sexta-feira

EM BUSCA DO OURO

 


EM BUSCA DO OURO (The gold rush, 1925, Charles Chaplin Productions, 83min) Direção, roteiro, montagem, música e produção: Charles Chaplin. Fotografia: Roland Thoteroh. Música: Max Terr. Direção de arte: Charles D. Hall. Elenco: Charlie Chaplin, Mack Swain, Tom Murray, Georgia Hale, Henry Bergman, Malcolm Waite. Estreia: 26/6/1925

2 indicações ao Oscar: Trilha Sonora Original, Som

Quinto filme mudo de maior bilheteria da história, "Em busca do ouro" é, em opinião compartilhada por público e crítica, um dos mais completos trabalhos de Charles Chaplin. Relançado em 1942 com uma trilha sonora nova e uma narração em off substituindo os cartões com legendas, concorreu ao Oscar em duas categorias (música original e som) e reafirmou sua posição como uma obra-prima de seu criador, já então consagrado como um dos maiores astros do cinema. Inspirado por um fato histórico - as dificuldades enfrentadas por garimpeiros na corrida do ouro no Alaska e no Klondike no final do século XIX - e ciente de que poderia extrair humor mesmo de situações trágicas, o cineasta criou uma sucessão de sequências brilhantes que entraram de imediato no inconsciente coletivo de gerações e mais gerações. Realizado com o perfeccionismo típico do cineasta, com locações nas geleiras de Serra Nevada, centenas de figurantes (reais garimpeiros) e efeitos visuais ainda hoje impressionantes - como a maquete de uma cabana que é parte essencial do clímax -, "Em busca do ouro" figura, não à toa, na lista de filmes preferidos de nomes tão díspares quanto Guillermo Del Toro, Richard Attenborough e Akira Kurosawa.

Considerado por Chaplin como o filme pelo qual ele gostaria de ser lembrado, "Em busca do ouro" teve problemas de ordem pessoal durante o processo de filmagens. Tudo começou quando o diretor iniciou um romance clandestino com Lita Grey, de apenas 16 anos de idade. Apaixonado, ele escreveu o principal papel feminino para sua nova atriz principal, mas foi obrigado a suspender as filmagens quando ela descobriu-se grávida. Durante os três meses de paralisação, Chaplin testou outras possibilidades - entre elas a futura estrela Carole Lombard - e chegou até Georgia Hale, que assumiu, então, o papel de Georgia, a dançarina por quem o protagonista cai de amores depois em um clube de dança. O casamento do diretor e Grey nasceu fadado ao fracasso - apesar dos dois filhos que tiveram durante seu relacionamento - e não demorou para que o insaciável cineasta se sentisse atraído também pela nova descoberta artística. O romance entre os dois surgiu durante as filmagens - mas acabou de tal modo que, no relançamento do filme, em 1942, o longo beijo final dos dois personagens acabou de fora da edição.


 

Caído em domínio público em 1953 devido a negligência do espólio de Chaplin, "Em busca do ouro" apresenta, em pouco mais de uma hora de duração, algumas das cenas mais lembradas da carreira do diretor. A dança dos pãezinhos, a refeição em que o protagonista serve os próprios sapatos (feitos de alcaçuz e que levou três dias para ser finalizada, levando-o a um hospital com um choque de glicose), a sequência em que seu companheiro (faminto) o imagina como um frango assado, a briga no salão de dança e a luta para que a cabana não despenque de um precipício durante uma tempestade de neve são momentos do mais puro humor chapliniano. Realizadas em uma época sem efeitos digitais e os recursos modernos, são um exemplo de execução e se mantém até hoje, quase um século depois, tão frescas e divertidas quanto antes. Provando-se ainda um talento ímpar para atingir todo tipo de público, Chaplin consegue fazer rir crianças e adultos, independente de classe social ou credo religioso - um alcance fenomenal sem precedentes e ainda sem herdeiros naturais.

Primeiro filme estrelado por Chaplin para a United Artists, estúdio do qual era sócio, "Em busca do ouro" reforça sua capacidade de transformar até mesmo situações extremas em fontes de humor e poesia. Inserindo seus personagens em um cenário onde podem acontecer ataques de urso, tempestades de neve, fome extrema, quedas em despenhadeiros e outros perigos naturais (e outros ainda causados pelos seres humanos que os cercam), o ator/diretor/produtor/roteirista encontra formas criativas de buscar a gargalhada (ou, no pior dos casos, um sorriso de ternura) e marcar de maneira indelével (mais uma vez) seu nome na história do cinema mundial - sem dizer uma única palavra.

quinta-feira

O GAROTO

 


O GAROTO (The kid, 1921, Charles Chaplin Productions, 68min) Direção,roteiro, montagem e produção: Charles Chaplin. Fotografia: Roland Totheroh. Direção de arte: Charles D. Hall. Elenco: Charlie Chaplin, Jackie Coogan, Edna Purviance, Carl Miller. Estreia: 16/01/21

A epígrafe de "O garoto" - "Um filme com um sorriso - e talvez uma lágrima" - é, sem dúvida, bastante apropriado. O primeiro longa-metragem de Charles Chaplin, depois de vários curtas geniais e aplaudidos unanimemente, é um conjunto perfeito de todos os elementos que sua filmografia englobaria a partir de então: humor físico de alta precisão, uma dose de sentimentalismo, uma simplicidade franciscana (que escondia as dificuldades oriundas do perfeccionismo do diretor) e a capacidade de extrair poesia da mais prosaica situação. Filmada por um período de cinco meses e meio - filmagens tão longas que incomodaram os financiadores do projeto, apavorados com a demora de finalização -, a primeira obra-prima de Chaplin foi realizada durante um período conturbado da vida pessoal do cineasta, que passava pelo divórcio de sua primeira mulher, Mildred Harris, e o fato de retratar o cotidiano pobre e miserável de pessoas em situação precária de vida provavelmente faz de "O garoto" um dos filmes mais pessoais e autobiográficos de sua carreira. 

Oriundo de uma infância de privações e dificuldades financeiras e emocionais, Charles Chaplin encontrou em Carlitos o alter-ego ideal: pobre, sem passado e/ou futuro, sozinho no mundo e invariavelmente solitário (mesmo quando acompanhado). Em "O garoto" seu protagonista não está sozinho - afinal sua vida encontra uma razão quando se depara com um bebê abandonado em um beco -, mas, apesar disso, vive na iminente possibilidade de perdê-lo para a justiça. Pobre, vivendo em condições quase insalubres (mas repleta de amor e afeto), ele ainda encontra espaço para ensinar ao menino, quando um pouco maior, maneiras pouco nobres de sobreviver às intempéries financeiras: trabalhando como vendedor de vidros, ele conta com a criança para que quebre as vidraças da cidade, por coincidência no exato momento em que ele está passando pelo local. Os moradores não percebem o esquema, mas o vagabundo criado por Chaplin não passa incólume ao olho da lei, representada na figura de um policial com cara de poucos amigos - um estereótipo frequente na obra do diretor. Além disso, outra ameaça surge repentinamente no horizonte da inusitada família: a mãe do menino, que o deixou para trás na juventude, hoje uma atriz consagrada, procura reencontrá-lo para compensar os anos de ausência.


 

Se "O garoto" apresenta a essência do cinema de Charles Chaplin, muito se deve à química impecável entre o astro e seu colega mirim, o pequeno Jackie Coogan, descoberto pelo cineasta durante um número de vaudeville com seu pai, também artista e parte do elenco do filme (em três papéis pequenos): expressivo e talentoso, o pequeno Coogan acabou passando por problemas financeiros antes mesmo de atingir a idade adulta, explorado pela mãe e pelo padrasto. Ainda antes de voltar a tornar-se famoso - como o Tio Fester da série "A família Monstro", dos anos 1960 - chegou a contar com o auxílio do próprio Chaplin, com quem se encontrou pela última vez em 1972, quando o cineasta retornou a Hollywood para receber seu único Oscar (e um ano depois do relançamento de seu filme, com nova edição e nova trilha sonora). E não apenas Coogan teve sua vida atrelada a de de Chaplin além do campo profissional. Uma das atrizes que trabalhavam como extra em "O garoto" - Lita Grey, que interpreta um dos anjos na sequência de sonho no final da produção, e que tinha apenas 12 anos durante as filmagens - se tornou esposa do celebrado diretor depois de, aos 16 anos de idade, descobrir que seu romance com Chaplin resultou em uma gravidez (o casamento durou dois anos e gerou dois filhos).

Mas, a despeito de seus bastidores e dramas fora das telas, "O garoto" se  mantém, mesmo mais de um século depois de seu lançamento, como uma obra quase irretocável. Quase? Sim. Apesar de oferecer momentos do mais puro lirismo, cenas de estampar um sorriso no rosto do mais taciturno espectador e fixar na memória do público uma dupla memorável de protagonistas, o filme se estende além do que precisava, com uma sequência onírica que só se justifica pela necessidade de alcançar o tempo que o define como longa-metragem. Tal pecadilho, no entanto, não atrapalha em nada o prazer de ver (ou rever) uma das comédias mais doces e sentimentais da história do cinema - e que, não é à toa, figura no topo das preferências de muitos fãs de Chaplin - como o cineasta Wayne Wang, que o considera seu filme preferido. Certamente muita gente acompanha a opinião de Wang.

quarta-feira

O CASAMENTO DOS MEUS SONHOS


O CASAMENTO DOS MEUS SONHOS (The wedding planner, 2001, Columbia Pictures, 103min) Direão: Adam Shankman. Roteiro: Pamela Falk, Michael Ellis. Fotografia: Julio Macat. Montagem: Lisa Zeno Churgin. Música: Mervyn Warren. Figurino: Pamela Whiters. Direção de arte/cenários: Bob Ziembicki/Barbara Munch. Produção executiva: Moritz Borman, Guy East, Nina R. Sadowsky, Chris Sievernich, Nigel Sinclair. Produção: Peter Abrams, Deborah Del Prete, Jennifer Gibgot, Robert L. Levy, Gigi Pritzker. Elenco: Jennifer Lopez, Matthew McConaughey, Bridgette Wilson-Sampras, Judy Greer, Justin Chambers, Kathy Najimi, Alex Rocco, Joanna Gleason, Kevin Pollack. Estreia: 26/01/2001

No começo dos anos 2000, Jennifer Lopez já era uma estrela. Em seu currículo como atriz já constavam produções com diretores consagrados, como Francis Ford Coppola ("Jack", de 1996), Oliver Stone ("Reviravolta", de 1997) e Steven Soderbergh ("Irresistível paixão", de 1998) e elogios da crítica especializada por seu trabalho em "Selena" (1996). Como cantora, já havia vendido mais de 8 milhões de cópias com seu álbum de estreia, "On the 6" (1999) e estava lançando seu segundo trabalho, "J.Lo" - que tinha expectativas de se tornar um sucesso ainda maior. Portanto, quando "O casamento dos meus sonhos" estreou, em janeiro de 2001, seu nome no cartaz de um filme já era um atrativo e tanto - e levando-se em conta que seu parceiro de cena, Matthew McConaughey, também já tinha um fã-clube feminino dos maiores, não chegou a ser surpresa a bilheteria acima dos 90 milhões de dólares do filme no mercado internacional. Mesmo sem apresentar nenhuma novidade e seguindo à risca a receita das comédias românticas, o filme de Adam Shankman provou que, mesmo contra tecnologias de ponta e estratégias milionárias de marketing, histórias de amor ingênuas e superficiais sempre terão espaço junto a seu público fiel.

