" (2017), que reuniu Jane Fonda e Robert Redford: a trama se contenta em aproveitar o talento de seu elenco para fazer rir enquanto derruba todo tipo de preconceito etário, mas jamais ambiciona discutir com seriedade o assunto. Seu objetivo é divertir o público com diálogos de duplo sentido, sequências de humor visual (o encontro de Craig T. Nelson com uma guarda de trânsito enquanto sofre os efeitos do Viagra é hilário), algum romantismo e momentos de pura comédia (o embate entre Candice Bergen e Richard Dreyfuss é delicioso). Não há a sofisticação de um Woody Allen. parceiro constante de Diane Keaton nos anos 1970, ou o engajamento dos filmes estrelados por Jane Fonda na mesma época, mas em compensação há a química precisa entre suas atrizes e a coragem da produção em apostar na experiência de seus intérpretes mesmo quando o senso comum da indústria privilegia efeitos visuais e orçamentos milionários. Além do mais, não tem preço rever o sempre ótimo Richard Dreyfuss - ainda que em um papel menor que seu talento - e testemunhar uma história que não relega mulheres com mais de 60 anos a tipos dramáticos e sofredores. 

Longe de problemas típicos de personagens de tal faixa etária - como o desprezo dos filhos, a deteriorização da saúde, a falta de oportunidades profissionais e a baixa autoestima -, as protagonistas de "Do jeito que elas querem" são festivas, alegres, independentes e donas do próprio nariz (e a mudança de tal status é o que move a personagem de Diane Keaton). Nada de lágrimas sofridas, reclamações doídas ou medo da morte. O roteiro brinca com a idade de suas heroínas de forma a envolver o espectador e fazê-lo rir de situações que, em mãos menos sutis, poderiam facilmente descambar para a vulgaridade e o mau gosto. Nenhuma atuação é digna de um Oscar e é pouco provável que o filme entre na lista dos preferidos da crítica, mas quem disse que só de obras-primas é feita a história do cinema? Se visto sem preconceitos - afinal é um "filme de mulher" -, "Do jeito que elas querem" é um programa dos mais divertidos.

sexta-feira

ENCONTRO ÀS ESCURAS


ENCONTRO ÀS ESCURAS (Blind date, 1987, TriStar Pictures, 95min) Direção: Blake Edwards. Roteiro: Dale Launer. Fotografia: Harry Stradling. Montagem: Robert Pergament. Música: Henry Mancini. Figurino: Tracy Tynan. Direção de arte/cenários: Rodger Maus/Carl Biddiscombe. Produção executiva: Gary Hendler, Jonathan D. Krane. Produção: Tony Adams. Elenco: Bruce Willis, Kim Basinger, John Larroquette, William Daniels. Estreia: 24/3/87

Em maio de 1986, quando começaram as filmagens de "Encontro às escuras", Bruce Willis ainda não era o astro de Hollywood que se tornou após a estreia e o estrondo de "Duro de matar" (1988), mas já tinha a seu favor a popularidade adquirida com o êxito de audiência da telessérie "A gata e o rato", que coestrelava com Cybil Sheppard e que lhe deu visibilidade o bastante para que arriscasse uma carreira no cinema. No entanto, mesmo que seu futuro na tela grande ainda fosse uma incógnita, sua escolha para o papel principal em um filme do festejado Blake Edwards foi uma aposta certeira do estúdio (TriStar Pictures): por mais que a sensualidade de Kim Basinger fosse um atrativo dos maiores (leia-se "9 1/2 semanas de amor"), é certo que o carisma de Willis foi um dos fatores preponderantes para o razoável sucesso da produção, uma comédia romântica despretensiosa que arrecadou perto de 40 milhões de dólares - apesar do pouco caso com que foi recebida pela crítica. Mesmo sendo dirigido por um veterano tão celebrado quanto Edwards (ou talvez justamente por isso), "Encontro às escuras" acabou decepcionando e hoje é mais lembrado por ter sido a estreia de Willis no cinema do que por suas qualidades cômicas - mas, visto sem grandes expectativas, é um filme leve, divertido e simpático, com um sabor delicioso de nostalgia.

