domingo

O MAIOR AMOR DO MUNDO

O MAIOR AMOR DO MUNDO (Mother's Day, 2016, Open Road Films, 118min) Direção: Garry Marshall. Roteiro: Anya Kochoff Romano, Matt Walker, Tom Hines, estória de Lily Hollander, Matt Walker, Tom Hines, Garry Marshall. Fotografia: Charles Minsky. Montagem: Bruce Green, Robert Malina. Música: John Debney. Figurino: Marilyn Vance, Beverly Woods. Direção de arte/cenários: Missy Stewart/Bob Kensinger. Produção executiva: William Bindley, Deborah E. Chausse, Leon Corcos, Mark Fasano, Kevin Frakes, Howard Gilden, Fred Grimm, Bill Heavener, Matthew Hooper, Tedd Johnson, Scott Lipsky, Danny Mandel, Rodger May, Ankur Rugta, Jared D. Underwood. Produção: Brandt Andersen, Howard Burd, Daniel Diamond, Mark DiSalle, Mike Karz, Wayne Rice. Elenco: Jennifer Aniston, Kate Hudson, Julia Roberts, Timothy Olyphant, Jason Sudeikis, Margo Martindale, Shay Mitchell, Hector Elizondo, Aasiv Mandvi. Estreia: 13/4/16

Parecia uma fórmula imbatível de sucesso: escolher uma data comemorativa como tema, escalar um elenco de astros conhecidos do grande público, lançar no feriadoc correspondente e correr pro abraço. Foi assim com "Idas e vindas do amor" (sobre o Dia dos Namorados) e com "Noite de ano-novo" (autoexplicativo). Porém, mesmo as fórmulas aparentemente infalíveis podem desgastar-se: se os dois primeiros filmes fizeram sucesso nas bilheterias mundiais (216 milhões e 142 milhões respectivamente), o terceiro capítulo da série do diretor Garry Marshall decepcionou em todos os quesitos, tanto em termos de crítica (o que já havia acontecido com os anteriores, aliás) quanto financeiros, rendendo menos de 50 milhões de dólares no total. Último filme de Marshall - que de certa forma revelou Julia Roberts ao mundo, em "Uma linda mulher" (90) e morreu poucos meses depois da estreia, "O maior amor do mundo" padece de um roteiro simplista e personagens sem muito carisma ou profundidade, que serve unicamente como passatempo rápido e facilmente esquecível.

Menos ambicioso do que os filmes anteriores do estilo, e com um elenco de estrelas mais enxuto, "O maior amor do mundo" se fixa em apenas cinco núcleos, que se cruzam ocasionalmente e tem, como pano de fundo, o amor materno. Julia Roberts, amiga do diretor, está pouco confortável como Miranda Collins, uma escritora famosa que é conhecida por apresentar um programa de televisão onde vende joias ao telespectador. Quem deseja ser contratada por ela como designer é Sandy (Jennifer Aniston), que está passando pela complicada situação de lidar com o novo casamento do ex-marido, Henry (Timothy Olyphant), e ver seus filhos conquistados pela madrasta. Nesse meio-tempo, ela conhece o viúvo Bradley (Jason Sudeikis), que perdeu a esposa há pouco tempo e tenta compreender o universo de suas duas filhas, uma delas em plena adolescência. Já as duas irmãs Jesse (Kate Hudson) e Gabi (Sarah Chalke) tentam esconder de seus pais (preconceituosos) seus relacionamentos amorosos: a primeira com um médico indiano e a segunda com uma mulher, com quem tem um filho. E finalizando a ciranda de relações está o casal formado pelo comediante inglês Zack (Jack Whitehall) e sua amada Kristin (Britt Robertson), que tem um bebê juntos mas não conseguem se casar por causa de uma situação mal resolvida no passado da jovem.


Mesmo com um número relativamente baixo de tramas paralelas, o roteiro de "O maior amor do mundo" consegue ser superficial em todas. Julia Roberts talvez seja o maior talento desperdiçado dentre todo o elenco, com uma personagem tão rasa e inverossímil que chega a parecer proposital - além de não oferecer à atriz a chance de mostrar sua beleza. Jennifer Aniston ainda consegue extrair um pouco mais de sua Sandy, que se envolve em duas das histórias contadas, mas mesmo assim pouco faz para deixar de lado os trejeitos de sua personagem mais famosa, a Rachel Green da série "Friends" - sorte que seu carisma é inabalável. Margo Martindale quase rouba a cena como a mãe preconceituosa de Kate Hudson, mas lhe é dado tão pouco tempo em cena que seu enredo - talvez o mais interessante de todos - acaba perdido em meio a algumas piadas sem graça e tentativas nem sempre felizes de emocionar o público. A sorte é que Marshall - um veterano com larga experiência - sabe como transformar seus filmes em produtos agradáveis mesmo quando pouco profundos e não deixa que a sessão se torne um pesadelo.

A receita de "O maior amor do mundo" é fácil: um visual bonito, com atores atraentes, uma trilha sonora pop com alguns sucessos do momento, personagens com problemas facilmente identificáveis (mas não pesados a ponto de afastar o público) e alguns momentos de humor e drama, dosados para conquistar tanto os fãs de comédia quanto aqueles que gostam de chorar diante da tela. Todos os ingredientes estão presentes no filme, mas o resultado é apenas razoável, sem nada que o diferencie de dezenas de outros produtos lançados semanalmente nos cinemas. Talvez agrade mais a quem for mãe - ou a quem se conecte especificamente com alguma das tramas - mas no final é simplesmente uma sessão da tarde pouco memorável. Uma pena que Marshall tenha se despedido do cinema com um filme tão banal e vazio!

sábado

MANCHESTER À BEIRA-MAR

MANCHESTER À BEIRA-MAR (Manchester by the sea, 2016, Amazon Studios/K Period Media/Pearl Street Films, 137min) Direção e roteiro: Kenneth Lonergan. Fotografia: Jody Lee Lipes. Montagem: Jennifer Lame. Música: Lesley Barber. Figurino: Melissa Toth. Direção de arte/cenários: Ruth De Jong/Florencia Martin. Produção executiva: Declan Baldwin, Josh Godfrey, John Krasinski, Bill Migliore. Produção: Lauren Beck, Matt Damon, Chris Moore, Kimberly Steward, Kevin J. Walsh. Elenco: Casey Affleck, Michelle Williams, Kyle Chandler, Lucas Hedges, Gretchen Mol, Matthew Broderick. Estreia: 23/01/16 (Festival de Sundance)

6 indicações ao Oscar: Melhor Filme, Diretor (Kenneth Lonergan), Ator (Casey Affleck), Ator Coadjuvante (Lucas Hedges), Atriz Coadjuvante (Michelle Williams), Roteiro Original
Vencedor de 2 Oscar: Ator (Casey Affleck), Roteiro Original
Vencedor do Golden Globe de Melhor Ator/Drama (Casey Affleck) 

A cerimônia de entrega do Oscar 2017 ficou marcada pela maior gafe da história do prêmio, quando os apresentadores Warren Beatty e Faye Dunaway divulgaram o filme errado como vencedor da principal estatueta - uma situação constrangedora resolvida ainda no palco e diante dos olhos de milhões de pessoas ao redor do mundo. Porém, antes disso, outro momento desconfortável havia acontecido sem que houvesse tanto alarde: ao ser anunciado como o melhor ator do ano por seu desempenho em "Manchester à beira-mar", Casey Affleck recebeu o troféu das mãos da melhor atriz do ano anterior, Brie Larson (por "O quarto de Jack") - e ela simplesmente se recusou a cumprimentá-lo com mais efusão do que um simples aperto de mãos. Explica-se: acusado de assédio sexual por diversas mulheres envolvidas no falso documentário "I'm still here", com Joaquin Phoenix, Affleck batia de frente com o envolvimento de Larson em campanhas contra tais atitudes. O gesto da atriz - cujo Oscar aconteceu justamente por uma personagem vítima de cárcere privado e abuso - passou quase em branco, mas acabou por manchar a trajetória de um filme que, desde sua estreia, no Festival de Sundance mostrou-se uma das mais premiadas produções da temporada - com Affleck sendo eleito melhor ator não apenas pela Academia, mas também pelo Golden Globe, pelo BAFTA e algumas das mais importantes associações de críticos dos EUA.

A ironia é que Affleck nem era a primeira escolha para o papel principal do filme, dirigido por Kenneth Lonergan, conhecido por suas produções independentes - e indicações ao Oscar de roteiro por "Conte comigo" (2000) e "Gangues de Nova York" (2003): quando a ideia da história surgiu, durante as filmagens de "Os agentes do destino" (2011), em um jantar entre Matt Damon (astro do filme) e John Krasinski (também ator, casado com a estrela da produção, Emily Blunt). Krasinski deu a ideia do roteiro a Damon, que gostou tanto da possibilidade de transformá-la em filme que se dispunha inclusive a dirigir e ficar com o papel principal. Lonergan, seu amigo de longa data, aceitou a proposta de escrever o roteiro, mas compromissos anteriores atrasaram tanto o projeto que, quando finalmente colocou seu ponto final na trama, Matt Damon é quem estava com a agenda cheia. Se mantendo no papel de produtor, ele sugeriu Casey Affleck para liderar o elenco. E a coisa tomou forma: com um custo de 8 milhões e meio de dólares e filmado em apenas 32 dias, "Manchester à beira-mar" foi a primeira produção distribuída pela Amazon Studios e arrecadou mais de 60 milhões de dólares mundo afora - graças principalmente ao fato de ter se tornado queridinho dos críticos desde sua estreia.



"Manchester à beira-mar" é um drama no melhor sentido da palavra: sem medo de apostar nos sentimentos mais primais do público, Kenneth Lonergan não poupa sofrimento a seus personagens, e carrega junto cada um na plateia a um mundo triste e solitário - mas felizmente temperado com um sutil senso de humor e uma espécie de otimismo que escapa até mesmo nos momentos mais difíceis, uma característica do diretor. Seu protagonista, Lee Chandler, é um Jó moderno, um homem de quem tudo foi tirado sem piedade e que leva sua vida no piloto automático - por motivos que vão sendo revelados aos poucos e justificam plenamente sua apatia diante da rotina e seu comportamento agressivo. Separado da mulher, Randi (Michelle Williams, brilhante e indicada ao Oscar de atriz coadjuvante) e trabalhando como um silencioso e ranzinza zelador de um prédio em Boston, longe de seus últimos vínculos familiares, com o irmão, Joe (Kyle Chandler), e o sobrinho adolescente, Patrick (Lucas Hedges, indicado ao Oscar de ator coadjuvante). Quando Joe morre em decorrência de uma doença cardíaca, Lee descobre que, por uma determinação em seu testamento, deve ficar com a guarda do rapaz. Logicamente Patrick não quer deixar a cidade de Manchester - onde tem amigos, uma banda e duas namoradas - e Lee não tem intenções de voltar ao cenário de sua tragédia particular: está estabelecido o impasse.