Assumindo o lugar de Sarah Michelle Gellar - que não conseguiu conciliar as filmagens com as gravações da série "Buffy: a caça-vampiros" - e Minnie Driver (segundo afirmações da atriz em entrevistas), Jennifer Lopez não precisa fazer muito esforço no papel principal do filme. Ela interpreta Mary Fiore, uma bem-sucedida organizadora de casamentos que se esforça para tornar-se sócia da empresa onde trabalha, enquanto luta para superar o traumático fim de seu relacionamento. Jovem e bonita, ela é, também, constantemente pressionada pelo pai viúvo a encontrar um novo amor - a ponto de fugir dos avanços do bem intencionado amigo de infância Massimo (Justin Chambers, que anos depois se tornaria astro com a série "Grey's Anatomy"). Dedicada à carreira, Mary vê na milionária Fran Donnolly (Bridget Wilson-Sampras) a chance de finalmente atingir seus objetivos profissionais: planejar a festa de seu casamento parece o caminho certo para o sucesso. Porém, seu encontro com o médico Steve Edison (Matthew McConaughey) vira tudo do avesso: apaixonada, Mary vê no rapaz o homem ideal para resolver sua vida romântica, mas descobre, decepcionada, que ele é o noivo de sua mais promissora cliente.


 

Apostando nos clichês e sem medo de contar uma história sem nenhuma grande novidade, o roteiro de "O casamento dos meus sonhos"serve, na verdade, como um veículo para o estrelato de Jennifer Lopez: bela, carismática e dotada de um razoável timing cômico, Lopez deita e rola com uma personagem que não lhe exige mais do que fazer exatamente isso: ser bela, carismática e exercitar seus dotes em comédia - que, se não chegam a ser brilhantes, funcionam como um relógio. O roteiro não aprofunda nenhum personagem e nenhum conflito (como é comum aos filmes do gênero), mas a direção de Shankman - que em 2007 assinaria a versão para as telas do musical "Hairspray: em busca da fama" - se equilibra entre o burocrático e o elegante, disfarçando a fragilidade do enredo e até de algumas soluções um tanto quanto apressadas. É também uma pena que o filme não aproveite o talento de coadjuvantes como Kathy Najimi (que pouco aparece como a dona da empresa da protagonista), Judy Greer (especialista em roubar a cena mesmo em papéis pequenos) e Joanna Gleason (na pele da mãe da noiva que está em vias de ver o futuro marido nos braços de sua organizadora de casamentos). Nem mesmo Bridget Wilson-Sampras tem muito o que fazer, eclipsada pela química entre Lopez e Matthew McConaughey - que substituiu Brendan Fraser no último minuto e viu fortalecido seu status de galã romântico.

Responsável pelo cancelamento de um projeto semelhante que seria protagonizado por Jennifer Love Hewitt, "O casamento dos meus sonhos" é o que pode se chamar de filme-conforto. Seus personagens são velhos conhecidos do público-alvo (a romântica sonhadora com azar no amor, o galã comprometido com a mulher errada, a antagonista fútil), a história é previsível até o osso, a trilha sonora é suave e com uma canção feita para vender discos (a canção que toca nos créditos finais é "Love don't coast a thing", da própria Jennifer Lopez) e os coadjuvantes servem como contraponto humorístico à trama romântica. Se não entrega mais do que propõe é justamente por sua intenção em servir à plateia como mais uma coleção de clichês a que sua plateia possa recorrer quando necessitar de duas horas de diversão sem compromisso. "O casamento dos meus sonhos" é o equivalente cinematográfico de uma caixa de bombons ou um pote de sorvete nos momentos de crise. Esperar mais dele é um erro, mas aceitar suas limitações é o caminho para um passatempo agradável e leve.

 

terça-feira

A PIOR PESSOA DO MUNDO


A PIOR PESSOA DO MUNDO (Verdens verste menneske, 2021, Oslo Pictures/MK2 Productions/Film i Vast, 128min) Direção: Joachim Trier. Roteiro: Joachim Trier, Eskil Vogt. Fotografia: Kasper Tuxen. Montagem: Olivier Bugge Coutté. Música: Ola Flottum. Figurino: Ellen Daheli Ystehede. Direção de arte/cenários: Roger Rosenberg/Mirjam Veske. Produção executiva: Dyveke Bjorkly Graver, Tom Kjeseth, Joachim Trier, Eskil Vogt. Produção: Andrea Beretsen Ottmar, Thomas Robsahm. Elenco: Renate Reinsve, Anders Danielsen Lie, Herbert Nordrum. Estreia: 08/7/2021 (Festival de Cannes)

2 indicações ao Oscar: Melhor Filme Internacional, Roteiro Original

Vencedor da Palma de Ouro no Festival de Cannes: Melhor Atriz (Renate Reinsve) 

Ao contrário do que podem fazer acreditar as redes sociais e os filmes tipicamente hollywoodianos, a vida não é feita de escolhas fáceis. Optar por um caminho - seja ele profissional, romântico ou familiar - significa, por definição, que é preciso abandonar todos os outros, e isso é, ninguém pode negar, definitivamente árduo e doloroso. Nessa trajetória rumo ao amadurecimento, feridas são abertas, pessoas são magoadas e é constante a sensação de que a felicidade de uns provavelmente será a infelicidade de outros. E é justamente esse sentimento de angústia que atormenta a vida de Julie, a protagonista da comédia dramática "A pior pessoa do mundo" - que representou a Noruega na disputa pela estatueta de melhor filme internacional no Oscar 2022. Indicado também na categoria de roteiro original, o filme de Joachim Trier aposta na aparente simplicidade de sua trama para envolver o espectador em uma narrativa que equilibra com rara felicidade um humor sutil, um drama que dribla miraculosamente o sentimentalismo e elementos de comédia romântica - sem que se transforme, no processo, em uma mixórdia de gêneros aleatórios. Inteligente e verossímil, é também, a prova cabal de que o cinema fora de Hollywood há muito deixou de lado o rótulo de hermético ou intelectual.

Julie - interpretada por Renate Reinsve, premiada como melhor atriz no Festival de Cannes 2021 - está chegando aos trinta anos e se encontra em várias encruzilhadas. Profissionalmente não consegue decidir-se definitivamente por nenhuma carreira - medicina, psicologia e fotografia são suas opções, com maior tendência à última. Familiarmente, sente-se presa à mágoa que sente por ser preterida pelo próprio pai. E romanticamente, então, é ainda pior. Envolvida seriamente com Aksel (Anders Danielsen Lie) - alguns anos mais novo e quadrinista profissional -, ela percebe, angustiada, que não compartilha com ele os desejos de formar uma nova família. Tal situação a leva a sentir-se atraída por Eivind (Herbert Nordrum), um barista com quem se sente mais à vontade e mais próxima do que pode se chamar de felicidade. Porém, as coisas não são assim tão fáceis - e qualquer decisão que toma a leva por caminhos que podem não ter mais volta. Incapaz de sentir-se totalmente firme dos rumos de sua vida e por consequência agindo de forma a machucar a quem ama, Julie por vezes se torna o que mais temia: a pior pessoa do mundo.


 

O roteiro de "A pior pessoa do mundo" é um achado. Tanto pode seguir a cartilha do naturalismo, criando personagens verossímeis e situações facilmente identificáveis por qualquer espectador quanto pode apostar no caminho contrário - o primeiro encontro real entre Julie e Eivind, por exemplo, acontece enquanto o mundo à sua volta parece estático, como se não existisse de verdade. Os personagens criados por Joachim Trier e Eskil Vogt são, ao mesmo tempo, adoráveis e falíveis - dotados, portanto, de defeitos e qualidades intrinsecamente humanos. E a atuação de seu elenco, tanto principal quanto coadjuvante, é digna de aplausos entusiasmados. Se Anders Danielsen Lie chama a atenção com um personagem complexo e multidimensional - com direito a reviravoltas dramáticas e até mesmo um surpreendente nu frontal -, é Renate Reinsve que faz do filme uma pequena obra-prima: escolhida pelo diretor às vésperas de abandonar a carreira de atriz e investir no ramo da marcenaria (!!), Reinsve simplesmente torna Julie uma das mais fortes protagonistas femininos do cinema das últimas décadas. Dotada de uma série aparentemente inesgotável de nuances, a jovem vencedora do Festival de Cannes consegue até mesmo mudar de feições, de acordo com cada momento da trama: sexy, insegura, ousada, traumatizada, angustiada, decidida, apaixonada.... sempre que Julie está em cena, seus sentimentos são facilmente reconhecidos no rosto comum (mas nem por isso esquecível) de sua intérprete. Como se fosse uma página em branco, pronta para transmitir os anseios de sua personagem, Reinsve rouba o filme inteiro para si - não à toa, é sua imagem que estampa o principal cartaz da produção e sua personalidade a inspiração para a história.