A trama até lembra um pouco o sensacional "Depois de horas" (1984), de Martin Scorsese, ao colocar seu protagonista no centro de um furacão provocado pelo desejo por uma mulher - um inferno de tempo limitado (boa parte do filme se passa em uma única noite) e consequências imprevisíveis, com a violência sempre à espreita, ainda que retratada de forma cínica e irônica. No caso do filme de Edwards a vítima é Walter David, um típico yuppie dos anos 1980, um ambicioso executivo perto de ver seu sonho de promoção chegar a suas mãos. Justamente para agradar ao patrão conservador, Walter resolve não aparecer sozinho em um jantar de negócios - e aceita encontrar uma amiga da cunhada mesmo sem saber absolutamente nada a seu respeito (exceto o fato de que a beldade não pode beber "para não sair de si.") Assim como seu irmão, Walter entende equivocadamente a dica e só vai descobrir isso tarde demais. Encantado pela beleza e pelo charme de Nadia Gates (Kim Basinger, morena e com surpreendente timing cômico), Walter insiste em que ela beba alguns goles de champagne antes do compromisso formal com seu chefe. Para seu desespero, porém, o aviso da cunhada se revela um eufemismo, e a tímida Nadia, sob o efeito do álcool, libera uma personalidade tão festiva quanto irresponsável, capaz de destruir a imagem cuidadosamente construída por Walter diante de seus colegas de trabalho. Não bastasse isso, seu ex-noivo, David (John Larroquette), não parece disposto a aceitar tranquilamente o rompimento - e surge como uma sombra no caminho do novo casal.


 

Apostando tanto no humor visual (que tanto deu certo em seus filmes com Peter Sellers) quanto na tentativa de evocar uma atmosfera de pesadelo (mas sem o tom sinistro de uma produção de suspense), Blake Edwards demonstra uma irregularidade incômoda: não apenas a história demora a começar como sofre de uma queda brusca de ritmo no terço final. O roteiro de Dale Launer sofreu diversas alterações até chegar às telas, e o próprio roteirista rejeitou o produto final, que se mostra um cruzamento nem sempre bem-sucedido entre o já citado "Depois de horas", o nonsense "Totalmente selvagem", de Jonathan Demme (lançado em 1986) e as comédias românticas estreladas por Katharine Hepburn e Spencer Tracy. A química entre Bruce Willis e Kim Basinger é precisa, mas nem sempre é aproveitada a contento - a ponto de o casal ser separado por quase todo o último ato. Quando funciona, "Encontro às escuras" faz lembrar os melhores momentos de Blake Edwards. Quando não acontece, deixa um sentimento de frustração que explica a má recepção do filme junto à crítica. Não se pode deixar de perceber a falha do cineasta em manter um ritmo consistente ou construir um mínimo de profundidade em seus personagens, que agem sempre de forma imatura e inconsequente - ok, é uma comédia, mas até mesmo dentro das regras de um gênero específico é possível criar coerência e complexidade.

No início de sua produção, "Encontro às escuras" teria Madonna como atriz principal - na época em que a cantora estava flertando fortemente com o cinema, estrelando filmes divertidos como "Procura-se Susan desesperadamente" (1985) e "Quem é esta garota?" (1987). A substituição por Kim Basinger se deu quando a polêmica estrela pop descobriu que Bruce Willis já havia sido contratado como o astro do filme, o que a impediria de impor seu então marido Sean Penn no papel central. Não que Penn precisasse - hoje é um dos melhores atores em atividade em Hollywood -, mas o projeto em conjunto do casal talvez apagasse o fiasco de "Surpresa de Shangai", que fizeram em 1986 e pelo qual haviam sido apedrejados pela crítica e ignorados pelo público. É difícil dizer se o resultado seria melhor ou pior do que a versão estrelada por Bruce Willis e Kim Basinger - mas, a julgar por boa parte das produções lideradas por Madonna em suas incursões na tela grande, não teria sido um ponto alto de sua carreira. Para Willis, no entanto, foi um belo pontapé inicial de uma trajetória admirável que inclui sucessos acachapantes de bilheteria ("O sexto sentido", de 1999) e produções de extremo prestígio ("Pulp fiction: tempo de violência", de 1994).