Unanimemente aplaudido por seu desempenho no papel central, Casey Affleck na verdade não faz muito mais do que desfilar pela tela de forma apática e desanimada - uma característica do personagem, é claro, mas basta uma conferida em outras de suas atuações, inclusive na que lhe rendeu uma indicação ao Oscar de coadjuvante, em "O assassinato de Jesse James pelo covarde Robert Ford" (2007), para perceber que não há muita diferença. Sem carisma o bastante para conectar a audiência a seu sofrimento, Affleck acaba por transformar um roteiro poderoso (vencedor da estatueta em sua categoria) em um drama apenas interessante, valorizado muito mais pelo elenco secundário do que por seu protagonista. Apesar de aparecer pouquíssimo em cena, Michelle Williams simplesmente rouba o filme, em um momento em que finalmente todo o drama represado pela sutileza de Lonergan vem à tona - são lágrimas necessárias para transformar o árido caminho de Lee em algo menos duro para a plateia, e Michelle cumpre a missão com louvor mesmo diante de um quase invisível Casey Affleck, mais um (dentre vários) casos de alucinação coletiva junto aos membros da Academia. "Manchester à beira-mar" não é um filme bom por causa de Affleck: ele é bom apesar dele.

sexta-feira

MAD MAX: ESTRADA DA FÚRIA

MAD MAX: ESTRADA DA FÚRIA (Mad Max: Fury Road, 2015, Warner Bros/Village Roadshow Pictures, 120min) Direção: George Miller. Roteiro: George Miller, Brendan McCarthy, Nico Lathouris, personagens criados por George Miller, Byron Kennedy. Fotografia: John Seale. Montagem: Margaret Sixel. Música: Junkie XL. Figurino: Jenny Beavan. Direção de arte/cenários: Colin Gibson/Nicki Gardiner, Katie Sharrock, Lisa Thompson. Produção executiva: Bruce Berman, Graham Burke, Chris DeFaria, Steven Mnuchin, Iain Smith, Courtenay Valente. Produção: George Miller, Doug Mitchell, PJ Voeten. Elenco: Tom Hardy, Charlize Theron, Nicholas Hoult, Zoe Kravitz, Hugh Keays-Byrne, Nathan Jones, Rosie Huntington-Whiteley. Estreia: 07/5/15

10 indicações ao Oscar: Melhor Filme, Diretor (George Miller), Fotografia, Montagem, Figurino, Direção de Arte/Cenários, Efeitos Visuais, Maquiagem, Edição de Som, Mixagem de Som
Vencedor de 6 Oscar: Montagem, Figurino, Direção de Arte/Cenários, Edição de Som, Mixagem de Som, Maquiagem 

É fato público e notório que a Academia de Hollywood não é muito chegada em admitir as qualidades de blockbusters de ação quando vai escolher seus preferidos na hora de conceder sua honra máxima - o Oscar. Raramente um filme como "Star Wars" (77), "Caçadores da Arca Perdida" (81) e "A origem" (2010) são reconhecidos com indicações além das técnicas - uma reclamação que não cessa junto ao grande público. Por isso, não deixou de ser uma grande e grata surpresa quando "Mad Max: Estrada da Fúria", quarto capítulo da saga criada por George Miller em 1979, chegou à cerimônia de 2016 com chances de vitória em nada menos que 10 categorias - incluindo melhor filme e diretor. Unanimemente incensado pela crítica, eleito melhor filme pelos críticos de Chicago e Los Angeles - além do National Board of Review - e com uma bilheteria mundial de quase 400 milhões de dólares, a produção não apenas mereceu plenamente as seis estatuetas recebidas como revestiu o gênero de uma aura de respeito e prestígio poucas vezes visto. Não é para menos: um espetáculo visual e cinético avassalador e corajoso em apelar para a violência sem glamourizá-la ou banalizá-la, "Mad Max: Estrada da Fúria" é o filme de ação que os fãs pediram a Deus: impactante, empolgante e divertido sem ser bobo. Além disso, é uma aula de edição, sonorização e fotografia.

O principal mérito de "Mad Max: Estrada da Fúria" foi deixar de lado a reverência aos três primeiros filmes da série, procurando uma nova geração de espectadores que certamente não os assistiram apesar do sucesso. Dessa forma, não apenas o novo capítulo é quase um reset mas também pode ser visto sem nenhuma informação anterior, sem prejuízo da compreensão da história (que, a bem da verdade, quase inexiste). Um filme de ação no sentido mais radical da palavra, "Estrada da Fúria" prescinde de muitos diálogos, mergulhando a plateia em uma experiência sensorial sem pausas - dos primeiros aos últimos minutos só o que se vê na tela é uma sucessão de sequências abismais de adrenalina pura, fotografada com precisão cirúrgica pelo veterano John Seale e editada com energia palpável por Margaret Sixel - esposa do diretor e vencedora do Oscar por seu meticuloso trabalho. Outro grande acerto foi dividir a responsabilidade do protagonismo entre Max (interpretado pelo ótimo Tom Hardy, assumindo o lugar de Mel Gibson sem medo das comparações) e a já icônica Imperatriz Furiosa (em atuação inesquecível de Charlize Theron): com dois personagens centrais que unem as forças na segunda e explosiva metade, o filme de Miller não perde o ritmo em nenhum momento e expande sua narrativa para prováveis sequências - o próprio Tom Hardy já tem contrato assinado para outros três filmes.


Sem explicar muito e deixando para o público preencher as lacunas da história, o roteiro de "Estrada da Fúria" se passa em um futuro pós-apocalíptico, em um deserto australiano carente de água e combustível e dominado pelo déspota Immortan Joe (Hugh Keays-Byrne), que tem toda a população a seu redor na dependência de seu poder e um grupo de mulheres para lhe dar filhos e eternizar seu império. Revoltada com a situação, uma de suas pessoas de confiança, Furiosa, resolve fugir de seu jugo e, acompanhada de um grupo de outras rebeldes (inclusive a preferida do tirano, grávida), aproveita uma chance de atravessar o deserto e, voltando para casa, desafiar o cruel e violento ditador. No caminho, ela encontra Max, um homem de passado traumático, assombrado por decisões tomadas em sua trajetória e que é escravo de Immortan Joe, servindo como doador compulsório de sangue para os soldados da cidadela. Agressivo e experiente, Max demora a conquistar a confiança de Furiosa, mas quando ela começa a ser perseguida pelo deserto, os dois se unem no objetivo de fugir e destruir a onipotência do sanguinário monstro.

Com dois atos bem definidos - uma fuga na primeira metade e uma corrida na segunda - e personagens fortes e carismáticos, "Mad Max: Estrada da Fúria" é a radicalização dos filmes de ação: não há espaço para piadinhas ou romances, a violência é extrema e desglamourizada, o ritmo é absurdamente alucinante e a história é apenas mera desculpa para efeitos espetaculares - e em sua maioria absoluta sem auxílio de CGI. George Miller surpreende a plateia com momentos de poesia visual desconcertante e em seguida choca com uma sanguinolência cada vez mais rara em uma época em que os filmes precisam ser cuidados com a classificação etária (e com isso fazer mais dinheiro nas bilheterias). Sem preocupações desse tipo, o cineasta conta sua história com energia de principiante e sabedoria de veterano - e consegue deixar de queixo caído não apenas o público mas também seu elenco: nem Charlize Theron nem Tom Hardy tinham ideia de como o resultado final sairia até a primeira e consagradora sessão. Uma obra-prima do gênero, "Estrada da Fúria" pode até ter saído do Oscar sem as principais estatuetas, mas seu lugar está garantido entre os grandes filmes de 2015 - e até da década. Imperdível!

quinta-feira

LONGE DESTE INSENSATO MUNDO

LONGE DESTE INSENSATO MUNDO (Far from the Madding Crowd, 2015, Fox Searchlight Pictures, 119min) Direção: Thomas Vinterberg. Roteiro: David Nicholls, romance de Thomas Hardy. Fotografia: Charlotte Bruus Christensen. Montagem: Claire Simpson. Música: Craig Armstrong. Figurino: Janet Patterson. Direção de arte/cenários: Kave Quinn/Niamh Coulter. Produção executiva: Christine Langan. Produção: Andrew MacDonald, Allon Reich. Elenco: Carey Mulligan, Matthias Schoenaerts, Michael Sheen, Tom Sturridge, Juno Temple, Jessica Barden. Estreia: 15/4/15

Não é a primeira vez que "Longe deste insensato mundo" é adaptado para o cinema. Publicado pela primeira vez em 1874, o romance do inglês Thomas Hardy chegou às telas pela primeira vez em 1915, ainda durante a era do cinema mudo, e de lá pra cá a história teve outras versões, estreladas por Julie Christie (em 1967) e Paloma Baezza (em 1998). Por que, então, mais um remake? A resposta é dada em cada cena do primeiro filme do dinamarquês Tomas Vinterberg - de "Festa de família" e "A caça" - em inglês: belamente fotografado, dotado de ritmo, emocionalmente compensador e com um elenco impecável, a quarta encarnação da obra de Hardy é a prova cabal de que uma história, quando dotada de bons personagens e uma boa trama, sobrevive ao tempo e a quaisquer visões de roteiro e direção. Estrelado pela ótima Carey Mulligan - escolhida a dedo pelo diretor - e pelo belga Matthias Schoenaerts - recomendado pela própria Mulligan depois de vê-lo em "Ferrugem e osso" -, "Longe deste insensato mundo" é um sucesso artístico e surpreendentemente romântico em se tratando de um sujeito tão pouco crente no lado bom do ser humano como Vinterberg. Com uma heroína forte e desprezo por sentimentalismos vazios, a história de amor contada pelo autor britânico é ainda mais valorizada pela seriedade e respeito demonstrados pelo roteiro de David Nicholls - o escritor por trás do delicioso romance "Um dia", adaptado para o cinema em 2011.

Com alma de escritor, Nicholls dá importância extrema aos diálogos e à construção dos personagens, o que fica evidenciado na condução de seu roteiro - em que cada cena tem motivos específicos e cruciais para o desenvolvimento emocional e orgânico da trama. São duas horas de projeção sem tempos mortos ou sequências desnecessárias - e o que é melhor, com um ritmo agradável e cadenciado, que ainda dá espaço para o elenco brilhar sem precisar apelar para longos discursos ou catarses exageradas. A confiança do diretor e do roteirista na história e nos personagens é tanta que nem mesmo o fato de o desfecho ser conhecido há mais de um século foi motivo para qualquer alteração no desenvolvimento do enredo, situado no interior da Inglaterra vitoriana: é lá que vive Bathsheba Everden (Carey Mulligan), uma jovem determinada e batalhadora que chama a atenção do jovem fazendeiro Gabriel Oak (Matthias Schoenaerts) a ponto de ser pedida em casamento por ele. Sentindo que seus sentimentos pelo rapaz ainda não são suficientes a ponto de assumir um compromisso tão sério, ela recusa a oferta e só vai voltar a encontrá-lo algum tempo depois, em circunstâncias diferentes: herdeira de uma fazenda, ela vê sua propriedade ser salva do fogo justamente por Oak - que perdeu tudo que tinha em um trágico acidente com seus animais. Agradecida, ela o contrata para trabalhar a seu lado, confiando plenamente em sua capacidade como administrador e deixando de lado seu passado quase romântico.


Com o tempo, Bathsheba torna-se referência com sua propriedade, o que desperta mais que a admiração de um vizinho, o maduro e racional William Boldwood (Michael Sheen), que também não resiste à força da jovem e propõe casamento: novamente ela declina, não sentindo por ele atração ou qualquer coisa que justifique uma união. Para surpresa de muitos, porém, ela acaba nos braços do Sargento Frank Troy (Tom Sturridge), um soldado com um dramático passado e pouco confiável, que a conquista pela audácia e ousadia. O casamento, porém, já não começa bem, e logo a fazendeira se virá novamente disputada por dois homens de temperamento e comportamento opostos - e sempre colocando em primeiro lugar sua independência e o controle de sua propriedade. Como legítima pré-feminista, ela não se vê aceitando dividir a vida com um homem pelos motivos errados: ela não quer viver com alguém por precisar dele, por mais surpreendente que isso possa parecer à sociedade de sua época.