"A pior pessoa do mundo" é um filme delicioso, uma prova inconteste de que a simplicidade narrativa nem sempre significa pobreza de ideias ou falta de criatividade. Ao retratar gente cujos desejos e traumas refletem os mesmos que qualquer um da plateia, a trama de Joachim Trier acaba por devolver ao público tanto sua capacidade de refletir quanto de sonhar, sem deixar de, nesse meio-tempo, lembrar que o cinema não serve apenas como válvula de escape ou sessão de terapia: perfeitamente equilibrado entre esses dois pontos, é, segundo palavras do diretor, "uma comédia romântica feita para aqueles que não gostam de comédias românticas". Ou seja, é a vida real com verniz de fantasia - não aliena completamente e não machuca com profundidade. Imperdível!


sexta-feira

CYRANO


CYRANO (Cyrano, 2021, MGM Pictures/Working Title Films/BRON Studios, 123min) Direção: Joe Wright. Roteiro: Erica Schmidt, musical de sua autoria, peça teatral original de Edmond Rostand. Fotografia: Seamus McGarvey. Montagem: Valerio Bonelli. Música: Aaron Dessner, Bryce Dessner. Figurino: Massino Cantini Parrini, Jacqueline Durran. Direção de arte/cenários: Sarah Greenwood/Katie Spencer. Produção executiva: Matt Berninger, Carin Besser, Jason Cloth, Aaron Dessner, Bryce Dessner, Aaron L. Gilbert, Erica Schmidt, Sheeraz Shah, Kevin Ulrich, Lucas Webb, Sarah-Jane Robinson. Produção: Tim Bevan, Eric Fellner, Guy Helley. Elenco: Peter Dinklage, Haley Bennett, Kelvin Harrison Jr., Ben Mendelsohn, Monica Dolan, Glen Hansard. Estreia: 02/9/2021 (Festival de Telluride)

Indicado ao Oscar de Figurino

Escrita por Edmond Rostand em 1897, "Cyrano de Bergerac" tornou-se, com o passar do tempo, uma das peças teatrais mais montadas da história - e um ícone cultural dos mais duradouros, atravessando gerações sempre com o mesmo sucesso. Parte da responsabilidade de tal perenidade deve-se ao cinema, que em várias ocasiões aproveitou-se para adaptar o texto do dramaturgo francês para as telas - caso da versão estrelada por José Ferrer em 1950 (que deu ao ator o Oscar da categoria) e da transposição estrelada por Gérard Depardieu em 1990 (que também foi indicada à estatueta de melhor ator). A mais nova tradução de Rostand para o público cinéfilo, lançada em 2021, prova que, apesar de tudo, a força de sua história ainda se presta a novos olhares e inovações estilísticas. Dirigido por Joe Wright, "Cyrano" não apenas ousa em transformar a tragédia em musical como altera o principal elemento do texto, fazendo de seu protagonista não um homem que sofre com um nariz descomunal, mas um talentoso soldado torturado por sua condição de anão. Beneficiado com o talento inegável de Peter Dinklage - aproveitando o sucesso de seu trabalho na série "Game of thrones" -, o Cyrano de Wright em nada deixa a desejar em relação a seus antecessores, apesar de ter sido praticamente ignorado pela Academia e outras cerimônias de premiação.

Na verdade, a versão de Wright é uma adaptação indireta do clássico de Rostand. Sua origem é a reinvenção do texto original, criada pela dramaturga Erica Schmidt e montada em 2018 em Connecticut - e no ano seguinte em teatros off-Broadway, em Nova York. Sem a necessidade de uma fidelidade absoluta ao clássico, o cineasta - autor de adaptações de obras como "Orgulho e preconceito" (2005) e "Anna Karenina" (2012), além do excepcional "Desejo e reparação" (2007) - explora todas as possibilidades visuais da trama com uma liberdade encantadora e uma sensibilidade irresistível. Até mesmo seus artifícios para modernizar a forma de contar a história - e evitar o tédio que um texto em versos poderia causar a um público menos paciente - soam orgânicos e inteligentes, valorizados por uma reconstituição de época cuidadosa e uma fotografia (de Seamus McGarvey) cujo maior mérito é não tentar se sobrepor à trama e aos personagens. As canções - em especial a bela "Close my eyes", com a participação de Glen Hansard, do filme "Apenas uma vez" (2007) - conseguem integrar-se à narrativa com elegância ímpar, e se a escalação de Dinklage para o papel-título soa genial, o mesmo pode ser dito da escolha de Kelvin Harrison Jr. para viver o galã Christian - pela primeira vez um ator negro assume (ao menos nas telas) o papel do antagonista romântico (e involuntário) da história de amor entre Cyrano e a bela Roxanne.


 

Apesar das alterações oriundas da adaptação feita por Schmidt - que é casada com o ator Peter Dinklage -, a trama do filme permanece, em sua essência, a mesma: o protagonista é o romântico e sensível Cyrano, apaixonado pela doce Roxanne (Haley Bennett), e que esconde de todos o seu amor, ciente de que sua aparência física jamais permitirá uma aproximação maior entre eles. Corajoso e dotado de grande inteligência, o enamorado soldado francês vê sua situação ficar ainda mais complicada quando um colega, Christian (Kelvin Harrison Jr.), também cai de amores pela bela e voluntariosa jovem. Bonito mas sem muito conteúdo intelectual, Christian recorre a Cyrano para que este escreva versos sentimentais que possam conquistá-la: a farsa dá certo, e Roxanne se deixa seduzir, sem desconfiar que, na verdade, está encantada pela alma de seu velho amigo. Tudo poderia seguir indefinidamente se não fosse um outro problema no caminho do inusitado triângulo amoroso: o poder de um outro apaixonado por Roxanne, que, rejeitado, resolve mandar Christian (e Cyrano) para o campo de batalha.

Sem contar com um orçamento milionário que poderia lhe colocar como um grande épico - em especial nas cenas de batalha, cuja economia é muito bem disfarçada pelo talento do cineasta em criar soluções visuais criativas -, "Cyrano" acabou por passar quase despercebido pelo grande público, perdido entre as produções com maior visibilidade e marketing. Joe Wright - um diretor que entende como poucos as engrenagens do cinemão clássico - extrai o máximo do que lhe é oferecido, brindando o espectador com um espetáculo de extremo bom gosto, ainda que sem a opulência que se poderia esperar de uma produção de época. Com um começo um tanto confuso - um problema que se resolve muito a contento logo em seguida - e a sensação de estranhamento em relação à inclusão de canções em um material tão conhecido, o filme acaba por envolver principalmente pelo talento inquestionável de seu elenco, pela inteligência em contornar o que poderiam ser problemas e pela sensibilidade de uma história atemporal e emocionante. E é impossível não se deixar conquistar pelo carisma de Peter Dinklage, um Cyrano de Bergerac com todos os atributos para ingressar no rol de seus mais clássicos intérpretes.

 

quinta-feira

O BOM PATRÃO

 


O BOM PATRÃO (El buen patrón, 2021, Básculas Blanco/Crea SGR/ICAA, 116min) Direção e roteiro: Fernando León de Aranoa. Fotografia: Pau Esteve Birba. Montagem: Vanessa Marimbert. Música: Zeltia Montes. Figurino: Fernando García. Direção de arte/cenários: César Macarrón. Produção executiva: Pilar de Heras, Marisa Fernández Armenteros, Laura Fernández Espeso, Eva Garrido, Patricia de Muns. Produção: Fernando León de Aranoa, Javer Méndez, Jaume Roures. Elenco: Javier Bardem, Manolo Solo, Almudena Amor, Óscar de La Fuente, Sonia Almarcha, Fernando Albizu, Tarik Rimli. Estreia: 21/9/2021

A Balanças Blancos é uma tradicional fábrica, com décadas de história e a reputação de ser um dos ambientes de trabalho mais generosos do país. Seu presidente, Blanco (Javier Barden), inclusive, insiste em declarar que seus funcionários são como membros da família e que são eles os maiores responsáveis por seus sucesso e perenidade. Às vésperas da visita de uma comissão que poderá escolher a empresa para receber um diploma de excelência, porém, a aparência de exemplar tranquilidade do local começa a ruir. Em pouco mais de uma semana, caberá a Blanco lidar com uma série de problemas de ordem pessoal e profissional que põem em xeque sua capacidade de liderar não apenas seus empregados, mas principalmente suas relações familiares e de amizade. E tudo começa com dois acontecimentos aparentemente sem conexão: a tentativa de ajudar o filho delinquente de um antigo operário ao dar-lhe um emprego na loja da mulher e a demissão de outro empregado, que, revoltado, inicia uma manifestação na frente do prédio da empresa, acompanhado dos filhos pequenos e chamando cada vez mais a atenção da mídia.

Recordista histórico em indicações ao Goya - o Oscar espanhol -, com vinte indicações, "O bom patrão" levou seis estatuetas, incluindo melhor filme, direção, ator e roteiro original. Não chega a ser surpresa, quando se assiste à produção de Fernando León de Aranoa: um equilíbrio perfeito entre comédia e drama - com pitadas de suspense e uma dose generosa de crítica social -, o filme apresenta um protagonista falível e humanamente verossímil que ganha o público justamente por seus erros. Lógico que o carisma e o talento de Javier Bardem ajudam muito nesse quesito, mas o roteiro delicioso é tão repleto de camadas, de detalhes e de ironias que é difícil não se deixar envolver sem muito esforço. Contada em capítulos - cada um dedicado a um dia da atribulada semana de Blanco -, a trama de Aranoa vai se tornando, aos poucos, um acúmulo de situações problemáticas que apenas empurram a plateia em direção à empatia quase absoluta pelo personagem central, mesmo sendo ele desprovido de muitos escrúpulos. O que começa com um certo humor sombrio vai gradualmente assumindo contornos trágicos - e a direção firme do cineasta dribla magistralmente as armadilhas que surgem a cada cena, além de distanciar-se do tom de deboche explícito que a trama poderia assumir e aproximá-la de uma fábula repleta de cinismo sobre o mundo capitalista e a hipocrisia da sociedade como um todo.