 

O ESTRANHO QUE NÓS AMAMOS



O ESTRANHO QUE NÓS AMAMOS (The beguiled, 1971, Universal Pictures/The Malpaso Company, 105min) Direção: Donald Siegel. Roteiro: John B. Sherry, Grimes Grice, romance de Thomas Cullinan. Fotografia: Bruce Surtees. Montagem: Carl Pingitore. Música: Lalo Schifrin. Figurino: Helen Colvig. Direção de arte/cenários: Ted Haworth/John Austin. Produção executiva: Jenninge Lang. Produção: Donald Siegel. Elenco: Clint Eastwood, Geraldine Page, Elizabeth Hartman, Jo Ann Harris, Darleen Carr, Mae Mercer, Pamelyn Ferdin, Melody Thomas. Estreia: 23/01/71 (Itália)

Quando "O estranho que nós amamos" estreou, em 1971, o nome de Clint Eastwood nos cartazes já era o suficiente para atrair multidões às salas de exibição: já fazia alguns anos que os filmes que havia feito com Sergio Leone na Itália haviam chegado aos EUA e o transformado em ídolo, frequentemente fazendo papéis de durão misterioso e monossilábico em produções repletas de testosterona, como "Meu nome é Coogan" (1968) e "Os abutres tem fome" (1970). Daí o choque diante do filme de Donald Siegel: de narrativa lenta e psicológica, com personagens complexos e um protagonista dúbio, a adaptação do romance de Thomas Cullinan, publicado em 1966, desagradou profundamente aos fãs mais ardorosos do ator e deu à Universal Pictures um inesperado fracasso de bilheteria. A culpa, no entanto, não foi nem de Eastwood nem de Siegel - ambos em excelentes momentos da carreira -, e sim do próprio estúdio, que vendeu a produção como mais um filme de ação típico do astro. Porém, se em seu lançamento "O estranho que nós amamos" decepcionou em termos financeiros, o tempo lhe fez justiça: aclamado pela crítica e tornado cult por excelência, o filme é hoje reconhecido como uma pequena obra-prima - e permaneceu na mente de seus fãs a tal ponto de render um remake, realizado por Sofia Coppola em 2017. Tocante, forte e ousado, é também um dos pontos altos da filmografia de um ator cuja trajetória é das mais respeitáveis de Hollywood.

Assim como "...E o vento levou", a trama de Cullinan se passa durante a Guerra de Secessão norte-americana, e também como no livro de Margareth Mitchell, é um tanto problemático que a ação retrate o norte abolicionista como vilão e o sul escravagista como vítima. No entanto, esta é a menor das questões, diante de um enredo que não tem medo em flertar com temas pesados, como pedofilia, incesto e estupro - e de certa forma envernizando-os com uma dose generosa de poesia. Pontuada pela bela trilha sonora de Lalo Schifrin, a história de "O estranho que nós amamos" é narrada com insuspeita elegância por Siegel - cujo currículo apontava mais para filmes policiais bem pouco sutis: em rápidos flashbacks ou pensamentos em off, o cineasta expõe seus personagens em todas as suas idiossincrasias, traumas e desejos mais profundos sem nunca deixar de prestar atenção no ritmo e no clima de tensão sexual constante. Envolvente e claustrofóbico, o roteiro foge dos clichês e do previsível - e surpreende ainda mais no clímax, violento e que obrigou diretor e ator principal a baterem de frente com os todo-poderosos do estúdio, pouco confortáveis em dar sinal verde para um desfecho tão radical (ainda que coerente e dramaticamente satisfatório).