Emprestando ares modernos e resilientes à Bathsheba Everden, a atriz Carey Mulligan dá seguimento à sua galeria de jovens e determinadas heroínas, que já conta com a adolescente à frente de seu tempo em "Educação" (2009) e a lavadeira que batalha pelo voto feminino em "As sufragistas" (2014). Talentosa e sensível, Mulligan é a escolha perfeita para o papel, equilibrando com sutileza todas as nuances de sua personagem: doce, batalhadora, romântica, sensual e intransigente sempre que a necessidade pede. Sua química com Matthias Schoenaerts - um dos mais promissores atores a surgir nos últimos anos - é admirável, assim como a direção discreta e eficiente de Tomas Vinterberg, que deixa de lado qualquer artifício narrativo para dedicar-se apenas a contar sua (boa) história. A bela reconstituição de época, a trilha sonora competente de Craig Armstrong e a edição concisa de Claire Simpson (indicada ao Oscar por "O jardineiro fiel") complementam o belo trabalho do cineasta, pela primeira vez mostrando traços otimistas e menos sombrios. Uma bela surpresa!

terça-feira

JACKIE

JACKIE (Jackie, 2016, Fox Searchlight Pictures, 100min) Direção: Pablo Larraín. Roteiro: Noah Oppenheim. Fotografia: Stéphane Fontaine. Montagem: Sebastián Sepúlveda. Música: Mica Levi. Figurino: Madeline Fontaine. Direção de arte/cenários: Jean Rabasse/Véronique Melery. Produção executiva: Martine Cassinelli, Charlie Corwin, Wei Han, Jayne Hong, Jennifer Monroe, Howard Owens, Lin Qi, Pete Shilaimon, Josh Stern. Produção: Darren Aronofsky, Pascal Caucheteaux, Scott Franklin, Ari Handel, Juan de Dios Larraín, Mickey Liddell. Elenco: Natalie Portman, Peter Sarsgaard, Greta Gerwig, Billy Crudup, John Carrol Lynch, Richard E. Grant, John Hurt, Beth Grant. Estreia: 07/9/16 (Festival de Veneza)

3 indicações ao Oscar: Atriz (Natalie Portman), Trilha Sonora Original, Figurino

Quem conhece a filmografia do cineasta chileno Pablo Larraín já sabe o que esperar de "Jackie": não uma cinebiografia convencional da mais famosa primeira-dama dos EUA, mas uma tentativa de retratar diferentes ângulos de sua personalidade a partir da morte de John F. Kennedy, um dos mais traumáticos eventos da história do país, ocorrido em novembro de 1963, em Dallas. Com base em uma entrevista concedida pela jovem viúva ao repórter Theodore H. White - da revista Life - pouco depois do trágico acontecimento, o roteiro de Noah Oppenheim se recusa a seguir uma linha narrativa tradicional e constrói, através de silêncios, meias-verdades e declarações da protagonista, um perfil não completo, mas controverso e complexo de uma das figuras mais admiradas e influentes do século XX. Contando com uma atuação irretocável de Natalie Portman no papel central e uma reconstituição meticulosa de alguns momentos cruciais da história da família Kennedy durante sua estada na Casa Branca, "Jackie" é um filme acima da média, ainda que possa causar certo estranhamento àqueles que procuram uma produção nos moldes acadêmicos. Mas, como já afirmado, quem conhece a obra de seu diretor não irá se surpreender tanto assim.

Crítico ferrenho da política e da sociedade chilena, Pablo Larraín assinou filmes polêmicos e crus - como "Tony Manero" (2008) e "Post mortem" (2010) -, o indicado ao Oscar de melhor produção estrangeira "No" (2012) e o controverso "O clube" (2015), que concorreu ao Golden Globe na mesma categoria. Em todos eles, há a tendência em tocar em feridas ainda não cicatrizadas - sejam elas quais forem, desde pedofilia na Igreja Católica até a traumática ditadura de Pinochet. Distante geográfica e emocionalmente da trajetória de Jacqueline Kennedy, Larraín pode exumar sem medo suas contradições e mecanismos de defesa, apresentando uma protagonista que deixa vislumbrar seus medos e inseguranças somente em momentos solitários - e em uma ou outra hesitação na voz e no olhar durante a famosa entrevista (no filme o repórter, vivido por Billy Crudup, não tem nome e nem a revista Life é citada, para maior liberdade artística). Louvada como ícone fashion e uma das mulheres mais elegantes do mundo, no filme de Larraín a elegante Jackie mostra outras facetas de si mesma: a mãe extremada e preocupada com o destino dos filhos, a viúva chocada com o fim trágico do marido diante de seus olhos, a primeira-dama exemplar posta na angustiante situação de ver-se desamparada e a mulher altiva que evita demonstrar sentimentos exagerados para o povo ainda aturdido com toda a situação. Natalie Portman se encarrega de dar vida a todas às nuances propostas pelo roteiro, mostrando que alguns males realmente vem para o bem: a primeira opção para o papel era Rachel Weisz, na época em que o projeto era do cineasta Darren Aronofsky - que dirigiu Portman em "Cisne negro" e se manteve como produtor mesmo depois de pular fora da direção: Weisz é uma boa atriz, mas Natalie simplesmente desaparece na pele de Jackie, em um trabalho de imersão que justifica plenamente sua indicação ao Oscar.


Amparada por uma caracterização impecável - em especial o figurino de Madelie Fontane, também concorrente ao Oscar - e pela decisão de Larraín em utilizar primordialmente os primeiros takes de cada cena e filmar com uma câmera de mão (como forma de extrair as emoções de maneira mais orgânica e claustrofóbica possível), a atuação de Natalie Portman faz esquecer que, na verdade, ela é bastante diferente fisicamente da verdadeira Jacqueline Kennedy. Sua empostação de voz, postura e trejeitos convencem o público assim que ela entra em cena, ainda abalada pela morte do marido, mas tentando, de todas as formas, manter uma classe e uma força interior que possa inspirar os fãs. Seus diálogos com o repórter mostram uma mulher estoica e conformada - e é aí que o roteiro dá seu pulo do gato, com flashbacks reveladores tanto de seus momentos imediatamente posteriores à morte do marido quanto de outra ocasião célebre: o tour televisionado pela Casa Branca, que aproximou a família presidencial do povo e tornou-a quase uma espécie de família real norte-americana. Misturando cenas reais do programa com takes filmados com o elenco liderado por Portman, Pablo Larraín volta a brincar com a dicotomia real/fictício que já havia imposto a "No", e a edição magistral torna a experiência ainda mais satisfatória.

Sempre que as imagens reais de Jacqueline, John Kennedy e seu entorno surgem na tela, Pablo Larraín faz questão de intercalar com cenas reconstituídas, explorando ao máximo o extremo cuidado em sua recriação e a mágica de transformar alguns momentos icônicos da história dos EUA em cinema de qualidade. Se Natalie Portman traduz a protagonista com perfeição, não se pode deixar de elogiar também o trabalho de Peter Sarsgaard como Bobby Kennedy: igualmente pouco semelhante ao irmão do presidente (e que também foi assassinado, em 1968), Sarsgaard convence facilmente a plateia tão logo aparece, tamanha o seu talento em desaparecer sob o gestual formal e público do personagem. É também notável como o cineasta atinge plenamente seu objetivo de mostrar ângulos diversos de seus personagens, deixando a audiência vislumbrar, ocasionalmente, as pessoas por trás dos ícones - é para isso que estão em cena personagens cruciais, como a assistente e melhor amiga de Jackie, Nancy Tuckerman (Greta Gerwig), e um padre católico que a ajuda a compreender e lidar com a dor da perda (John Hurt em um de seus últimos trabalhos): esses elos de Jackie com o mundo exterior lhe dão a chance de expor seus sentimentos, e o filme cresce a cada momento em que eles estão presentes, graças à inteligência dos diálogos e da sensibilidade do diretor.

Com uma bela e sutil trilha sonora - que também concorreu a uma estatueta dourada - e um respeito quase reverente à sua protagonista, "Jackie" é um filme que pode não agradar a todos os públicos, mas que resiste bravamente à tentação de ser mais uma compilação de fofocas de bastidores e se torna um retrato interessante e elegante de uma das figuras femininas mais importantes do século XX. Não é o grande filme que poderia ser, mas é bastante recomendável a quem procura cinema de qualidade.

segunda-feira

IRONWEED

IRONWEED (Ironweed, 1987, TriStar Pictures, 143min) Direção: Hector Babenco. Roteiro: William Kennedy, romance de sua autoria. Fotografia: Lauro Escorel. Montagem: Anne Goursaud. Música: John Morris. Figurino: Joseph G. Aulisi. Direção de arte/cenários: Jeannine Oppewall/Leslie Pope. Produção executiva: Denis Blouin, Rob Cohen, Joseph H. Canter. Produção: Keith Barish, Marcia Nasatir. Elenco: Jack Nicholson, Meryl Streep, Tom Waits, Carroll Baker, Diane Venora, Frank Whaley. Estreia: 18/12/87

2 indicações ao Oscar: Ator (Jack Nicholson), Atriz (Meryl Streep)

O primeiro encontro entre Meryl Streep e Jack Nicholson nas telas foi em 1986, com "A difícil arte de amar", de Mike Nichols, que retratava o conturbado casamento entre a roteirista Nora Ephron e o jornalista Carl Bernstein (ele mesmo, um dos responsáveis pelas reportagens que derrubaram o presidente Nixon pelo escândalo Watergate). No ano seguinte, a dupla de grandes atores voltaria a se encontrar, sob as mãos do brasileiro/argentino Hector Babenco (em alta devido ao prestígio de "O beijo da mulher-aranha") em uma obra bem mais densa e complicada comercialmente. Baseado no romance de William Kennedy vencedor do Prêmio Pulitzer, "Ironweed" é, segundo seu diretor, "sobre o amor, a coragem e a beleza de pessoas de quem não costumamos pensar que podem ter emoções complexas e profundas". Tais pessoas, no caso, são aquelas cujo passado trágico/dramático/sofrido as empurraram para as ruas - sem-tetos, viciados em álcool e relembrando com melancólica nostalgia seus dias junto às famílias e a uma vida estável. Situado em plena Grande Depressão Americana (consequência da quebra da bolsa de valores de Nova York em 1929) e passando longe dos cartões postais que fazem dos EUA a terra das oportunidades, "Ironweed" é um filme pesado, mas consegue o milagre de extrair poesia e até uma pontinha de otimismo de uma trama centrada basicamente em dor, perda e culpa.

Fotografado com precisão cirúrgica por Lauro Escorel, "Ironweed" não tenta embelezar a vida de tristeza de seus personagens - muito pelo contrário, ilustra de forma visual o cinzento de seu dia-a-dia como uma testemunha silenciosa e compreensiva. O ano é 1938, e o feriado de Halloween leva os dois amantes Francis Pheelan (Jack Nicholson) e Helen Archer (Meryl Streep) à cidade natal dele, Albany, no estado de Nova York. Seu passado é repleto de traumas, sendo o maior a morte de seu filho pequeno, que ele deixou cair no chão ainda bebê - um acontecimento que o afastou da família e o jogou na rua e nos braços do álcool. Helen, por sua vez, era uma cantora talentosa que deixou seus dias de glória no passado e luta contra uma doença incurável, enquanto permanece fiel e leal a Francis e seu grupo de amigos, que inclui o também doente Rudy (Tom Waits) - "tenho câncer e é a primeira vez que eu tenho algo!". Entre abrigos, bares e sarjetas, o casal e seus ocasionais parceiros de copo e de cruz tentam encontrar luz para seus dias tristes, de vez em quando iluminados por momentos de beleza efêmera.