 


Se não, vejamos: incomodado com a presença incômoda do ex-funcionário - que acampa, junto com os filhos, diante da fábrica, munido de um megafone e de uma vontade férrea de chamar toda a atenção possível da mídia -, Blanco faz o possível e o impossível para removê-lo da vista da comissão governamental, que pode aparecer a qualquer dia para inspecionar a empresa e confirmar seu status de exemplar. Para isso, não hesita em apelar para a lei - e até para meios heterodoxos e violentos a ponto de piorar ainda mais a situação. Não bastasse isso, o empresário precisa lidar com a queda de rendimento de seu braço direito, Miralles (Manolo Solo), que está deixando a crise em seu casamento atrapalhar a vida profissional - e é evidente que Blanco irá se intrometer nas relações extraconjugais do casal para tentar resolver as contendas, mesmo que para isso tenha que envolver outras pessoas na questão. Por fim, o incansável patrão se deixa seduzir pela nova estagiária, a jovem Liliana (Almudena Amor), apenas para descobrir que tal romance casual pode ter desdobramentos inusitados - e quase cruéis.

Dominado por um espetacular Javier Bardem - que apesar disso deixa espaço de sobra para interpretações superlativas de todo o elenco, mesmo aqueles em participações pequenas -, "O bom patrão" é uma amostra de que o cinema espanhol sobrevive muito bem mesmo sem a sombra de Pedro Almodóvar, seu maior representante junto ao público médio. Fernando León de Aranoa é um cineasta que conduz sua história com um visual sóbrio, um humor quase sofisticado e sutileza, deixando entrever nas entrelinhas uma crítica contundente ao sistema de classes e ao jogo social da burguesia - no discurso de Blanco, todos formam uma mesma família, mas na prática, conforme os interesses vão se revelando, as regras mudam e deixam notar um tecido que está esperando o primeiro puxão para romper completamente. Blanco tenta demonstrar, por todo o filme, uma falsa sensação de controle, mas não é preciso muito para que sua aflição transpire por uma série de atos desesperados que, ao invés de ajudar, apenas pioram o quadro. Os risos que "O bom patrão" desperta são nervosos, quase cínicos - e é isso que faz dele uma joia rara, um filme que, de modo inteligente, une o riso e a reflexão como forma de entretenimento da mais alta qualidade.

quarta-feira

ARGENTINA, 1985

 


ARGENTINA, 1985 (Argentina, 1985, 2022, La Unión de los Ríos/Kenya Films/Infinity Hills, 140min) Direção: Santiago Mitre. Roteiro: Santiago Mitre, Mariano Llinás, Martín Mauregui (colaborador). Fotografia: Javier Julia. Montagem: Andrés Pepe Estrada. Música: Pedro Osuna. Figurino: Mônica Toschi. Direção de arte/cenários: Micaela Saiegh. Produção executiva: Phin Glynn, Cindy Teperman. Produção: Victoria Alonso, Santiago Carabante, Chino Darín, Ricardo Darín, Axel Kuschevatzky, Agustina Llambi Campbell, Santiago Mitre, Federico Posternak, Ana Taleb. Elenco: Ricardo Darín, Peter Lanzani, Alejandra Fletchner, Paula Ransenberg. Estreia: 03/9/2021 (Festival de Veneza)

Vencedor do Golden Globe de Melhor Filme Internacional

As cicatrizes que a ditadura militar deixou na sociedade argentina ainda se fazem sentir no país, mesmo depois de quatro décadas após seu final. Pelo menos é que dizem filmes como "A história oficial" (1985), de Luis Puenzo - que concorreu ao Oscar de melhor filme estrangeiro - e o novo "Argentina, 1985", o fascinante petardo do diretor Santiago Mitre que surge como um potencial candidato ao Oscar 2023 na mesma categoria. Porém, enquanto a obra-prima de Puenzo direcionava suas câmeras a um olhar mais particular sobre o trágico período político encerrado em 1983 (com a história de uma professora descobrindo as origens de sua pequena filha adotiva), a produção de Mitre se debruça explicitamente sobre os crimes cometidos pelos militares - estupros, assassinatos, torturas - para fazer uma espécie de inventário de suas atrocidades e, por consequência, alertar sobre os perigos de que voltem a acontecer. Momentoso, sóbrio e inteligente, o filme, estrelado pelo sempre ótimo Ricardo Darín, surge na hora apropriada, mas seu sucesso não deve ser creditado somente à sua importância política: "Argentina, 1985" é cinema de primeira linha, um filmaço que consegue unir, em duas horas e meia de projeção, entretenimento e relevância histórica.

O filme de Mitre elege como protagonista o promotor público Julio Strassera (Ricardo Darín), escalado para ser o responsável pelo julgamento dos militares de alta patente acusados da violenta repressão  contra os críticos ao governo ditatorial que dominou o país entre 1963 e 1983. Contando com o apoio do jovem advogado Luis Moreno Ocampo (Juan Pedro Lanzani) - que entra em rota de colisão com a família, formada por apoiadores do regime - e um grupo de estagiários cuja vontade de ganhar a causa é inversamente proporcional a sua pouca idade, Strassera aceita a missão contra a vontade, ciente das consequências de um julgamento tão polêmico. Porém, conforme as sessões avançam e as ameaças contra ele, sua mulher e seus filhos aumentam, ele vê aumentar cada vez mais sua sede de justiça - especialmente diante de depoimentos contundentes das vítimas, que estabelecem um grau de crueldade e violência impossíveis de ignorar. Strassera sabe que a condenação dos réus é a única forma de evitar que tal atrocidade venha a repetir-se.

 

Fugindo do tom semi-documental que fatalmente acomete produções de teor político, "Argentina, 1985" não abre mão, no entanto, de deixar bem clara as suas intenções de desenterrar o passado sombrio do país. O roteiro, perfeitamente equilibrado entre dramas pessoais e questões jurídicas que jamais descambam para a verborragia técnica que poderia afastar o espectador, não hesita em explicitar, através de testemunhas e documentos, toda a fúria sanguinária de homens que tentavam, através da força física e psicológica, destruir seus inimigos políticos da forma mais vil. São momentos como esses, em que vítimas narram suas dores, que fazem do filme de Santiago Mitre um petardo histórico e emocional, em contraponto à frieza de todas as sequências em que são discutidos detalhes de bastidores. Em especial no terço final da produção, o cineasta parece abraçar definitivamente o desejo de comover a plateia, encaminhando-a para um clímax arrepiante e, melhor ainda, perfeitamente acurado e fiel aos fatos.

É admirável que o roteiro de "Argentina, 1985" - escrito por Mitre e Mariano Llinás - consiga a façanha de ser, ao mesmo tempo, informativo e dramaticamente consistente. Apesar de dedicar boa parte de sua narrativa a um estudo fidedigno dos processos jurídicos retratados e dos documentos oficiais, a trama encontra espaço suficiente para humanizar seus protagonistas e aproximá-los do espectador mais comum. Enquanto Strassera precisa lidar com as ameaças que sofre para abandonar o julgamento - em sequências tensas e editadas com precisão -, Ocampo sente na pele as consequências de enfrentar um sistema de violência ao tornar-se um pária dentro da própria família. Para isso, o diretor recebe o auxílio impecável de um elenco exemplar, liderado por Ricardo Darín, mais uma vez brilhante: um dos produtores do filme (ao lado do filho, o também ator Chino Darín), o astro mais popular do cinema argentino faz mais um gol de placa - e com o Golden Globe em mãos, corre o delicioso risco de voltar à cerimônia da Academia, que em 2010 premiou o hoje quase clássico "O segredo dos seus olhos". Forte e tocante, "Argentina, 1985" é nada menos que obrigatório.

terça-feira

BAR DOCE LAR


BAR DOCE LAR (The tender bar, 2021, Amazon Studios, 106min) Direção: George Clooney. Roteiro: William Monahan, livro de J.R. Moehringer. Fotografia: Martin Ruhe. Montagem: Tanya M. Swerling. Música: Dara Taylor. Figurino: Jenny Eagan. Direção de arte/cenários: Kalina Ivanov/Melissa M. Levander. Produção executiva: Barbara A. Hall, Ibrahim Hamdan, J. R. Moehringer. Produção: George Clooney, Grant Heslov, Ted Hope. Elenco: Tye Sheridan, Ben Affleck, Lily Rabe, Christopher Lloyd, Daniel Ranieri, Briana Middleton. Estreia: 10/10/2021 (BFI London Festival)

Não deixa de ser triste perceber que George Clooney, anteriormente conhecido por escolher projetos de interesses político e social para sua carreira como cineasta, tenha entrado em um período pouco relevante. Filmes como "Confissões de uma mente perigosa" (2002), "Boa noite, e boa sorte" (2005) e "Tudo pelo poder" (2011) parecem ter ficado para trás, diante de produções esquecíveis ou simplesmente medíocres, como "Caçadores de obras-primas" (2014) e "Suburbicon: bem-vindos ao paraíso" (2017). Infelizmente seu projeto mais recente, "Bar doce lar", volta a não entusiasmar, apesar de algumas qualidades perceptíveis. Baseado em um livro de memórias de J.R. Moehringer, o filme é apenas mais uma história pouco original de amadurecimento, prejudicada por personagens pouco interessantes e por um roteiro irritantemente convencional - uma surpresa quando se sabe que seu autor é William Monahan, vencedor do Oscar por "Os infiltrados" (2006), uma obra-prima de estrutura e concisão.