 

O protagonista do filme é o soldado ianque John McBurney (Clint Eastwood), que, encontrado ferido em uma floresta da Louisiana, é levado por uma curiosa pré-adolescente até a escola de moças onde ela estuda. A escola, comandada com rigidez pela proprietária, Martha Farnsworth (Geraldine Page), é isolada e apenas ocasionalmente é visitada por tropas amigas, e a chegada de um inimigo, ainda que em péssimas condições de saúde, deixa todas as alunas, a professora Edwina (Elizabeth Hartman) e a escrava Hallie (Mae Mercer) em estado de permanente tensão. Sedutor, McBurney logo descobre que a única forma de sair ileso da situação é usar de seu charme e inteligência, manipulando as moradoras do local através de suas carências físicas e emocionais. Assim, envolve Martha em sua lábia, seduz uma aluna mais velha, Carol (Jo Ann Harris), faz promessas românticas a Edwina e mantém todas ignorando sua estratégia. Não demora, no entanto, para que o ambiente carregado de tensão sexual exploda de forma inesperada e violenta.

A atmosfera encharcada de tesão é, talvez, o principal elemento narrativo de "O estranho que nós amamos": Siegel não tem medo de fazer de McBurney uma espécie de anjo exterminador, capaz de destruir a aparente tranquilidade da escola feminina sem que seja preciso muito esforço. Sua presença, quase sempre silenciosa mas dotada de grande força, é o catalisador de um furacão de ressentimentos, inveja, ciúmes e mentiras, das quais ninguém (ou quase) sai impune. O roteiro não se furta a fazer de cada um de seus personagens peças fundamentais em explorar os desejos mais recônditos do ser humano - a severa diretora, por exemplo, esconde um proibido romance do passado e não demora em se render aos mais desvairados pensamentos em relação ao (a princípio) indesejado hóspede e não hesita em ser a mão vingadora do grupo, em uma sequência que certamente deve ter deixado os executivos da Universal Pictures de cabelo em pé. Em uma grande atuação de Geraldine Page - em um papel pensado para a musa francesa Jeanne Moureau (ideia vetada pelo presidente do estúdio, Lew Wasserman) -, Martha Farnsworth é o leme de um navio aparentemente sólido que escapa por pouco de um trágico naufrágio. Corajoso, poético e surpreendente, "O estranho que nós amamos" não é o filme preferido de Don Siegel dentre todos os seus trabalhos à toa. É uma produção de orgulhar qualquer cineasta e um dos clássicos do cinema hollywoodiano da década de 1970 e de quebra pode ser considerado o responsável pela estreia de Clint Eastwood como diretor - além de protagonista, Eastwood realizou um documentário sobre as filmagens, chamado "The beguiled: the storyteller", o começo de sua vitoriosa carreira também atrás das câmeras.

quarta-feira

DOGMA

DOGMA (Dogma, 1999, Miramax Pictures, 130min) Direção e roteiro: Kevin Smith. Fotografia: Robert Yeoman. Montagem: Scott Mosier, Kevin Smith. Música: Howard Shore. Figurino: Abigail Murray. Direção de arte/cenários: Robert Holtzman/Diana Stoughton. Produção executiva: Jonathan Gordon. Produção: Scott Mosier. Elenco: Ben Affleck, Matt Damon, Linda Fiorentino, Chris Rock, Alan Rickman, Salma Hayek, Janeane Garofalo, Jason Lee, Jason Mewes, Kevin Smith, Alanis Morissette. Estreia: 21/5/99 (Festival de Cannes)