Fugindo bravamente do sentimentalismo barato e da tentação de banalizar ou enfeitar uma camada de seres quase invisíveis da sociedade americana (e por que não universal?), o roteiro de William Kennedy - adaptando seu próprio romance com lances de genialidade - não facilita para o público, tornando seus protagonistas personagens adoráveis e/ou simpáticos. Se existe empatia é graças aos desempenhos extraordinários de seus intérpretes, como sempre impecáveis. Jack Nicholson empresta a seu Francis Pheelan um toque de humanidade e fragilidade poucas vezes visto em sua carreira recheada de tipos excêntricos e arrogantes - seu monólogo frente ao túmulo do filho, logo no início do filme, é uma pérola das mais valiosas (não por acaso, ele foi eleito o melhor ator do ano pelos críticos de Nova York e Los Angeles). Já Meryl Streep brilha sem fazer muito esforço, construindo uma Helen Archer cuja dor de viver está estampada em cada close, em cada sorriso forjado - e principalmente em seu momento-solo, quando sobe ao palco de uma espelunca qualquer para relembrar seus dias de estrela. Ambos foram indicados ao Oscar - e provavelmente perderam as estatuetas devido ao status de "difícil" do filme e seu fraco desempenho na bilheteria: mesmo tendo relativamente poucas cenas juntos, eles elevam o patamar do filme a um nível muito acima da média - e o estabelece como um dos melhores trabalhos de Babenco, um cineasta cuja carreira é marcada por uma série de altos e baixos.

Lançado quatro anos depois da publicação do livro que lhe deu origem - e que está na lista dos 100 melhores romances em língua inglesa do século XX segundo a "The Modern's Library" -, "Ironweed" é um filme único, que trata de pessoas reais e críveis, dotadas de alma e sensibilidade. Jack Nicholson - o ator que William Kennedy tinha em mente desde o começo, apesar de nomes fortes como Gene Hackman, Jason Robards, Paul Newman, Robert Duvall e Sam Shepard terem flertado com o projeto - nunca esteve tão vulnerável em cena, oferecendo ao papel uma delicadeza ímpar, que contrasta com a aridez do cenário, a dureza do tema e a melancolia que perpassa cada minuto. "Ironweed" é uma bela canção sobre dor, luto, perda, desespero. Mas é, também, um filme excepcional, que abraça calorosamente o espectador enquanto lhe mostra um lado feio, sujo e malvado da vida. Um trabalho irretocável de roteiro, direção e elenco, que fica na mente e no coração em iguais medidas. É a obra-prima de Hector Babenco.

domingo

O HOMEM NAS TREVAS

O HOMEM NAS TREVAS (Don't breath, 2016, Screen Gems, 88min) Direção: Fede Alvarez. Roteiro: Fede Alvarez, Rodo Sayagues. Fotografia: Pedro Luque. Montagem: Eric L. Beason, Louise Ford, Gardner Gould. Música: Roque Baños. Figurino: Carlos Rosario. Direção de arte/cenários: Naaman Marshall/Zsuzsa Mihalek. Produção executiva: Joe Drake, Matthew Hart, Nathan Kahane, Erin Westerman, J.R. Young. Produção: Fede Alvarez. Elenco: Stephen Lang, Dylan Minnette, Jane Levy, Daniel Zovatto. Estreia: 12/3/16

Esqueça de lado o excesso de sanguinolência e o humor negro que vem caracterizando o cinema de terror nas últimas décadas: "O homem nas trevas" tem muito mais elementos do clima claustrofóbico de um filme de suspense dos anos 70 do que da obra anterior de seu diretor, o uruguaio Fede Alvarez. Responsável pelo remake de "A morte do demônio", lançado em 2013, Alvarez segue o caminho inverso em seu segundo longa-metragem, optando por um modo menos óbvio de prender a atenção (e a respiração) da plateia: sai o horror físico e explícito para dar lugar a uma linguagem mais sutil mas nem por isso menos assustadora e tensa. Realizado a um custo irrisório de cerca de 10 milhões de dólares, seu filme rendeu mais de 150 milhões pelo mundo afora, conquistando público e crítica com seu domínio narrativo e alguns momentos da mais pura angústia - sem para isso precisar de efeitos mirabolantes, astros consagrados ou campanhas milionárias de marketing. Uma gratíssima surpresa para os fãs do gênero, "O homem nas trevas" é, sem favor, um dos mais interessantes e inteligentes suspenses dos últimos anos, conciso e surpreendente na medida certa.

Aparentemente, a trama de "O homem nas trevas" é simples e sem novidades, mas o roteiro prepara algumas surpresas até mesmo para o mais escolado dos espectadores. Os protagonistas são três jovens insatisfeitos com sua rotina tediosa em Detroit que lidam com suas frustrações invadindo casas para praticar pequenos roubos. Rocky (Jane Levy) sonha em sair da cidade e dar uma vida melhor para sua irmã pequena, tratada com desleixo pela mãe e pelo padrasto; seu namorado, Money (Daniel Zovatto) é um delinquente juvenil acostumado com uma vida de contravenções; e o melhor amigo deles, Alex (Dylan Minette, da série "13 reasons why") é quem facilita seus projetos, aproveitando-se do fato de seu pai trabalhar em uma empresa de segurança que lhe dá acesso a senhas dos moradores. Apaixonado por Rocky, Alex de certa forma se sente inseguro quanto às invasões, mas se deixa levar pela dupla até que uma grande chance lhes aparece à frente, acenando com a possibilidade de dinheiro suficiente para encerrar a carreira de roubos e realizar seus planos imediatos: entrar na casa isolada de um veterano de guerra, cego, que tem escondido consigo uma bolada ganha como indenização pela morte da única filha. Parece barbada: roubar de um homem idoso e cego não deve ser complicado, pensam os jovens. Porém, nem tudo sai como o esperado: com sua experiência de guerra, o dono da casa (Joseph Lang) não pretende deixar que os invasores atinjam seu objetivo, e o que parecia um simples lar passa a parecer-se com um labirinto quando começa um angustiante jogo de gato e rato, repleto de surpresas e acontecimentos chocantes.


Sem deixar o ritmo cair em termos de suspense e reviravoltas, o roteiro de "O homem nas trevas" conduz o espectador a uma viagem sem destino certo, onde cada trecho apresenta uma novidade que altera sua trajetória. Ao transformar a vítima em algoz e mudar as regras do jogo constantemente, o filme de Alvarez impede o público de prever os passos seguintes dos personagens - e suas ações, que passam a ser derivadas não mais de sua ambição, mas por pura e simples vontade de sobreviver.  De forma inteligente e sagaz, o cineasta não hesita em alterar o rumo da narrativa para confundir e mudar também a empatia do público, que se deixa levar com prazer pelos desvios da trama até seu final - um clímax poderoso como poucas vezes o cinema de suspense apresentou nos últimos anos, ainda que um tanto longo demais. De certo modo, porém, até mesmo a demora em encerrar sua história (até então concisa e direta) é uma maneira de provocar incômodo e mais tensão - cortesia da trilha sonora discreta e da edição competente.

Encontrando ainda espaço para algumas referências espertas ao universo do suspense - o cachorro de "Cujo" e alguns detalhes que remetem a "O silêncio dos inocentes" -, Fede Alvarez acaba por criar uma pequena obra-prima do gênero. Despretensioso e de uma simplicidade admirável em tempos de orçamentos inchados e efeitos visuais que mais atrapalham do que ajudam, "O homem nas trevas" comprova a teoria de que em muitos casos - em especial quando se trata de filmes de suspense - menos realmente é mais: quase totalmente passado em um único cenário, com apenas quatro atores e uma trama enxuta, o filme atinge níveis de tensão que muitas superproduções sequer conseguem arranhar. Um belo passo adiante na carreira de seu diretor, "O homem nas trevas" é um filme incapaz de desagradar aos fãs do gênero - e ainda deixa a porta aberta para (talvez desnecessária) continuação. Se ela for do mesmo nível será muito bem-vinda!

sexta-feira

O HOMEM DE GELO

O HOMEM DE GELO (The iceman, 2012, Millenium Films, 106min) Direção: Ariel Vromen. Roteiro: Ariel Vromen, Morgan Land, livro de Anthony Bruno, documentário "The Iceman Tapes: Conversations with a killer", de Jim Thebaut. Fotografia: Bobby Bukowski. Montagem: Danny Rafic. Música: Haim Mazar. Figurino: Donna Zakowska. Direção de arte/cenários: Nathan Amondson/Teresa Visinaire. Produção executiva: Rene Besson, Anthony Bruno, Boaz Davidson, Danny Dimbort, Mark Gill, Lati Grobman, Laura Rister, Trevor Short, Jim Thebaut, John Thompson. Produção: Ehud Bleiberg, Avi Lerner, Ariel Vromen. Elenco: Michael Shannon, Winona Ryder, Ray Liotta, Chris Evans, David Schwimmer, James Franco, Stephen Dorff. Estreia: 30/8/12 (Festival de Veneza)

Michael Shannon é um monstro de ator (no bom sentido): intenso, dedicado e frequentemente requisitado para papéis que exigem imponência ou certo grau de ameaça - graças a seu olhar penetrante e sua vaga semelhança física com Christopher Walken, por muito tempo o malucão preferido de Hollywood -, Shannon não poderia ter sido a melhor escolha para interpretar Richard Kuklinski, um dos assassinos mais conhecidos da história dos EUA, que por trás da fachada de homem de família respeitável, foi responsável por cerca de 200 mortes, a maioria delas encomendadas pelas cinco famílias mafiosas de Nova York. Dono do apelido de Homem de Gelo, por seu costume de congelar as vítimas por um tempo antes de desovar o corpo (dificultando assim a definição exata da data de suas mortes), Kuklinski foi tema de um documentário da HBO chamado "America undercover: The iceman tapes - conversations with a killer" e um livro escrito por Anthony Bruno. As duas obras acabaram por ser a base de "O homem de gelo", longa-metragem dirigido por Ariel Vromen que, contando com a atuação gigantesca de Shannon, acompanha a trajetória do protagonista desde seu início na vida do crime até sua prisão, em 1986. Narrado de forma convencional e com um roteiro que não explora a contento todas as possibilidades oferecidas pela história, o filme se vale do talento de seu ator principal e do elenco coadjuvante para manter a atenção do público até o final - ainda que nem mesmo seu clímax chegue a ser empolgante como poderia.