O filme de Clooney conta a história de J.R., desde sua infância (quando é interpretado pelo encantador Daniel Ranieri) até a juventude (quando passa a ser vivido pelo promissor Tye Sheridan). Filho de uma batalhadora mãe solteira (Lily Rabe) e um pai radialista que só dá as caras esporadicamente e não faz a menor questão de um relacionamento mais profundo com ele, o menino não demora a estabelecer um vínculo emocional com o tio, Charlie (Ben Affleck), dono de um bar que assume, sem hesitar, a figura paterna para o sobrinho. É com Charlie que o pequeno J.R. aprende valores, dicas de sobrevivência emocional, macetes sociais e é a partir de suas conversas que surge nele o amor pelos livros e o desejo de tornar-se escritor. Sobrevivendo em meio a um quase caos - a casa do avô é frequentemente povoada por inúmeros tios e primos barulhentos -, J.R. cresce e, em busca de realizar seu sonho de escrever - e o de sua mãe, de que ele faça uma faculdade -, descobre um mundo que nem sempre é hospitaleiro e gentil. Apaixonado por uma colega, Sidney (Briana Middleton), ele entra também no mundo dos amores complicados.

 

Sem apresentar nada do que já tenha sido visto em vários outros filmes do gênero, "Bar doce lar" peca por sua narrativa morna e sem grandes momentos memoráveis. A cada cena um pouco mais interessante - o avô do menino salvando a comemoração de Dia dos Pais na escola do neto, o confronto de J.R. com os esnobes pais de Sidney, a melancólica espera do menino por um pai que nunca chega para levá-lo a um jogo - segue-se inúmeras outras repetitivas e que não despertam no espectador nada além de uma sensação de dèjà-vu constante. Para isso contribui muito o fato de que a história de Moheringer não é, a rigor, nem um pouco empolgante, e seu personagem principal tampouco cativa por uma personalidade marcante, apresentando, na maior parte do tempo, uma passividade que torna quase impossível ao público importar-se de verdade com seu destino. Nem mesmo o talento do jovem Tye Sheridan consegue dar profundidade suficiente para disfarçar a fragilidade da estrutura do roteiro de Monahan e a direção mecânica de Clooney. Quem de certa forma se destaca é Ben Affleck, que mesmo sem apresentar nada de novo em sua atuação, recebeu indicações ao Golden Globe e ao SAG Awards na categoria de ator coadjuvante - apesar de ser o primeiro nome nos créditos.

Dizer que "Bar doce lar" é um filme ruim é exagerar, já que tem uma produção cuidadosa, uma trilha sonora deliciosa e um elenco que se esforça ao máximo para extrair o melhor de cada momento. Porém, com o currículo acumulado por George Clooney atrás das câmeras, era de se esperar algo menos óbvio e tão pouco ambicioso. Falta de ambição nem sempre é defeito - muitas vezes, inclusive, pode ser uma grande qualidade -, mas dessa vez tal característica deixa no ar a sensação de oportunidade perdida: o cineasta poderia ter assinado uma produção emocional e nostálgica mas ficou muito aquém de suas expectativas. O resultado é uma produção correta mas passa longe de atingir o mesmo nível dos melhores filmes do diretor. Uma pena!

segunda-feira

PEARL

 

PEARL (Pearl, 2022, A24, 103min) Direção: Ti West. Roteiro: Ti West, Mia Goth, personagens criados por Ti West. Fotografia: Elliot Rockett. Montagem: Ti West. Música: Tyler Bates, Tim Williams. Figurino: Malgosia Turzanska. Direção de arte/cenários: Tom Hammock/Thomas Salpietro. Produção executiva: Kim Cudi, Dennis Cummings, Mia Goth, Ashley Levinson, Sam Levinson, Karina Manashil, Peter Phok. Produção: Jacob Jaffke, Kevin Turen, Ti West. Elenco: Mia Goth, David Corenswet, Tandi Wright, Matthew Sutherland, Emma Jenkins-Purro, Alistair Sewell. Estreia: 03/9/2022 (Festival de Veneza)

Não é nenhuma novidade o fato de filmes de sucesso darem origem a continuações - mesmo quando a fonte aparentemente secou. O caso de "Pearl" é diferente. Não apenas é uma prequel - tendência que vem se firmando há alguns anos como forma de expandir o universo de deterrminadas produções  -, mas é, também, uma prequel realizada concomitantemente com seu filme original - o terror "X: A marca da morte" - e uma aposta arriscada da produtora A24, que deu sinal verde ao projeto antes mesmo de saber do resultado comercial e crítico do primeiro filme. Filmado em segredo enquanto o diretor Ti West também conduzia "X" (com a mesma atriz, Mia Goth, em papel duplo), "Pearl" foi lançado seis meses depois da estreia de seu original e, para surpresa de todos, agradou ainda mais ao evitar o rótulo de slasher e, aprofundando a personalidade doentia de sua protagonista, atingir bons momentos de um suspense psicológico, valorizado pela presença da excepcional Goth , que não apenas coassinou o roteiro com West mas também descolou um crédito como produtora executiva. Neta da atriz brasileira Maria Gladys, Goth é uma revelação, que faz do filme uma gratíssima surpresa no gênero justamente no momento em que ele começa a se reinventar - em boa parte graças a produções da mesma A24.

Se "X já demonstrava acima de qualquer dúvida o talento de Ti West em manipular as regras dos filmes de terror a seu favor - enfatizando suas qualidades e disfarçando seus pecados com um visual atraente e referências que soam orgânicas e não apenas exibicionismo barato -, "Pearl" consegue ir ainda mais longe, ao oferecer requintes de produção surpreendentes em relação ao orçamento e um roteiro que dribla os clichês, fundamenta boa parte dos acontecimentos do primeiro filme (que ocorre décadas mais tarde) e ainda por cima homenageia o cinema em si. Com citações (óbvias ou nem tanto) a produções como "O que terá acontecido a Baby Jane?" (1962), "O mágico de Oz" (1939), musicais clássicos e até ao quase obscuro "A free ride" (1915) - considerado uma das primeiras produções pornográficas da história e cuja autoria ainda causa polêmicas -, West constrói, de maneira gradual e inteligente, uma das personalidades mais sombrias dos últimos anos, a da aparentemente doce Pearl - que, por trás da aparência dócil e submissa, esconde um monstro prestes a destroçar qualquer vestígio de civilidade.


 

A trama se passa em 1918, em uma fazenda no interior do Texas - a mesma fazenda que irá servir de cenário para os atores que a alugam em "X": é nessa fazenda, afastada da civilização, que mora a jovem Pearl (Mia Goth) e seus pais, imigrantes alemães com quem mantém uma relação conturbada. Seu pai vive em uma cadeira de rodas e sua mãe, rígida e pouco afeita a carinhos, tampouco lhe oferece qualquer tipo de apoio emocional. Casada com Howard, um soldado que está no front da I Guerra, Pearl esconde da família o seu sonho de tornar-se uma estrela de cinema - desejo que se torna ainda maior quando ela conhece o jovem projecionista do cinema local, que a apresenta ainda a filmes eróticos e à possibilidade de tentar uma carreira na Europa. O renascimento de tal sonho, no entanto, acaba se tornado um problema quando Pearl esbarra em sua triste realidade doméstica. Sua solução para isso acaba por levá-la a atos de violência, que fogem totalmente de controle quando ela percebe que talvez não tenha talento suficiente para fugir de sua massacrante rotina familiar.

Sem abrir mão da violência que se poderia esperar de um filme do gênero, Ti West fez de "Pearl" uma joia rara dentro do universo do cinema de terror. Suas inovações não se limitam apenas à concepção visual - cores fortes, reconstituição de época cuidadosa -, mas principalmente a sua opção em fazer de sua protagonista não apenas uma potencial assassina, mas uma mulher mentalmente torturada por sonhos impossíveis, uma rotina massacrante e, logicamente, distúrbios psicológicos à espera de uma catarse. Nesse ponto é a atuação avassaladora de Mia Goth o grande trunfo do filme: com expressões faciais marcantes - que poderiam facilmente descambar para a caricatura, em mãos menos competentes - e uma construção fascinante de corpo, Goth simplesmente engole tudo a seu redor e é responsável por fazer com que "Pearl" escape facilmente das limitações de seu gênero e se inscreva como um dos grandes pequenos filmes dos últimos anos. Fazendo jus a seu título, "Pearl" é, sem favor, uma pérola a ser apreciada por qualquer fã de bom cinema.

sexta-feira

INGRESSO PARA O PARAÍSO

 


INGRESSO PARA O PARAÍSO (Ticket to paradise, 2022, Universal Pictures/Working Title Films, 104min) Direção: Ol Parker. Roteiro: Ol Parker, Daniel Pipski. Fotografia: Ole Bratt Birkeland. Montagem: Peter Lambert. Música: Lorne Balfe. Figurino: Lizzy Gardiner. Direção de arte/cenários: Owen Patterson/Nikki Barrett. Produção executiva: George Clooney, Jennifer Cornwell, Marisa Yeres Gill, Lisa Gillan, Amelia Granger, Grant Heslov, Rebecca Miller, Julia Roberts, Sarah-Jane Robinson, Nicholas Simpson, Sam Thompson. Produção: Deborah Balderstone, Tim Bevan, Eric Fellner, Sarah Harvey. Elenco: George Clooney, Julia Roberts, Kaitlyn Dever, Billie Lourd, Maxime Bouttier. Estreia: 08/9/2022

Poucas pessoas no mundo perderiam a chance de viajar a uma praia paradisíaca em companhia de um dos melhores amigos e ainda ganhar uma fortuna para isso. E dentre essas pessoas não se incluem Julia Roberts e George Clooney: dois dos maiores astros de Hollywood, ricos, bonitos, famosos e bem-sucedidos (além de amigos e parceiros profissionais), eles voltam a se encontrar na frente das câmeras (e atrás também, já que assinam como produtores executivos) na comédia romântica "Ingresso para o paraíso" uma bobagem simpática e fotogênica que pouco faz por suas carreiras. Longe de ser um desastre completo mas tampouco memorável, o filme de Ol Parker - cujo currículo ainda pequeno inclui "Mamma Mia! Lá vamos nós de novo" (2018) e outras produções menores - usa e abusa do carisma de seus protagonistas e das belas paisagens naturais da Austrália (posando de Bali) para contar uma história sem maiores novidades, mas que pode agradar aos menos exigentes e os cinéfilos que nao vivem sem um romance  fictício.