Em 1998, o diretor/ator/roteirista Kevin Smith descobriu na pele, algo que o veterano Martin Scorsese já sabia no mínimo há dez anos, quando lançou seu "A última tentação de Cristo: poucos temas são tão espinhosos e capazes de exaltar ânimos quanto a religião - especialmente a católica. Antes mesmo da estreia de "Dogma" - adiada por seis meses justamente devido a celeumas relativas a seu conteúdo -, o filme de Smith já era alvo de virulentas manifestações, campanhas negativas, ameaças de boicote e todo tipo de controvérsia. O motivo era um só: falar de Deus e religião em uma comédia iconoclasta que misturava anjos renegados, uma descendente de Cristo que trabalhava em uma clínica de aborto, questionamentos a respeito da interferência da Igreja na manutenção de uma mitologia que dá margens a tanto, e algumas ousadias "imperdoáveis", como mostrar um apóstolo negro e Deus na forma feminina. Baseados em uma das várias versões do roteiro - vazada de forma anônima pela Internet -, grupos religiosos ergueram a voz contra a produção a ponto de assustar até mesmo suas distribuidoras: sorte da pequena Lions Gate, que herdando o filme da Disney (cujo histórico de filmes familiares não condizia com o tom do filme) e da então toda-poderosa Miramax (que preferiu não arriscar seu prestígio mesmo acreditando no projeto), lançou aquele que seria seu produto mais rentável até o advento do oscarizado "Crash: no limite" (2004): apesar (ou por causa) das acaloradas discussões, "Dogma" rendeu mais de 30 milhões de dólares - três vezes o seu custo estimado e um êxito surpreendente para os padrões de Smith.

Acostumado com seu status de cineasta cult, com filmes de orçamento baixo e repercussão restrita, Kevin Smith viu-se, graças à "Dogma", no olho de um furacão. A controvérsia ao redor do filme (somada à presença de Ben Affleck e Matt Damon no começo de sua ascensão popular), ajudou a alçá-lo a um patamar nunca antes experimentado - "O balconista" (1994), "Barrados no shopping" (1995) e "Procura-se Amy" (1997), suas produções anteriores, eram conhecidas e aclamadas por uma parcela específica de cinéfilos, fãs de cinema independente e/ou alternativo. Com "Dogma" e seu elenco recheado de nomes conhecidos, seus efeitos visuais e o marketing espontâneo oferecido pela Liga Católica norte-americana, seu alcance tornou-se internacional - um alento para aqueles que não conheciam sua filmografia, repleta de um humor tão inteligente quanto chulo, tão sofisticado quanto popular (leia-se nerd). E não deixa de ser irônico que, mesmo demonizado pelos fieis mais agressivos, Smith tenha se declarado, à época do lançamento do seu polêmico filme, um católico - da mesma forma que Scorsese, apedrejado sem piedade por sua adaptação do livro de Nikos Kazantzakis mesmo tendo passado por um seminário.

 