Sem explorar o passado traumático e cercado de violência de seu personagem central, o que certamente explicaria boa parte de sua personalidade calculista e quase apática em relação aos crimes que comete, "O homem de gelo" concentra-se basicamente na transformação de um homem comum em um dos maiores assassinos dos EUA. De dublador de filmes pornográficos a matador de aluguel, Kuklinski praticamente tinha uma vida dupla: de dia, era um respeitável pai de família, casado com a doce Deborah (Winona Ryder substituindo Maggie Gyllenhaal, que saiu do filme devido à gravidez) e pai de duas meninas; em horário comercial, um criminoso frio e implacável que trabalha para o perigoso Roy Demeo (Ray Liotta em papel oferecido a Benicio Del Toro). Sem importar-se muito em detalhar as mortes cometidas por Kuklinski, o roteiro vai contando sua história sem pressa, até chegar o momento em que o protagonista entra em rota de colisão com Demeo: trabalhando por conta própria ao lado do excêntrico Robert Pronge (Chris Evans, ótimo), ele vê a si e a família ameaçados, o que o obriga a entrar em um período de tensão e paranoia crescentes - especialmente porque ninguém de suas relações pessoais sabe a respeito de sua verdadeira profissão.


Dotado de uma estrutura narrativa simples e sem apelar para a violência excessiva - apesar do tema e do personagem central de certa forma exigirem tal opção -, "O homem de gelo" parece mais um telefilme do que uma produção para o cinema. Apesar do elenco talentoso, sua falta de ousadia em contar uma história tão repleta de possibilidades incomoda a um público já acostumado com o gênero e que busca algo mais do que um roteiro quadradinho e que deixa de lado questões importantes - como o fato de Kuklinski ser também violento em casa, frequentemente espancando a esposa. Até mesmo a razão de seu apelido (o congelamento de suas vítimas) é mencionado apenas brevemente, quase como se fosse algo sem importância. A direção de Ariel Vromen - responsável por produções da Netflix, Warner e Lionsgate, entre outros - não empolga em nenhum momento, nem mesmo no terço final, quando finalmente Kuklinski se vê encurralado pelas consequências de seus atos e precisa lidar com a pressão de estar no papel de possível vítima. Michael Shannon brilha em cada cena, mas não consegue escapar das armadilhas de um roteiro pouco inspirado.

No final das contas, "O homem de gelo" é um filme apenas correto, com poucos momentos memoráveis e que deixa a sensação de que poderia ter sido um grande trabalho caso não tivesse optado pelo convencionalismo excessivo. Uma pena que uma história tão rica de possibilidades tenha ficado no meio-termo adotado por seu diretor. Está longe de ser um filme ruim, mas tampouco é um filme que mereça destaque - exceto talvez pelo belo desempenho de Michael Shannon, que consegue ser melhor que o filme em si. Segura bem uma tarde chuvosa, mas não marca a vida de ninguém da plateia - quase uma decepção em se tratando do tema e do elenco.

quinta-feira

A GRANDE APOSTA

A GRANDE APOSTA (The big short, 2015, Plan B Entertainment/Regency Enterprises, 130min) Direção: Adam McKay. Roteiro: Adam McKay, Charles Randolph, livro de Michael Lewis. Fotografia: Barry Ackroyd. Montagem: Hank Corwin. Música: Nicholas Britell. Figurino: Susan Matheson. Direção de arte/cenários: Clayton Hartley/Linda Sutton-Doll. Produção executiva: Kevin Messick, Louise Rosner-Meyer. Produção: Dede Gardner, Jeremy Kleiner, Arnon Milchan, Brad Pitt. Elenco: Ryan Gosling, Steve Carrell, Christian Bale, Brad Pitt, Marisa Tomei, Tracy Letts, Rafe Spall, Melissa Leo, Finn Wittrock. Estreia: 12/11/15

5 indicações ao Oscar: Melhor Filme, Diretor (Adam McKay), Ator Coadjuvante (Christian Bale), Roteiro Adaptado, Montagem
Vencedor do Oscar de Roteiro Adaptado 

Subprime. Trenchs. Bolha imobiliária. Termos como esses, comuns a quem lida com o mercado financeiro mas totalmente desconhecidos de 95% da população mundial, são frequentemente mencionados em "A grande aposta", vencedor do Oscar de melhor roteiro adaptado de 2015, batendo nomes fortes, como "Perdido em Marte", de Ridley Scott, e "Carol", de Todd Haynes. Dirigido pelo mesmo Adam McKay de "O Âncora" (2005) e "Tudo por um furo" (2013), e estrelado por astros do porte de Brad Pitt, Christian Bale, Ryan Gosling e Steve Carrell, o filme, baseado em uma história real, caiu nas graças da crítica e chegou a concorrer a outras quatro estatuetas, entre elas melhor filme e direção. Tanto sucesso (inclusive de bilheteria, já que ultrapassou os 70 milhões de dólares no mercado doméstico) não deixa de ser estranho e surpreendente: apesar do elenco milionário e das tentativas de familiarizar a plateia com seu palavreado técnico através de inserções cômicas e didáticas, "A grande aposta" não deixa de ser um filme muito complexo para os não-iniciados (e até para aqueles mais ou menos interessados no assunto). Como cinema é muito bom (bem editado, ágil, inteligente, com ótimos atores e uma direção precisa), mas falha em sua principal missão: se fazer compreender completamente.

Talvez seja exagero afirmar que é preciso um conhecimento prévio de economia para melhor aproveitar todos os detalhes de "A grande aposta", mas é fato que inúmeros de seus diálogos são repletos de jargões e conceitos simplesmente complicados demais para o padrão médio do público. A trama - dividida em vários núcleos cuja intersecção é justamente a grande crise imobiliária de 2005, que arruinou milhares de americanos e causou uma onda de demissões, falências e prisões - apresenta personagens pouco simpáticos, quase todos francamente amorais e/ou meramente gananciosos, o que dificulta ainda mais sua conexão com o público, por mais que sejam interpretados por grandes atores. Quem sai-se melhor nesse quesito é Steve Carrell, que consegue imprimir um pouco de humanidade a seu Mark Baum, um homem torturado pelas lembranças do irmão suicida e por um casamento em frangalhos com a compreensiva Cynthia (Marisa Tomei). Afora ele, os personagens falham em se comunicar com a emoção da plateia, desfilando pela tela desesperados por dinheiro e tentando lucrar com a desgraça alheia. É difícil encontrar um ponto de conexão com qualquer um deles, o que, somado à relativa complexidade da trama, torna o espetáculo ainda mais árduo para o público que procura apenas um entretenimento leve. Por mais que o esforço da produção em se fazer entender seja louvável, o filme de Adam McKay esbarra na própria natureza de seu tema, hermético desde sempre.



Christian Bale chegou a ser indicado ao Oscar de ator coadjuvante - e é seu personagem quem dá o pontapé inicial na história: Michael Burry é um excêntrico investidor, dono de um olho de vidro e modos esquisitos que, analisando o mercado, percebe que em alguns anos a bolha imobiliária que sobrevive de hipotecas da população norte-americana irá estourar, causando uma crise sem precedentes na economia. Esperto, ele resolve apostar nessa certeza e compra milhares de dólares em títulos - e acaba chamando a atenção de outros ambiciosos especialistas no setor, entre eles o próprio Mark Baum, que entra por acaso no negócio depois de um telefonema por engano e leva seus sócios e colegas de trabalho com ele na aventura. É também buscando a fortuna rápida que dois jovens empresários, Charlie Geller (John Magaro) e Jamie Shipley (Finn Wittrock), embarcam na arriscada tentativa de vencer contra o mercado - e tudo é visto à distância (mas não muita) pelo experiente Jared Vennett (Ryan Gosling), que é uma espécie de narrador, que tenta dar luz a todas as tramoias e complicações do roteiro.

Baseado em um livro do mesmo Michael Lewis de "O homem que mudou o jogo" - em que Brad Pitt tentava vencer como gerente de um time de futebol americano baseado exclusivamente em cálculos matemáticos - e dotado de um ritmo empolgante que quase disfarça o fato de ser tão complicado, "A grande aposta" se ressente basicamente de tratar de um assunto tão radicalmente distante do público médio. Não há nada de errado em sua estrutura ou sua costura cinematográfica, tudo funciona como um relógio, desde as atuações inspiradas até a direção precisa e a edição exata. O que atrapalha é unicamente seu tema, por mais que o roteiro oscarizado tente traduzir em imagens e exemplos mundanos todo o festival de jargões e complexidades de seu universo. Quem quiser arriscar-se a uma sessão mesmo sabendo de antemão que deixará passar muitos detalhes tem muito com o que se divertir, mas não deixa de ser um tanto chato passar mais de duas horas batalhando arduamente com o cérebro quando o objetivo é se divertir. Não é um filme ruim, apenas bastante complicado.

quarta-feira

GAROTAS DO CALENDÁRIO

GAROTAS DO CALENDÁRIO (Calendar girls, 2003, Touchstone Pictures/Buena Vista Pictures, 108min) Direção: Nigel Cole. Roteiro: Juliette Towhidi, Tim Firth. Fotografia: Ashley Rowe. Montagem: Michael Parker. Música: Patrick Doyle. Figurino: Frances Tempest. Direção de arte/cenários: Martin Childs/Mark Raggett. Produção: Nick Barton, Suzanne Mackie. Elenco: Helen Mirren, Julie Walters, Ciarán Hinds, Celia Imrie, Penelope Wilton, Linda Bassett, John Alderton, Annette Crosbie, Geraldine James, Georgie Glein. Estreia: 09/8/03 (Festival de Locarno)

É impossível não lembrar de "Ou tudo ou nada" quando se assiste à "Garotas do calendário". Assim como na comédia de Peter Cattaneo - que ousou desafiar "Titanic" na corrida ao Oscar 98 -, o filme de Nigel Cole parte de um pressuposto inusitado para falar sobre autoestima, amizade e solidariedade sem nunca apelar para o sentimentalismo óbvio e a caricatura. Ambos os filmes tem o delicioso senso de humor inglês e os dois se subvertem a lei não escrita de que apenas os jovens e belos tem direito a ter orgulho do próprio corpo. Baseado em uma história real, "Garotas do calendário" é um entretenimento de primeira qualidade: divertido, simples, emocionante e repleto de grandes atrizes, lideradas pela sempre ótima Helen Mirren (indicada ao Golden Globe) e Julie Walters. E, mais do que isso, é mais uma prova de que boas histórias são universais mesmo quando parecem falar apenas sobre o próprio quintal - Tolstói sorriria de orelha a orelha.

A trama se passa na pequena cidade de Knapely, localizada emYorkshire, na Inglaterra. É lá, em uma localidade modorrenta e tediosa, que um grupo de mulheres de meia-idade se reúne, religiosamente, para discutir assuntos tão excitantes quanto jardinagem e decoração - além de tomarem parte em concursos de bolos e coisas do tipo. Pouco afeitas a esse marasmo, algumas das integrantes do Instituto Feminino sonham em tomar parte de algo mais divertido e, sem que percebam, logo tem a grande chance de fazer isso acontecer: a morte do marido de Annie Clarke (Julie Walters), vítima de leucemia, dá uma ideia à Chris Harper (Helen Mirren): como forma de arrecadar dinheiro para comprar um sofá para a sala de espera do hospital da cidade, ela sugere que seu grupo pose para um calendário a ser vendido na comunidade. Todas aceitam, até que um detalhe as pega de surpresa: Chris quer que elas posem nuas, em atividades cotidianas. Batendo de frente com a líder do Instituto, a severa Marie (Geraldine James), o grupo aceita o desafio - e suas vidas se transformam em uma roda-viva de compromissos e elogios pelo país inteiro, além de mudarem também seu dia-a-dia familiar e conjugal.