Previsível sucesso de bilheteria - mais de 160 milhões de dólares arrecadados no mercado internacional -, "Ingresso para o paraíso" foi disputado por várias plataformas de streaming ainda em sua fase de pré-produção: entusiasmadas com a reunião de Roberts e Clooney, todas elas desejavam a chance de adicionar mais um êxito em seu catálogo, mas, acertadamente, a Working Title Films preferiu um lançamento em salas de exibição, tentando uma retomada pós-Covid-19, e a distribuição nos cinemas ficou a cargo da Universal Pictures. Deu certo: atingindo em cheio seu público-alvo, o filme não decepcionou em termos comerciais, ainda que não tenha feito o barulho esperado junto às demais plateias. Justificável. Apesar de seus protagonistas exalarem o charme que lhes é característico e de uma ou outra boa piada, o trabalho de Parker soa como mais do mesmo - mas, no final das contas, isso não chega a ser novidade quando se trata de comédias românticas, que parece ter, entre suas regras de ouro, nunca mexer em time que está ganhando. Em outras palavras, "Ingresso para o paraíso" é um filme ideal para quem procura uma produção da qual se é possível adivinhar o final desde a primeira cena - ou até mesmo desde o cartaz.

 

Casados graças aos arroubos da juventude, David (George Clooney) e Georgia Cotton (Julia Roberts) ficaram juntos apenas cinco anos, tempo suficiente para descobrirem uma imensa incompatibilidade de gênios e porem no mundo uma única filha, Lily (Kaitlyn Denver). Adulta, Lily é a responsável por reunir seus pais em ocasiões especiais, como sua formatura - e por impedir que a animosidade do ex-casal atrapalhe qualquer evento em que se encontrem juntos. Depois de um período de férias antes de iniciar uma carreira de advogada, porém, Lily surpreende os pais ao anunciar que está perdidamente apaixonada e irá se casar. Se a notícia já seria um choque normalmente, os detalhes são ainda mais perturbadores: sua jovem e bela filha irá abandonar tudo para ficar em Bali com o marido nativo, Gede (Maxime Bouttier). Temerosos que a filha repita o maior erro de suas vidas, os ex-casados deixam de lado suas diferenças e partem para a Indonésia com o objetivo de impedir o casamento - mas a magia da beleza local resolve agir e fazê-los rever seus sentimentos.

Avesso a comédias românticas desde que fez "Um dia especial" (1996) - ao lado de Michelle Pfeiffer -, George Clooney voltou ao gênero com a certeza de que seu carisma (somado ao sorriso radiante de Julia Roberts) seria o suficiente para garantir um belo retorno. Acertou em termos. "Ingresso para o paraíso" insiste em piadas sobre diferenças culturais, desencontros amorosos, diálogos sarcásticos e um visual de tirar o fôlego, como forma de disfarçar a fragilidade de seu roteiro. Algumas vezes tais artifícios funcionam, principalmente pelo talento dos dois astros, mas frequentemente fica a impressão de que o elenco se divertiu mais fazendo o filme do que a plateia quando o assiste. Talvez um pouco longo demais - uma edição mais enxuta provavelmente deixaria o ritmo menos truncado e a trama menos repetitiva -, o filme de Ol Parker segura bem uma sessão da tarde em um dia chuvoso, mas dificilmente será lembrado como um destaque na carreira de seus atores - ambos em momentos da carreira em que não precisam mais provar nada a ninguém. Divertido mas sem o brilhantismo das melhores comédias do gênero, "Ingresso para o paraíso" é um filme para fãs e ocasionais cinéfilos românticos.

quinta-feira

MEU FILHO

 


MEU FILHO (My son, 2021, Une Hirondelle Productions/Wild Bunch International/Sixteen Films, 95min) Direção: Christian Carion. Roteiro: Christian Carion, Laure Irrmann. Fotografia: Eric Dumont. Montagem: Loic Lallemand. Música: Laurent Perez Del Mar. Figurino: Carole Miller. Produção executiva: Adam Fogelson, John Friedberg, Robert Simonds, Kimberly Fox. Produção: Marc Butan, Christian Carion, Brahim Chioua, Noémie Devide, Marc Gabizon, Laure Irrmann, Vicent Maraval, Rebecca O'Brien. Elenco: James McAvoy, Claire Foy, Tom Cullen, Gary Lewis. Estreia: 15/9/2021 (Internet)

Em 2017, o cineasta Christian Carion surpreendeu o público francês com "Meu filho", uma produção que, apesar da sinopse não exatamente original, fugia da narrativa tradicional ao negar a seu ator principal, Guillaume Canet, o roteiro que conduzia a trama. As reações de Canet ao que era proposto pelos colegas de cena é que levavam a história adiante - e transmitiam a sensação de desorientação necessária à construção do suspense. Quatro anos mais tarde, ciente das limitações que um filme não falado em inglês encontra no mercado internacional, Carion envolveu-se pessoalmente no remake de sua obra - com um ator britânico (James McAvoy) e uma mudança de cenário (da França para as montanhas escocesas) - e, com o máximo de fidelidade possível, fez de sua refilmagem um produto que, se não chega a revolucionar o gênero, ao menos envolve o espectador em um espiral de intrigas e mistérios que vai se desenrolando aos poucos até o final que infelizmente não consegue escapar do clichê.

A trama já começa com a chegada de Edmond Murray (James McAvoy) às buscas de seu filho de sete anos, desaparecido de um acampamento nas montanhas escocesas. Chamado pela ex-mulher, Joan (Claire Foy) - de quem está separado há alguns anos e que já está em uma nova relação -, Edmond não consegue deixar de sentir-se culpado pelo fato de ser um pai ausente, em constantes viagens a trabalho, inclusive por países em situações de conflito. Questionado pela polícia, que suspeita de um sequestro com vítima escolhida a dedo, Edmond não se conforma em apenas fazer parte das equipes que procuram o menino pelas matas. Assumindo uma investigação própria e com métodos não ortodoxos, ele se depara com pistas falsas, suspeitos bastante dúbios e até com a possibilidade de ter responsabilidade indireta com o desaparecimento. A cada passo que dá adiante, porém, o tempo vai se esgotando - e o final de sua procura vai ficando com chances cada vez maiores de não ser bem-sucedida. 

Avassalador no papel principal, James McAvoy demonstra, mais uma vez, sua capacidade aparentemente infinita de se reinventar nas telas - vale lembrar que o ator inglês já deu vida a um psicopata com problemas mentais ("Fragmentado"), um soldado da I Guerra tentando retomar a vida depois de uma acusação injusta de assédio ("Desejo e reparação"), um inexperiente médico que se torna o homem de confiança do ditador Idi Amin ("O último rei da Escócia") e o jovem Professor Xavier (na segunda trilogia dos X-Men), apenas para citar alguns. É ele, com sua garra e dedicação, que faz com que o filme de Carion saia da vala comum dos filmes de ação para se tornar um passatempo bastante digno - ao menos em seus dois primeiros terços. É nessa primeira parte que a ideia do cineasta em esconder de seu ator central o roteiro faz toda a diferença: conforme vai tomando conhecimento de fatos que cercam o possível crime, Edmond vai sendo surpreendido com informações novas, que mudam o rumo das investigações e de sua própria vida - e é o mesmo que acontece com McAvoy, que vai descobrindo a trama através do que é lançado diante de seus olhos. Da tristeza à preocupação, da raiva à coragem, do desespero à desconfiança de todos a seu redor, o astro tira de letra todos os desafios impostos pelo diretor e vai chegando, junto com o público, a um desfecho que, esse sim, deixa no ar uma sensação de anti-clímax.

Depois de dois terços de uma ação aflitiva e de uma tensão crescente, que vai envolvendo o espectador de maneira gradual, "Meu filho" chega a seu último ato caindo na armadilha fácil do exército de um homem só e abandonando o tom de suspense psicológico que vinha adotando até então. A resolução do mistério - preguiçosa e clichê - só serve para justificar um embate entre Edmond e seus algozes, que, é preciso reconhecer, fotografado com elegância e inteligência pelas câmeras de Eric Dumont, que com uma textura quase palpável, enfatiza o tom sombrio e claustrofóbico da trama e valoriza a construção metódica de uma história desesperadora para qualquer pai. Mesmo não sendo um filme completamente memorável - exceção feita ao trabalho de McAvoy, brilhante do início ao fim -, "Meu filho" é o programa ideal para os fãs de suspense e ação. Não muda a vida de ninguém, mas tampouco é uma perda total de tempo.

quarta-feira

O CONTADOR DE CARTAS

 


O CONTADOR DE CARTAS (The card counter, 2021, Focus Features, 111min) Direção e roteiro: Paul Schrader. Fotografia: Alexander Dynan. Montagem: Benjamin Rodriguez Jr.. Música: Robert Levon Been, Giancarlo Vulcano. Figurino: Lisa Madonna. Direção de arte/cenários: Ashley Fenton/Mary Goodson. Produção executiva: Carte Blanche, Catherine Boily, Tiffany Boyle, Lee Broda, Philip H. Burgin, Anders Erdén, Santosh Govindaraju, Patrick Hibler, Ruben Islas, Nadine Luque, Martin McCabe, Joel Michaely, Kathryn Moseley, Patrick Muldoon, Mitch Oliver, William Olsson, Stanley Preschutti, Elsa Ramo, Jeff Rice, Jason Rose, Martin Scorsese, Mick Southworth, Kyle Stroud, James Swarbrick, Elton Tsang, Ken Whitney, Liz Whitney. Produção: Lauren Mann, Braxton Pope, David M. Wulf. Elenco: Oscar Isaac, Tye Sheridan, Willem Dafoe, Tiffany Haddish, Alexander Babara. Estreia: 02/9/2021 (Festival de Veneza)

Há mais em comum entre Travis Bickle - vivido por Robert DeNiro em "Taxi driver" (1976) -, o Reverendo Ernst Toller - interpretado por Ethan Hawke em "Fé corrompida (2017) - e William Tell, o protagonista de "O contador de cartas", além do fato de terem sido todos criados pelo roteirista Paul Schrader. Solitários, torturados psicologicamente e à beira de um iminente ataque de nervos - que pode explodir como um surto de violência -, eles formam, a seu modo, um grupo de protagonistas quase silenciosos que habitam um universo particular, cercado por uma constante tensão e pela expectativa de tragédias. E Tell, interpretado por Oscar Isaac, se não flerta diretamente com o perigo da noite nova-iorquina ou a pressão dos dogmas religiosos, precisa lidar com os próprios demônios, um passado traumático e uma inesperada relação que pode lhe servir como caminho para a redenção.