Smith escreveu o primeiro tratamento de "Dogma" antes mesmo de "O balconista", seu primeiro longa, lançado em 1994. E quando finalmente acreditou que já estava na hora de transformar o script em realidade, quase terceirizou a produção: felizmente o cineasta Robert Rodriguez - queridinho do cinema independente desde sua estreia com o baratíssimo "El mariachi", de 1991 - percebeu que o projeto de "Dogma" era pessoal demais para que outra pessoa que não Smith assumisse a direção. Começava então uma odisseia de trocas, substituições e possibilidades que poderiam ter tornado o filme em algo completamente diferente. Para o principal papel feminino, Bethany, a última descendente de Cristo na Terra, Smith pensou inicialmente em Gillian Anderson - em alta com o sucesso da série "Arquivo X". Nomes como Shannen Doherty e Joey Lauren Adams, antigas colaboradoras do cineasta, também surgiram - até que a cantora Alanis Morissette foi escolhida e posteriormente descartada: por problemas de agenda com a turnê de seu novo álbum, Morissette acabou ficando com um papel menor, mas de importância fundamental (para o qual foram seriamente cotadas Holly Hunter e Emma Thompson). Linda Fiorentino - tornada estrela por filmes como "O poder da sedução" (1994) e "MIB: Homens de preto" (1997) - foi a escolha definitiva para o elenco, para desgosto do próprio Smith, que se arrependeu amargamente da decisão: os dois não se deram nada bem durante as filmagens, a ponto do diretor declarar em entrevistas que teria sido melhor escalar a coadjuvante Janeane Garofalo como protagonista (uma situação delicada que só foi resolvida anos mais tarde). Além disso, outros nomes de Hollywood foram cogitados para papéis cruciais: Matt Damon só entrou no elenco para viver Loki, o anjo da morte, porque o ator inicialmente escalado, Jason Lee, não estava disponível para filmagens longas (o que fez com que interpretasse Azrael, consideravelmente menor para o qual também foram considerados Bill Murray, John Travolta e Adam Sandler). Samuel L. Jackson e Will Smith foram pensados para viver Rufus, o apóstolo negro que revela histórias inéditas da vida de Cristo - antes que Chris Rock fosse contratado. E Alan Rickman - provavelmente o ator de maior prestígio do elenco - surpreendeu ao aceitar viver Megatron depois de confessar ser fã de "Procura-se Amy".

A trama de "Dogma" é um primor de criatividade e nonsense. Dois anjos renegados, Loki (Matt Damon) e Bartleby (Ben Affleck) querem forçar sua reentrada no céu ao atravessar o portal de uma igreja em Nova Jersey: com a bênção do Papa, todos que o fizerem terão seus pecados perdoados automaticamente. Tal situação é um perigo, segundo Metatron (Alan Rickman), pois acabará com a ideia da infalibilidade de Deus e consequentemente acabará com a humanidade. Para isso, o mensageiro divino procura Bethany (Linda Fiorentino), funcionária de uma clínica de abortos que passa por uma séria crise de fé e que, sem que ela mesma saiba, é a última descendente de Cristo - e portanto a única pessoa capaz de impedir que os anjos atinjam seu objetivo. Para ajudá-la, Bethany contará com a ajuda de dois "profetas", Jay (Jason Mewes) e Silent Bob (Kevin Smith) - personagens recorrentes na filmografia do diretor -, um apóstolo cuja existência foi apagada da Bíblia por racismo, Rufus (Chris Rock), e a stripper Serendipity (Salma Hayek) - também conhecida como Musa. Contra Bethany e seu grupo não estão apenas Loki e Bartleby: o demônio Azrael (Jason Lee), que tem seus próprios motivos para chegar até Nova Jersey e desafiar o poder do Criador.

Mas, afinal, "Dogma" é blasfemo ou ofensivo? Depende. Se o espectador é daqueles que se ofende facilmente e não desliga o senso crítico diante de uma produção com a missão nítida de fazer rir, logicamente é possível que acabe a sessão furioso - Smith não poupa nada de suas piadas, e equilibra-se entre tiradas inteligentes e surpreendentes e momentos de puro constrangimento (é uma característica sua falar de flatulências e outras escatologias). Porém, se existe a consciência de que tudo é uma grande brincadeira (e no final das contas bastante reverente), é certo de que a produção rende boas e várias gargalhadas. Alguns diálogos fazem pensar - será que foi isso que incomodou tanto? - e a mensagem final, de que Deus é amor e compaixão, deixa claro que, mesmo com tantas bobagens saídas de sua mente, Kevin Smith ainda é o menino católico praticante que foi na infância. Se alguém tem dúvidas que escute a bela "Still", composta e interpretada por Alanis Morissette nos créditos finais.

VAMPIROS DO DESERTO

VAMPIROS DO DESERTO (The forsaken, 2001, Screen Gems/Sandstorm Films, 90min) Direção e roteiro: J. S. Cardone. Fotografia: Steven Bernstein...