Se Chris, no papel de líder do grupo dissidente, entra em crise em seu casamento com Rod (Ciarán Hinds) e se afasta sem perceber da criação do filho, outras companheiras se descobrem mais femininas e desejáveis, especialmente Ruth (Penelope Wilton), que descobre o relacionamento extraconjugal do marido e o abandona sem maiores dramas. A felicidade e o orgulho, porém, ficam ligeiramente ameaçados quando, descobertas por Hollywood, elas nem se dão conta do afastamento de Chris e Annie - antes melhores amigas inseparáveis, elas veem a fama e o prestígio atrapalhar seu relacionamento, principalmente quando os objetivos do calendário tornam-se diferentes para as duas: enquanto Chris aproveita o momento de celebridade para promovê-lo, Annie prefere responder às cartas enviadas por centenas de mulheres que passaram por seu drama de perder o marido. Tal impasse as coloca em caminhos quase opostos quando precisam desafiar o preconceito e o conservadorismo de seus vizinhos, a princípio chocados com as fotos, mas depois encantados com o resultado inesperado que elas produzem.

Uma história real contada com respeito e sinceridade, "Garotas do calendário" não é um filme perfeito. Sua segunda metade - quando elas passam a experimentar o gostinho da fama - é menos interessante do que sua primeira parte, em que o humor rola solto sempre que as tentativas de fazer as famigeradas fotografias surgem pela frente. Helen Mirren segura com maestria a responsabilidade de liderar um elenco feminino impecável, transitando sem erro entre o drama e a comédia mesmo quando o roteiro nem sempre lhe dá material para isso: o conflito entre as amigas no terço final da narrativa soa um tanto forçado para providenciar o desfecho emocional, mas Mirren e Julie Walters são tão boas que conseguem até disfarçar tal artifício pouco criativo. No final das contas, elas e suas companheiras fazem valer o espetáculo, que transcorre de forma agradável e bem-humorada até o final alto astral. Um excelente feel good movie, com tudo que se pode esperar de uma produção com o DNA britânico.

terça-feira

SOB A SOMBRA

SOB A SOMBRA (Under the shadow, 2016, Wigwam Films, 84min) Direção e roteiro: Babak Anvan. Fotografia: Kit Fraser. Montagem: Christoper Barwell. Música: Gavin Cullen, Will McGillvray. Figurino: Phaedra Dahdaleh. Direção de arte/cenários: Nasser Zoubi/Karim Kheir. Produção executiva: Patrick Fischer, Khaled Haddad, Nick Harbinson, Duncan McWilliam. Produção: Emily Leo, Oliver Roskill, Lucan Toh, Tim Werenko (versão em inglês). Elenco: Narges Rashidi, Avin Manshadi, Bobby Naden, Arash Marandi, Aram Ghasemy. Estreia: 22/01/16 (Festival de Sundance)

Um filme de terror iraniano? Pode parecer estranho que um país com uma tradição de produções tão calcadas no realismo seja capaz de criar algo notável em um gênero cujos principais elementos divergem radicalmente de sua filmografia, mas toda regra tem sua exceção. E nesse caso, a exceção é "Sob a sombra", filme de estreia do jovem Babak Anvari, que concorreu a uma vaga entre os indicados ao Oscar 2017 como representante do Reino Unido. Reino Unido? Explica-se: apesar de passar-se em Teerã, o filme de Anvari é uma coprodução entre o Reino Unido, Catar e Jordânia (onde foi realmente filmado). Isso explica, em parte, sua liberdade em questionar, através da protagonista, Shideh, a posição da mulher no país - em especial no momento em que se passa a trama, logo após a Revolução Islâmica, quando o Irã estava em guerra com o Iraque e bombardeios eram comuns e parte da rotina da população. Relegada à segundo plano na sociedade, sem conseguir nem mesmo retornar aos estudos na Faculdade de Medicina, é ela que, sozinha, tentará salvar a si mesma e à filha pequena de ameaças sobrenaturais que povoam seu prédio - vítima constante de ataques à bomba e gradualmente esvaziado pelo medo dos habitantes. Dotada de grande força e coragem em encarar fatos inexplicáveis, ela mostra que de frágil seu sexo não tem nada - e, de quebra, leva a plateia junto em um pesadelo sutil mas bastante apavorante.

Sem apelar para efeitos visuais mirabolantes, Anvari segue a linha da sugestão, se apoiando basicamente no clima construído pela fotografia e pela trilha sonora, nem sempre deixando óbvio ou previsível o que está por acontecer. Sua concisão é admirável: em menos de 90 minutos ele consegue contar sua história sem torná-la superficial ou simplista. É só depois de dois atos calcados na realidade que ele finalmente começa a apavorar a plateia, a princípio com pequenos acontecimentos estranhos, e depois, conforme Shideh vai ficando sozinha em seu edifício, com sequências de fazer qualquer um pular da poltrona - e o melhor de tudo: com uma discrição ímpar, totalmente amparada nos medos mais primitivos do espectador. Não há sangue, nem mortes violentas, nem assassinos mascarados: em "Sob a sombra" o terror é puramente aquele que todo mundo prefere não lembrar que pode existir de verdade mas nem sempre consegue.


Quando o filme começa, Shideh (a ótima atriz Narges Rashidi) acaba de ver recusada sua tentativa de voltar à faculdade - trancada por ocasião da Revolução. Frustrada, ela não encontra apoio nem do marido, Iraj (Bobby Naderi), que logo em seguida é chamado para trabalhar fora do país, em uma zona de guerra. Vivendo em um prédio frequentemente alvejado por bombardeios, ela se nega a abandonar o apartamento - como fazem todos os seus vizinhos, apavorados com a situação - e resolve permanecer em sua casa, ao lado da filha pequena, Dorsa (Avin Manshadi). Com o tempo, porém, a guerra passa a ser sua menor preocupação: depois de perder sua boneca preferida, Dorsa começa a sofrer de uma febre intermitente e alega ter medo dos djinns (demônios da cultura muçulmana) que estão à sua volta. Informada de que tais demônios se aproveitam do medo e da fragilidade psicológica das pessoas, Shideh se dedica a procurar o brinquedo da filha, cujo desaparecimento é uma evidência a mais da presença do mal. Sozinha, ela lida com o medo do desconhecido e com as possibilidades cada vez maiores de mais bombas caírem em sua cabeça.

"Sob a sombra" é um filme inteligente: não apenas critica a visão da sociedade iraniana sobre a mulher como também consegue ser extremamente eficaz em suas tentativas de imprimir uma atmosfera de tensão e claustrofobia constantes. Com enquadramentos clássicos, Anvari convida o espectador a uma viagem aparentemente banal, mas repleta de pequenos momentos que, juntos, se transformam em uma experiência assustadora. Materializações inesperadas, sons vindos do nada, sensações angustiantes... tudo faz parte da receita criada pelo diretor, que acerta em cheio em não exagerar nada: cada cena, cada sequência, cada diálogo é crucial para a trama e seu desenvolvimento, o que evita tempos mortos e uma profusão de efeitos visuais que apenas enfraqueceria a história. Com doses exatas de cada ingrediente, "Sob a sombra" é uma grata surpresa para aqueles que procuram fugir dos blockbusters hollywoodianos mas ainda não estão preparados para abdicar totalmente de seus elementos. Uma pérola!

segunda-feira

FRAGMENTADO

FRAGMENTADO (Split, 2016, Universal Pictures, 117min) Direção e roteiro: M. Night Shyamalan. Fotografia: Michael Gioulakis. Montagem: Luke Ciarrocchi. Música: West Dylan Thordson. Figurino: Paco Delgado. Direção de arte/cenários: Mara LePere-Schloop/Jennifer Engel,Dennis Madigan. Produção executiva: Kevin Frakes, Buddy Patrick, Ashwin Rajan, Steven Schneider. Produção: Marc Bienstock, Jason Blum, M. Night Shyamalan. Elenco: James McAvoy, Anya Taylor-Joy, Betty Buckley, Haley Lu Richardson, Jessica Sula. Estreia: 26/9/16

Poucos cineastas conheceram o céu e o inferno da indústria hollywoodiana tão de perto quanto M. Night Shyamalan: em 1999, seu "O sexto sentido" tornou-se um dos maiores sucessos de bilheteria da história e lhe rendeu indicações ao Oscar de diretor e roteiro (além de ter concorrido também à estatueta de melhor filme). Tido como uma das maiores promessas para o cinema do século XXI, ele conseguiu o que muitos diretores querem mas demoram anos para conquistar (quando conquistam): controle artístico absoluto de suas obras. Foi assim que construiu uma carreira de personalidade e características próprias, cujos filmes nem sempre confirmavam as expectativas (do público, da crítica e dos estúdios), como "Corpo fechado" (2000), "Sinais" (2002) e "A vila" (2004) . Foi somente a partir de "A dama na água" (2006), porém, que seus detratores finalmente começaram a encontrar motivos para comemorar: fracasso comercial e crítico, o conto de fadas estrelado por Paul Giamatti deu início a uma série de fiascos que, por motivos diversos, transformaram o talentoso diretor em piada no meio cinematográfico. Trabalhando por encomenda em produções fraquíssimas - como "O último mestre do ar" (2010) e "Depois da Terra" (2013), Shyamalan tomou uma decisão acertadíssima: voltou às origens e, sem pretensões, lançou o subestimado "A visita" (2015), que, sem atores conhecidos no elenco e com um orçamento de apenas 5 milhões de dólares, rendeu quase 100 milhões pelo mundo. Com a autoconfiança reestabelecida, ele pode, então, voltar seus olhos a um projeto muito querido: surgia assim "Fragmentado", mais um trabalho feito com trocados (9 milhões de orçamento) e que, graças à propaganda boca-a-boca, não apenas chegou perto de 300 milhões de arrecadação mundial como devolveu ao cineasta o respeito perdido no meio do caminho.

Perto do imenso sucesso de "O sexto sentido", a bilheteria e o impacto de "Fragmentado" pode até parecer discreto, mas pela primeira vez em anos, Shyamalan voltou a ser assunto, comentado e elogiado pelos fãs de cinema, pela imprensa e até mesmo por executivos dos grandes estúdios. E o mais empolgante: fazendo justamente aquilo que sabe fazer de melhor, construindo climas, prendendo o interesse da plateia por seus personagens e manipulando com maestria todos os elementos de um filme de suspense - apenas para entregar, em seus segundos finais, uma surpresa aos antigos entusiastas, um fecho de ouro que amplia o alcance da história e a empurra a direções inimagináveis até então. Mais uma vez evitando o horror explícito e se dedicando a dar consistência à sua narrativa através do cuidado com o roteiro e o elenco escolhido, o cineasta faz um gol de placa ao misturar fatos comprovados cientificamente com uma alta dose de imaginação e tensão.


Novamente a história se passa na Filadélfia, cenário de seus filmes anteriores, e começa com o rapto de três adolescentes, sequestradas no estacionamento de um shopping-center. O raptor, como elas descobrem assim que acordam em um pequeno quarto sem janelas e com isolamento acústico, é o calado Dennis (James McAvoy), um homem quieto, reservado e que, aparentemente tem planos bem específicos para suas reféns. Conforme o tempo vai passando, porém, as meninas descobrem que há algo de muito errado em Dennis: sofrendo de um transtorno que lhe faz ter múltiplas personalidades, ele se apresenta a elas com variadas identidades, que vão desde Hedwig, um menino de nove anos, até Patricia, uma mulher que parece ter uma convivência tranquila com Dennis. Tentando encontrar uma maneira de escapar do cativeiro, a tímida Casey (Anya Taylor-Joy, do sucesso independente "A bruxa") lembra de sua infância, quando aprendia a caçar com seu pai - e faz amizade com Hedwig, acreditando que ele pode ajudá-la. Enquanto isso, outra personalidade do criminoso, Barry, frequenta sessões de terapia com a doutora Karen Fletcher (Betty Buckley), que percebe que algo de muito errado está acontecendo com seu paciente - que tem, na verdade, 23 personalidades dentro dele.