Tell é, como deixa bem claro o título do filme, um contador de cartas, ou seja, um jogador que vai de cassino em cassino ganhando dinheiro no blackjack graças a seu talento de calcular, na hora da partida, as possibilidades numéricas do jogo. Recém saído de uma pena de oito anos na prisão - onde desenvolveu seu talento -, ele leva uma vida discreta e quase monástica, evitando apostar alto para fugir dos radares. Sua existência praticamente invisível sofre uma transformação, porém, quando duas pessoas surgem em seu caminho com intenções bastante diversas. Primeiro, La Linda (Tiffany Hadish), que trabalha para um grupo de investidores que lhe oferece patrocínio em suas aventuras nos jogos - em troca de uma comissão. Depois, é o jovem Circk Baufort (Tye Sheridan, em papel herdado de Shia LaBeouf), que se revela filho de um antigo colega seu da época em que treinavam métodos de tortura sob as ordens de um cruel instrutor: Circk quer vingar-se de tal criminoso - agora um bem-sucedido empresário de nome John Gordo (Willem Dafoe) - por ter destruído sua família, mas Tell prefere oferecer ao rapaz uma viagem por cassinos do país como forma de lhe fazer mudar de ideia. Tal situação o aproxima não apenas de seu passado, mas também de uma chance de deixar para trás uma vida de violência e truculência.

Filmado em um período de apenas vinte dias - sem contar a pausa imposta pela contaminação por Covid-19 de um membro da equipe - e frequentemente utilizando-se apenas de um ou dois takes por cena, "O contador de cartas" é uma produção econômica por vários motivos além do financeiro. Com uma atuação minimalista, Oscar Isaac constrói seu William Tell com total parcimônia de recursos, mas nunca de excelência: quieto, discreto, misterioso, Tell só aos poucos se permite revelar seus reais sentimentos - e mesmo assim de forma a não deixar que eles ultrapassem o limite autoimposto. Suas relações - com Circk, com La Linda, com Gordo - são forjadas a sofrimento e angústias que ele só desabafa em seus diários, uma espécie de confessor que não o julga ou critica. Em um desempenho exemplar (mais um em uma carreira em franca ascensão), Isaac ousa criar um protagonista que não busca a simpatia incondicional do espectador - e para isso conta com uma edição propositalmente truncada, efeitos de fotografia bastante eficientes e um roteiro quase incômodo de Schrader, um cineasta cuja visão de mundo não pode ser considerada exatamente otimista - e cujo comportamento frequentemente agressivo chegou a preocupar a Focus Features, distribuidora do filme, que pediu a ele que se afastasse das redes sociais durante o período de lançamento para não prejudicar a repercussão da produção.

Considerado pelo ex-presidente norte-americano Barack Obama como um de seus filmes preferidos da temporada 2021, "O contador de cartas" é, também, a definição perfeita de uma produção independente. Com nada menos que 20 produtores executivos creditados (incluindo Martin Scorsese, parceiro de Schrader em quatro oportunidades), o filme ganha em qualidade justamente por essa liberdade. Sem precisar se ater às amarras de uma produção comercial de um grande estúdio, Paul Schrader pode exercitar suas idiossincrasias e seu estilo seco, em uma narrativa sofisticada e adulta que acerta em não subestimar a inteligência do espectador e evitar a violência explícita: ao contrário do clímax sangrento de "Taxi driver", o cineasta dessa vez opta por sugerir mais do que mostrar. Pode soar um tanto lento para quem busca um filme de ação, mas aqueles que comprarem seu estilo elegante e sutil podem ser positivamente surpreendidos.

terça-feira

NÓS QUE NOS AMÁVAMOS TANTO


NÓS QUE NOS AMÁVAMOS TANTO  (C'eravamo tanto amati, 1974, La Deantir, 124min) Direção: Ettore Scola. Roteiro: Ettore Scola, Agenore Incrocci, Furio Scarpelli. Fotografia: Claudio Cirillo. Montagem: Raimondo Crociani. Música: Armando Trovajoli. Figurino: Luciano Ricceri. Direção de arte/cenários: Luciano Ricceri. Produção: Pio Angeletti, Adriano de Micheli. Elenco: Nino Manfredi, Vittorio Gassman, Stefania Sandrelli, Stefano Satta Flores. Estreia: 21/12/74

Na vasta e preciosa filmografia do italiano Ettore Scola, o poético e melancólico "Nós que nos amávamos tanto" tem um lugar todo especial. Uma homenagem à amizade, ao amor, ao tempo e ao cinema, o filme, lançado em 1974 - antes, portanto, dos clássicos "Feios, sujos e malvados" (1975) e "Um dia muito especial" (1977) - se mantém como uma aula de narrativa, inserindo organicamente à trajetória de três amigos apaixonados pela mesma mulher, um estudo sobre a sociedade italiana pós-guerra e as lutas sociais e culturais que perpassaram o país por trinta anos. Sem deixar de lado o viés político característico de sua obra, Scola conta uma das histórias mais fascinantes de sua carreira, valorizada por um elenco sublime, um roteiro preciso e uma edição primorosa - tanto na versão original quanto na redução em doze minutos lançada internacionalmente.

O filme é, na verdade, um longo flashback, como mostra a primeira sequência, que voltará nos minutos finais para encerrar a longa viagem de Scola pelos caminhos da memória. Os três personagens centrais, Antonio (Nino Manfredi), Gianni (Vittorio Gassman) e Nicola (Stefano Satta Flores), se conhecem durante a II Guerra e se tornam amigos inseparáveis. Com o final do conflito, todos tentam se encaixar na rotina como civis: Gianni começa uma carreira de advogado, Nicola se casa e volta a lecionar em uma escola do interior e Antonio inicia uma carreira como enfermeiro em um hospital de Roma. É Antonio quem primeiro conhece Luciana (Stefania Sandrelli) e se apaixona, sem perceber que a bela jovem caiu de amores por caiu de amores por Gianni, com quem inicia um romance. A partir de então, como um pomo da discórdia, Luciana, mesmo involuntariamente, será a causa de todos os conflitos entre os três amigos. Nicola, depois de separado e tentando trabalhar como crítico de cinema, também não resiste a seus encantos durante o tempo em que ela tenta a sorte como atriz. E enquanto Gianni se deixa corromper pelo capitalismo que sempre rejeitou na juventude - o que inclui um casamento por conveniência - o grupo vê passar diante de seus olhos uma série inexorável de transformações sociais. Apenas Antonio - ironicamente o responsável pela presença de Luciana entre eles - é que parece não conseguir chamar sua atenção em termos românticos.

 

O brilhante roteiro de "Nós que nos amávamos tanto" - escrito pelo mesmo trio de autores de "Ciúme à italiana" (1970), do mesmo diretor - não conta apenas belas histórias de amor (entre os amigos, entre amantes apaixonados, entre cidadãos e seu país), mas também as utiliza como pretexto para desfilar, na tela, sentimentos que remetem diretamente à reconstrução da Itália depois da II Guerra Mundial. Estão ali, de uma forma ou de outra, o nascimento da consciência política, a desilusão advinda dela, a busca por uma cultura própria e socialmente relevante, o recrudescimento do abismo social. Politicamente engajado, Scola não hesita em fazer de seus protagonistas homens comuns que, a exemplo de Gianni, nem sempre são capazes de resistir às tentações, sejam elas materiais ou emocionais - mas cujas complexidades os afastam de qualquer maniqueísmo. Nicola, por exemplo, é um cidadão comum, apaixonado por cinema e que luta para ascender socialmente através do seu trabalho e de sua convicção de que a arte é salvadora e crucial - uma discussão sobre o belo "Ladrões de bicicleta" (1948) é o detonador de uma crise profissional que irá ecoar para sempre em sua vida - a Antonio batalha arduamente na área da saúde, como forma de ajudar a população - o que o aproxima, a princípio, de Luciana. E Luciana, que sonha em ser atriz, é o ideal feminino de todos eles, apesar de, tristemente, nem sempre perceber que seus companheiros vivem a catar a poesia que entorna no chão.

Scola é um apaixonado por cinema, e a sétima arte é, provavelmente, o quinto personagem mais importante de "Nós que nos amávamos tanto". Não é apenas a citação direta ao clássico de Vittorio De Sica que empurra Nicola em direção a seu destino: com citações maiores ou menores a obras de Antonioni e Rossellini, o filme delicia a plateia com a recriação de uma cena antológica de "A doce vida" (1960), de Federico Fellini, com direito às luxuosas participações do cineasta e de seu ator preferido, Marcello Mastroianni, vivendo eles mesmo durante a produção do clássico italiano - da qual Luciana participa como extra. E Luciana é também a protagonista de uma sequência sublime, quando se esconde em uma máquina de fotografias instantâneas e, ao sair, deixa uma série de imagens que a mostram chorando copiosamente depois de uma das várias situações complicadas das quais participa. É como se o diretor lembrasse ao público que é disso que a vida - e seu filme - se trata: de momentos fugazes que ficam para sempre na memória.

"Nós que nos amávamos tanto" é uma obra-prima do cinema europeu. Como toda boa produção italiana, não deixa de apelar, vez ou outra, ao sentimentalismo mediterrâneo que a tantos agrada - e a outros aborrece. Mas é, sem sombra de dúvida, um filme para ver e rever inúmeras vezes. E se emocionar sempre.