Se o roteiro de "Fragmentado" demonstra o poder de Shyamalan em envolver o público com histórias elaboradas e inteligentes, é preciso aplaudir de pé o trabalho de seu ator principal. Sem medo de cair na caricatura e oferecendo nuances sutis e assustadoras a todos os personagens criados pelo cineasta, o inglês James McAvoy faz um dos melhores trabalhos de sua carreira, já pontuada por grandes atuações, em filmes tão díspares quanto "O último rei da Escócia" (2006), "Desejo e reparação" (2007) e a série "X-Men", onde vive a versão jovem do Professor Xavier. Substituindo Joaquin Phoenix - que já havia trabalhado com o diretor em "Sinais" e "A vila" -, McAvoy engole tudo à sua volta, com uma interpretação impecável que torna críveis até mesmo os momentos mais bizarros da trama. Aposta certeira de Shyamalan, ele foge do óbvio e do exagero na criação de cada uma das personalidades do protagonista, sempre deixando o espectador perceber que existe uma unidade que as interliga. Um dos trabalhos de atuação mais empolgantes da temporada, o desempenho de McAvoy é, juntamente com a coragem do diretor em dar vários passos atrás na carreira para poder retomá-la, o maior e mais recompensador atrativo de "Fragmentado", um suspense de primeira linha - e que termina de forma a deixar qualquer um roendo as unhas de expectativa.

sábado

SANGUE PELA GLÓRIA

SANGUE PELA GLÓRIA (Bleed for this, 2016, Verdi Productions, 117min) Direção: Ben Younger. Roteiro: Ben Younger, estória de Ben Younger, Pippa Bianco, Angelo Pizzo. Fotografia: Larkin Seiple. Montagem: Zachary Stuart-Pontier. Música: Julia Holter. Figurino: Melissa Vargas. Direção de arte/cenários: Kay Lee/Kim Leoleis. Produção executiva: David Gendron, Michael Hansen, Myles Nestel, Joshua Sason, Martin Scorsese, Michelle Verdi, Lisa Wilson. Produção: Bruce Cohen, Noah Kraft, Pamela Thur, Emma Tillinger Koskoff, Chad A. Verdi, Ben Younger. Elenco: Miles Teller, Aaron Eckhart, Ciarán Hinds, Katey Sagal, Ted Levine, Amanda Clayton. Estreia: 02/9/16 (Festival de Teluride)

Em 2005, o diretor Ben Younger lançou a comédia romântica "Terapia do amor", estrelada por Meryl Streep e Uma Thurman - que revelava um senso de humor inteligente e com altas doses de realismo. Demorou, no entanto, mais de dez anos para que o cineasta voltasse para trás das câmeras - e surpreendentemente, com um filme radicalmente diferente do anterior. Uma história real, dramática e inspiradora, "Sangue pela glória" pode não ser exatamente original, revolucionário ou mesmo marcante, mas, realizado pela mísera quantia de seis milhões de dólares e filmado em meros 24 dias (segundo o próprio Younger), é uma produção honesta e simpática, valorizada pela atuação de Miles Teller, um jovem ator em ascensão que demonstra comprometimento e dedicação a cada novo trabalho. Assumindo de corpo e alma o protagonismo de uma história tão inacreditável quanto emocionante, Teller demonstra segurança necessária para tornar críveis mesmo algumas reviravoltas que, em mãos menos competentes, poderiam soar totalmente inverossímeis - apesar de terem realmente acontecido.

Parte de uma série de filmes que inclui os já clássicos "Rocky, um lutador" (1976), "Touro indomável" (1980) e "Menina de ouro" (2004), "Sangue pela glória" nem de longe tenta ser ousado em sua narrativa, seja ela visual ou verbal. O roteiro - escrito pelo próprio diretor - é simples, linear e sem grandes arroubos de criatividade, preferindo manter seu diálogo direto com a plateia ao invés de buscar artifícios modernosos. A edição segue a mesma ideia, assim como a fotografia naturalista, que evita filtros e efeitos para concentrar-se no desenvolvimento da trama: tudo no filme segue a mesma linha de extrema discrição, o que é uma espécie de alento em uma época em que qualquer produção sonha em ser épica. No entanto, essa sutileza em excesso também acaba por prejudicar um pouco o resultado final: por mais talentoso que Teller seja, por mais dramática que seja a história contada, sua conexão sentimental com a plateia não é tão satisfatória quanto poderia: ao abdicar de grandiosidade, Younger também opta por fugir do sentimentalismo - por consequência, impede uma maior empatia do público com seu personagem central.


Vinny Pazienza é um jovem lutador de boxe, talentoso e quase arrogante, que se dedica ao esporte com a mesma intensidade com que costuma apostar em cassinos e desafiar campeões de sua categoria. No auge de sua ascensão profissional, no início da década de 90, ele sofre um violento acidente de carro e, em consequência disso, vê ameaçada até mesmo a possibilidade de voltar a andar. Depois de passar por um doloroso e sacrificante tratamento, porém, Vinny resolve provar a todos que é capaz não apenas de caminhar novamente, mas de voltar aos ringues. Com a ajuda de seu treinador, Kevin Rooney (Aaron Eckhart), o rapaz desafia o próprio destino e surpreende a família, os amigos e o público ao anunciar que está pronto para voltar ao boxe - em uma categoria superior àquela de antes do acidente. Seu pai, Angelo (Ciarán Hinds), a princípio temeroso dos resultados da quase irresponsabilidade do filho, acaba por ser de crucial importância para sua autoconfiança - que inspira todos à sua volta.

Quem assistir à "Sangue pela glória" procurando por um grande filme, inesquecível e intenso, certamente irá se decepcionar, uma vez que o roteiro apresenta todos os clichês possíveis do gênero (herói sofredor que dá a volta por cima, o treinamento desgastante, o treinador compreensivo, o clímax final). Porém, quem buscar um entretenimento rápido e competente dentro de suas limitações, irá encontrar nele uma pequena pérola. Miles Teller tem carisma o bastante para conquistar o espectador, Aaron Eckhart está irreconhecível como Rooney, as cenas de luta são dirigidas com cuidado e em nenhum momento a narrativa escorrega no piegas. Não é um marco do cinema, mas tampouco uma produção frouxa e desinteressante: é um daqueles filmes que passam rápido, mas que também desaparecem rapidamente da memória. Mas vale pela volta de Younger, um talento a ser desenvolvido.

sexta-feira

O REGRESSO

O REGRESSO (The revenant, 2015, Regency Enterprises, 156min) Direção: Alejandro González Iñárritu. Roteiro: Mark L. Smith, Alejandro González Iñárritu, livro de Michael Punke. Fotografia: Emmanuel Lubezki. Montagem: Stephen Mirrione. Música: Alva Noto, Ryuichi Sakamoto. Figurino: Jacqueline West. Direção de arte/cenários: Jack Fisk/Beauchamp Fontaine, Hamish Purdy. Produção executiva: Markus Barmettler, Jennifer Davisson, David Kanter, Philip Lee, Jake Myers, James Packer, Brett Ratner. Produção: Steve Golin, Alejandro González Iñárritu, Arnon Milchan, Mary Parent, Keith Redmon, James W. Skotchdopole. Elenco: Leonardo DiCaprio, Tom Hardy, Domnhall Gleeson, Lukas Haas, Thomas Guiry, Will Poulter, Forrestt Goodluck, Kristoffer Joner. Estreia: 16/12/15

12 indicações ao Oscar: Melhor Filme, Diretor (Alejandro G. Iñárritu), Ator (Leonardo DiCaprio), Ator Coadjuvante (Tom Hardy), Fotografia, Montagem, Figurino, Direção de Arte/Cenários, Maquiagem, Efeitos Visuais, Edição de Som, Mixagem de Som
Vencedor de 3 Oscar: Diretor (Alejandro G. Iñárritu), Ator (Leonardo DiCaprio), Fotografia
Vencedor de 3 Golden Globes: Melhor Filme (Drama), Diretor (Alejandro G. Iñárritu), Ator/Drama (Leonardo DiCaprio) 

As três estatuetas conquistadas por "O regresso" na cerimônia do Oscar 2016 são marcantes por si mesmas: Leonardo DiCaprio finalmente saiu-se vitorioso, para alívio dos fãs que clamavam por isso no mínimo desde "Titanic" (1997); Alejandro G. Iñárritu levou seu segundo prêmio consecutivo de diretor (depois do exótico "Birdman"); e Emmanuel Lubezki tornou-se a primeira pessoa a acumular três Oscar seguidos de fotografia. Mas, apesar de todas essas curiosidades, é preciso dizer que elas apenas refletem o que fica claro ao término de uma sessão: mais do que a epopeia de um homem em busca de sobrevivência e vingança e mais do que um filme feito com a intenção de arrebatar o Oscar, "O regresso" é a comprovação da tenacidade, da versatilidade e do talento de Iñárritu como homem de cinema. Completamente diferente de todos os seus filmes até então - boa parte deles ainda na fase de colaboração com o roteirista Guillermo Arriaga - e muito mais ambicioso do que eles, sua odisséia de som e fúria é uma impressionante tour de force, valorizada pelo trabalho irretocável de DiCaprio, por um visual estonteante e uma história quase inacreditável - mas que, por incrível que pareça, foi inspirada em fatos reais.

Contada no livro de Michael Punke (publicado no Brasil pela editora Intrínseca à época da estreia do filme no país), "O regresso" chegou aos cinemas com algumas alterações cruciais em relação à obra original, compreensíveis do ponto de vista narrativo - e de certa forma mais empolgantes do que seriam caso houvesse fidelidade total. A maior diferença entre livro (e realidade) e filme é a criação de Hawk (Forrest Goodluck), filho do protagonista Hugh Glass com uma índia e motivo de suas desavenças com parte de seu grupo de comerciante de peles, pouco afeitos à miscigenação racial: é a morte de Hawk que, no filme, empurra Glass em direção à vingança, sentimento que o mantém vivo apesar da série de acontecimentos trágicos pelos quais ele passa. Na verdade, não há nenhum registro de que Glass tenha sequer se casado, especialmente com uma indígena, apesar de proceder o fato principal da história: ele realmente foi deixado à própria sorte por seus companheiros depois de quase morrer atacado por um urso - e realmente foi atrás dos responsáveis por isso, enfrentando desafios impensáveis em um inverno particularmente gelado no ano de 1823. Para retratar a natureza em toda a sua magnitude (assim como sua violência involuntária), Iñárritu e Emmanuel Lubezki resolveram usar a luz natural o máximo possível - o resultado é deslumbrante, mas em compensação, tal capricho arrastou as filmagens por um período extremamente longo de nove meses, entre o Canadá e o sul da Argentina, e inchou o orçamento inicial (de 60 milhões de dólares) para 135 milhões, recuperados graças ao sucesso de bilheteria - quase surpreendente em se tratando de um filme razoavelmente difícil de vender - pelo mundo todo.


Seu sucesso comercial, no entanto (mais de 500 milhões arrecadados no total), deve-se, em grande parte, à presença de Leonardo DiCaprio, um ator tão talentoso quanto popular - e bastante inteligente na hora de escolher seus projetos. Para encarar as difíceis filmagens de "O regresso", que o esgotaram fisicamente e o obrigaram inclusive a sair de sua dieta vegetariana para encarar um pedaço de carne crua, o ator abriu mão de estrelar "Steve Jobs", dirigido por Danny Boyle: o papel ficou com Michael Fassbender, que, por ironia, disputou a estatueta da Academia com o próprio DiCaprio. Para ter DiCaprio em seu filme, Iñárritu também fez sacrifícios (ainda que muito bem recompensados): adiou o início da produção para que seu protagonista filmasse "O lobo de Wall Street" (2013) e realizou seu "Birdman" (2014), que lhe rendeu os Oscar de filme, direção e roteiro original. Comparado com a grandiosidade de "O regresso", a história do ator de cinema que busca a redenção artística produzindo teatro sério é quase minimalista: em nenhum momento de sua carreira até então o cineasta mexicano havia demonstrado uma pretensão artística tão grande, apesar da complexidade narrativa de alguns de seus trabalhos anteriores, como "Amores brutos" (2000), "21 gramas" (2003) e "Babel" (2006), todos em parceira com Arriaga. O fim de sua colaboração é sentida em "O regresso" - apesar de ser um filme de encher os olhos e prender a atenção até o final, falta a ele um elemento crucial: um roteiro mais coeso e claro (fato evidente por sua ausência na generosa lista de 12 indicações à estatueta dourada). É, por vezes, difícil acompanhar a história, contada em três linhas narrativas paralelas: nunca fica claro, por exemplo, os motivos das brigas entre índios e brancos, e tampouco as brigas dos indígenas entre si. É louvável que Iñárritu não coloque os índios como vilões sanguinários, mas sempre que o foco se desvia de Glass para as desavenças internas das tribos inimigas o filme perde força e ritmo.

Felizmente isso acontece poucas vezes, já que a trama é centrada basicamente em Hugh Glass: parte integrante de um grupo de comerciantes de peles animais no início do século XIV, ele é brutalmente atacado por um urso, que o deixa à beira da morte. Sem condições de carregá-lo de volta para casa, seu capitão, Andrew Henry (Domhnall Gleeson), propõe a três de seus homens que fiquem encarregados de cuidar dele - e dar-lhe um enterro digno quando chegar a hora. Os três homens que se dispõem a isso são o filho de Glass (o mestiço Hawk), o jovem Jim Bridger (Will Poulter) e o ambicioso John Fitzgerald (Tom Hardy) - o único dos três a aceitar a missão puramente por dinheiro. Não demora muito, porém, para que Fitzgerald seja flagrado por Hawk tentando matar Glass e o resultado é trágico: o rapaz é assassinado diante dos olhos do pai, que é enterrado vivo por Fitzgerald, que mente à Bridger a respeito de sua morte. Surpreendentemente vivo - depois de violentamente ferido pelo urso e esfaqueado por seu novo inimigo - Glass encontra forças para sair de sua cova e partir em busca de revanche, enquanto um grupo de índios Arikara procura a filha de seu chefe, sequestrada por um homem branco.

Iñárritu não poupa a plateia de sequências de tirar o fôlego - seja pela beleza natural dos cenários, magistralmente fotografados, seja pela violência extrema de algumas cenas. Amparado por uma atuação devastadora de Leonardo DiCaprio e um Tom Hardy assustador roubando todas as cenas em que aparece - sua indicação ao Oscar de coadjuvante foi absolutamente merecida -, "O regresso" é um filme empolgante, apesar de sua duração excessiva (provavelmente oriunda de seu desejo óbvio de ser um grande épico) que o torna um tanto cansativo, e de sua falha em criar uma conexão mais sólida entre o protagonista e o público: o diretor está tão interessado em mostrar que é capaz de provocar espanto com seu visual que deixa de lado o desenvolvimento dos personagens. Um pecado que até pode não incomodar àqueles que se deixam deslumbrar pelas belas imagens, mas que o impede de ser ainda maior. Ainda assim é um ponto alto na carreira de todos os envolvidos.

quinta-feira

PONTE DOS ESPIÕES

PONTE DOS ESPIÕES (Bridge of spies, 2015, DreamWorks/Fox 2000 Pictures/Relliance Entertainnment, 142min) Direção: Steven Spielberg. Roteiro: Matt Charman, Ethan Coen, Joel Coen. Fotografia: Janusz Kaminski. Montagem: Michel Kahn. Música: Thomas Newman. Figurino: Kasia Walicka Maimone. Direção de arte/cenários: Adam Stockhausen/Rena DeAngelo, Bernhard Heinrich. Produção executiva: Jonathan King, Daniel Lupi, Jeff Skoll, Adam Somner. Produção: Kristie Macosko Krieger, Marc Platt, Steven Spielberg. Elenco: Tom Hanks, Mark Rylance, Amy Ryan, Alan Alda, Austin Stowell, Jesse Plemmons. Estreia: 04/10/15 (Festival de Nova York)

6 indicações ao Oscar: Melhor Filme, Ator Coadjuvante (Mark Rylance), Roteiro Original, Trilha Sonora Original, Direção de Arte/Cenários, Edição de Som
Vencedor do Oscar de Ator Coadjuvante (Mark Rylance) 

Exatos dez anos separaram "Munique" e "Ponte dos espiões", e nesse meio-tempo, seu diretor Steven Spielberg retomou as rédeas de um de seus personagens mais famosos - em "Indiana Jones e o Reino da Caveira de Cristal" (2008) -, realizou o sonho de dirigir uma aventura baseada em um clássico dos quadrinhos - "As aventuras de Tintim" (2011) - e viu dois filmes seus indicados ao Oscar principal - "Cavalo de guerra" (2011) e "Lincoln" (2012). Nenhum desses filmes, porém, por mais qualidades que possam vir a ter, chegou perto de refletir o enorme talento do cineasta mais popular do mundo, um homem capaz de entreter as massas com produções descompromissadas e entregar às plateias mais exigentes obras de extrema competência técnica e narrativa. Foi assim com "Munique" - um de seus melhores trabalhos - e é assim também com "Ponte dos espiões". Daí a comparação: ambos são filmes que equilibram um senso de ritmo e tensão constante com personagens complexos e histórias reais. Não à toa, nenhum deles foi campeão de bilheteria nos EUA: mesmo com o nome do cineasta e o rosto de Tom Hanks no cartaz, "Ponte dos espiões" mal passou dos 70 milhões de dólares de arrecadação doméstica, o que de forma alguma traduz a excelência de sua realização. Sério - mas dotado de um sutil senso de humor - e impecavelmente produzido, é um dos melhores filmes da carreira de Spielberg e um ponto alto de sua colaboração com Hanks, que já contava com os sensacionais "O resgate do soldado Ryan" (1998) e "Prenda-me se for capaz" (2002) e o apenas razoável "O terminal" (2004).

Uma história real quase inacreditável, "Ponte dos espiões" surgiu quase por acaso: lendo uma biografia de JFK, o roteirista Matt Charman ficou intrigado com o fato do então presidente americano ter buscado a ajuda de um advogado tributarista, James Donovan, para negociar a libertação de mais de 1000 prisioneiros após o malfadado episódio da Baía de Porcos, em Cuba. Buscando saber mais a respeito de Donovan, Charman deparou-se com um episódio pouco conhecido - mas muito empolgante do ponto de vista narrativo - da história da Guerra Fria, que envolvia o advogado e uma troca de prisioneiros entre EUA, União Soviética e Alemanha Oriental. Empolgado com a possibilidade de contar tal história no cinema, apresentou um projeto na DreamWorks e teve mais sorte do que Peter Ustinov e Gregory Peck, que tentaram uma adaptação em 1965 pela MGM e fracassaram (em parte porque ainda era muito cedo para tratar do assunto): o projeto parou nas mãos de ninguém menos que Steven Spielberg, que não demorou em assumir o controle da situação. Com o roteiro de Charman pronto, o cineasta chamou os irmãos Joel e Ethan Coen - diretores premiados com o Oscar por "Onde os fracos não tem vez" (2007) - para dar mais consistência ao protagonista e inserir um pouco do senso de ironia característico da dupla. Com Janusz Kaminski na fotografia e Michael Kahn na edição, apenas sua colaboração com o veterano compositor John Williams não seria possível (por problemas de saúde do músico) se repetir: Thomas Newman foi chamado e tornou-se parte de uma equipe primorosa e homogênea, que criou um filme no mínimo fascinante!


A trama começa em 1957, com a prisão de Rudolf Abel (Mark Rylance) pelo FBI: acusado de ser um espião soviético, o discreto e introvertido pintor é capturado depois de uma longa caçada. Para que não possa ser acusado de imparcialidade, o governo americano chama o advogado James B. Donovan (Tom Hanks) - que trabalhou nos julgamentos de guerra em Nuremberg - para defendê-lo. A princípio hesitante em aceitar o caso (por saber o quão delicado seria defender um "inimigo do país"), Donovan acaba por aceitar a missão e, mais do que isso, dedicar-se com fervor a ela, para desgosto de seus empregadores - que não tem grande interesse em absolvê-lo. Mesmo contra todas as probabilidades, Abel escapa da pena de morte graças à intervenção de seu advogado, que, profeticamente, imagina um cenário em que os EUA poderiam precisar do espião para trocar por algum soldado americano. Suas palavras se tornam realidade quando o piloto Francis Gary Powers (Austin Stowell) tem seu avião abatido durante um voo em busca de informações fotográficas e ele se vê preso pelos russos - e, na Alemanha Ocidental, o estudante Fredric Pryor (Will Rogers) é detido mesmo depois de identificar-se como apenas um estudante. Escalado para servir como negociador de uma troca entre Abel e Powers, o idealista advogado decide que, uma vez que não está oficialmente representando o governo, só irá levar a situação adiante se puder levar embora os dois prisioneiros americanos.

Com uma medida exata de suspense, humor negro (a burocracia a qual Donovan é submetido é quase kafkiana) e drama, "Ponte dos espiões" acerta em todos os alvos - ainda que seu patriotismo fique um tanto deslocado no final, uma característica de que o cinema de Spielberg não consegue abrir mão. Tom Hanks mais uma vez prova que é um ator de muitas nuances e lidera o elenco com força e generosidade, e Mark Rylance brilha em cada cena - seu Oscar de ator coadjuvante, inesperado contra o favorito Sylvester Stallone, por "Creed: nascido para lutar", foi absolutamente merecido. A fotografia sóbria e elegante de Janusz Kaminski é absolutamente eficaz, acompanhando com belas imagens a transposição visual da trama, cuidadosamente retratada em uma reconstituição de época de encher os olhos. Spielberg ainda dá espaço para seu característico ufanismo - forçando uma comparação entre a rígida Alemanha e seu democrático país através do olhar patriota de James Donovan - mas seu respeito pela história e pelo público impede que o filme resvale para o piegas. Um dos cineastas mais conscientes do poder das imagens para uma narrativa, Spielberg dá uma aula em cada cena, entregando um resultado final ao qual se é impossível ficar incólume. Cinema com letra maiúscula, "Ponte dos espiões" é mais uma obra-prima de uma carreira repleta delas. Que não demore mais dez anos para surgir outra!

VAMPIROS DO DESERTO

VAMPIROS DO DESERTO (The forsaken, 2001, Screen Gems/Sandstorm Films, 90min) Direção e roteiro: J. S. Cardone. Fotografia: Steven Bernstein...