 

segunda-feira

VIAGENS ALUCINANTES

 


VIAGENS ALUCINANTES (Altered states, 1980, Warner Bros, 102min) Direção: Ken Russell. Roteiro: Paddy Chayefsky (como Sidney Aaron), romance de sua autoria. Fotografia: Jordan Cronenweth. Montagem: Eric Jenkins. Música: John Corigliano. Figurino: Ruth Myers. Direção de arte/cenários: Richard McDonald/Thomas Roysden. Produção executiva: Daniel Melnick. Produção: Howard Gottfried. Elenco: William Hurt, Bob Balaban, Blair Brown, Charles Haid, Drew Barrymore. Estreia: 25/12/80

2 indicações ao Oscar: Trilha Sonora Original, Som

Só mesmo quem não conhecia a obra pregressa do cineasta britânico Ken Russell poderia esperar que seu primeiro filme em Hollywood poderia ser algo diferente de "Viagens alucinantes": baseado em romance de Paddy Chayefsky publicado em 1978, sua estreia no cinema norte-americano é um mergulho sem freios em experiências lisérgicas, obsessão e, surpreendentemente, uma história de amor - que muitos interpretaram com uma releitura do mito de Orfeu e Eurídice, uma atualização de Dr. Jekyll e Mr. Hyde ou até com intenções religiosas. O fato é que, independente de qualquer ponto de vista, o filme fracassou nas bilheterias - nenhum choque, haja visto seu tema e o nome de Russell nos créditos - e, com o tempo, tornou-se uma espécie de cult movie, valorizado pela presença de William Hurt (em seu primeiro trabalho no cinema) e pela coragem do cineasta em explorar, com um visual exuberante e incômodo, um assunto que nem as mais radicais produções de ficção científica ousaram.

O roteiro - adaptado pelo próprio Chayefsky, que renegou o resultado final apesar de sua fidelidade ao material original - não era exatamente do agrado de Ken Russell, que embarcou no projeto após a desistência de Arthur Penn. Segundo Russell, o script era pesado, pretensioso e rebuscado demais, e o trabalho entre os dois profissionais esteve longe do ideal durante as filmagens, a ponto de o roteirista ser banido do set e ter tentado a demissão do diretor. Quando Chayefsky preferiu desligar-se do projeto (e assinar o roteiro com o pseudônimo de Sidney Aaron), o filme parecia já estar condenado, e o péssimo resultado nas bilheterias ajudou a relegar Ken Russell (que, segundo dizem, passou boa parte da produção sob o efeito de álcool) a uma espécie de limbo na indústria hollywoodiana. A morte de Chayefsky - que ganhou um Oscar pelo roteiro de "Hospital" (1971) -, poucos meses da estreia (e do fracasso) de "Viagens alucinantes" também não colaborou para o histórico do filme, apesar dos elogios da revista Time, que o elegeu um dos dez melhores do ano, e das duas indicações (técnicas) ao Oscar.


 

A trama concebida por Chayefsky já é, em si, bastante ousada: seu protagonista é o cientista e professor de psicologia Edward Jessup (William Hurt), um profissional brilhante mas pouco afeito às convenções impostas pela Medicina tradicional. Ambicioso em suas pesquisas alucinógenas, ele resolve, à revelia de seus superiores, fazer de si mesmo uma cobaia no uso de drogas em uma câmara de isolamento. Logo no começo ele consegue atingir regiões profundas da mente. Anos depois, já separado da também cientista Emily (Blair Brown) - que não consegue lidar com a obsessão do marido -, Jessup tem contato com rituais sagrados no México e com a utilização de drogas xamânicas. Tal novidade faz com que suas novas experiências fiquem ainda mais intensas: a cada sessão o audacioso professor vai ainda mais longe em suas viagens, chegando a formas progressivamente mais primárias de vida. O que muitos consideravam então simples alucinações começa a assustar seus colegas e familiares.

Produzido pela Warner depois que a Columbia Pictures desistiu do projeto por seu custo acima do esperado, "Viagens alucinantes" é, provavelmente, um dos melhores trabalhos de Ken Russell, mais conhecido pelo musical "Tommy" (1975) e por suas cinebiografias dos compositores Liszt, Mahler e Tchaicovsky. Com seu visual exuberante - influenciado por Magritte e Salvador Dalí - e uma trama consistente e frequentemente aflitiva, seu filme não apenas demonstra uma maturidade temática, mas confirma seu talento na direção de atores, que seria confirmado em sua produção seguinte, "Crimes do coração" (1984), estrelado por Anthony Perkins e Kathleen Turner: com um desempenho brilhante de William Hurt, que deixa verossímeis as teorias mais intrincadas, Russell ainda encontra espaço para trabalhar com efeitos visuais impressionantes que, ao contrário de atrapalhar, servem à história com uma inteligência ímpar. Injustamente esquecido pelo grande público, "Viagens alucinantes" é uma pequena obra-prima da ficção científica - e merece ser redescoberto e alçado à sua condição de clássico do gênero.

sexta-feira

O ENFERMEIRO DA NOITE


O ENFERMEIRO DA NOITE (The good nurse, 2022, FilmNation Entertainment/Netflix, 121min) Direção: Tobias Lindholm. Roteiro: Krysty Wilson-Cairns, livro de Charles Graeber. Fotografia: Jody Lee Lipes. Montagem: Adam Nielsen. Música: Biosphere. Figurino: Amy Westcott. Direção de arte/cenários: Shane Valentino/Alyssa Winter. Produção executiva: Glen Basner, Ignacio de Medina, Jonathan Filley, Ari Handel, Josh Stern. Produção: Darren Aronofsky, Scott Franklin, Michael Jackman. Elenco: Jessica Chastain, Eddie Redmayne, Noah Emmerich, Kim Dickens, Nnmandi Asomugha. Estreia: 11/9/2022 (Festival de Toronto)

Pode um filme falar sobre um serial killer que matou provavelmente centenas de pessoas contar sua história sem mostrar uma única gota de sangue? "O enfermeiro da noite", baseado na trajetória assassina de Charles Cullen - encerrada com sua prisão, em 2003 - prova que a resposta é positiva. Lançado no Festival de Toronto de 2022 cerca de um mês antes de estrear na Netflix, em outubro do mesmo ano, o primeiro longa-metragem em inglês do dinamarquês Tobias Lindholm foca na investigação policial que levou Cullen à cadeia, e é conduzido com sobriedade e discrição, evitando o sensacionalismo normalmente atrelado a produções do gênero. Com sua experiência na condução de dois episódios da série "Mindhunter", Lindholm se aproveita do talento de seu elenco e do roteiro conciso, baseado em um livro investigativo de Charles Graeber, para envolver o espectador em um drama claustrofóbico, cuja elegância visual não consegue disfarçar a tensão inerente a uma trama perturbadora.

O filme começa - logo depois de um prólogo que dá uma ideia do que está por vir - quando o jovem enfermeiro Charles Cullen (Eddie Redmayne) é contratado para trabalhar no turno da noite do Parkfield Memorial Hospital, localizado em Nova Jersey (estabelecimento fictício que substitui o verdadeiro Somerset Medical Center). Solícito, gentil e dedicado, não demora para que Charles se torne amigo da colega Amy Loughren (Jessica Chastain), que divide seu tempo entre o trabalho, os cuidados com as duas filhas pequenas e a luta para curar um problema cardíaco. A amizade entre os dois vai se aprofundando com o tempo, e Amy passa a contar com o novo colega em suas batalhas diárias. As coisas mudam, porém, quando pacientes sob a supervisão de Cullen, independentemente da idade e em condições razoáveis de saúde, começam a morrer inexplicavelmente. Desconfiada de que seu amigo pode estar por trás dos óbitos, a enfermeira resolve colaborar com a polícia, nas figuras de Tim Braun (Noah Emmerich) e Danny Baldwin (Nnmandi Asomugha).


 

Com uma história que praticamente implora por um tom sensacionalista, "O enfermeiro da noite" encontra, na direção de Tobias Lindholm, um viés mais intimista, que opta pelas crises pessoais de seus protagonistas, em detrimento às regras mais óbvias em um filme de suspense. Para isso, conta com a presença sempre potente de Jessica Chastain, em papel mais discreto do que aquele que lhe rendeu um Oscar, por "Os olhos de Tammy Faye": em um trabalho quase silencioso, que explora o olhar e o corpo mais do que longos diálogos, Chastain empresta à Amy Loughren atitudes estoicas e corajosas que despertam a imediata empatia do público, e bate de frente com mais um desempenho econômico e eficiente de Eddie Redmayne. Longe dos trejeitos que poderiam fazer de seu Charles Cullen um monstro clichê, o ator vencedor do Oscar por "A teoria de tudo" (2014) expressa a personalidade transtornada de Cullen através de sorrisos melífluos, atitudes gentis e a aparência de um homem absolutamente normal - como qualquer psicopata -, mas, de forma inteligente, nunca deixa de fazer com que seus gestos soem ameaçadores, o que fica claro em sua última conversa com Amy, uma sequência elaborada com precisão para deixar a plateia com a respiração suspensa. Além disso, somada às atuações exemplares de seus atores centrais, a fotografia acinzentada deixa no ar a sensação constante de pesadelo monocromático e sufocante, que dialoga com o desenvolvimento apropriadamente lento do filme de Lindholm.

Roteirista de filmes premiados, como "A caça" (2012) e "Druk: mais uma rodada" (2020), Lindholm faz sua estreia como diretor de longa-metragens em inglês com o pé direito. Ao renegar qualquer lugar-comum de filmes sobre psicopatas, o cineasta  afirma sua personalidade própria, que busca o envolvimento do espectador sem artifícios que não a objetividade. Sua decisão em focar a narrativa na relação entre Amy e Charles foge do padrão "mortes+investigação+confronto" para inserir, na receita,  um ritmo mais comum em dramas do que em filmes de suspense - o que pode desnortear os cinéfilos mais puristas, mas que acrescenta uma profundidade maior à sua obra. Por mais que em alguns momentos "O enfermeiro da noite" soe como um telefilme, sua seriedade em lidar com um tema complexo e polêmico merece aplausos - especialmente se, junto com ela, é possível testemunhar mais um trabalho admirável de Jessica Chastain, uma das melhores atrizes de sua geração, e Eddie Redmayne, em franca ascensão dentro da indústria hollywoodiana. 

 

VAMPIROS DO DESERTO

VAMPIROS DO DESERTO (The forsaken, 2001, Screen Gems/Sandstorm Films, 90min) Direção e roteiro: J. S. Cardone. Fotografia: Steven Bernstein...