quinta-feira

O PENTELHO


O PENTELHO (The cable guy, 1996, Columbia Pictures, 96min) Direção: Ben Stiller. Roteiro: Lou Holt Jr.. Fotografia: Robert Brinkmann. Montagem: Steven Waisberg. Música: John Ottman. Figurino: Erica Edell Phillips. Direção de arte/cenários: Sharon Seymour/Maggie Martin. Produção executiva: Bernie Brillstein, Brad Grey, Marc Gurvitz. Produção: Judd Apatow, Andrew Licht, Jeffrey A. Mueller. Elenco: Jim Carrey, Matthew Broderick, Leslie Mann, Jack Black, Ben Stiller, Owen Wilson, George Segal, Diane Baker, Bob Odenkirk, Janeane Garofalo. Estreia: 10/6/96

Quando "O pentelho" estreou, no verão norte-americano de 1996, a carreira e o potencial comercial de Jim Carrey estavam em jogo. Não apenas o ator canadense teria que provar ser mais do que apenas um humorista cujo humor físico agradava ao público mas constrangia a crítica, mas também precisaria provar à indústria de que seu astronômico salário de 20 milhões de dólares (um recorde absoluto na época) não era um exagero irresponsável da Columbia Pictures. O resultado nas bilheterias, se não foi o sucesso esperado por aqueles que testemunharam a ascensão meteórica do astro - a soma da renda de seus dois "Ace Ventura" e de "O máskara" ultrapassava 500 milhões de dólares, sem contar os números de "Batman eternamente" (1995), uma máquina de fazer dinheiro que nem mesmo o massacre da crítica pode atrapalhar -, ao menos não decepcionou completamente. Apesar de constar na história como um fracasso, o filme dirigido por Ben Stiller não fez tão feio quanto fizeram crer os analistas: com mais de 100 milhões arrecadados ao redor do mundo, "O pentelho" pode não ter sido o arrasa-quarteirão que era previsto, mas ficou longe de ser um fiasco. Mais importante ainda: ao contrário de muitas críticas negativas, é uma produção com muito mais qualidades do que defeitos.

Lançado como o filme que mostraria um lado novo de Carrey - que já demonstrava interesse em fugir dos papéis de palhaço que lhe deram fama e dinheiro -, "O pentelho" seria, a princípio, um veículo para o estrelato de Chris Farley. Com a saída de Farley do projeto, por compromissos com a Paramount, o roteiro de Lou Holt Jr., comprado pela Columbia Pictures por um milhão de dólares, ficou à deriva, à procura de um novo astro. Nomes como os de Robin Williams, Adam Sandler e Paul Giamatti chegaram a ser considerados, até que, alterando substancialmente as ambições da produção, Carrey entrou na jogada. Sequioso por dar um novo rumo à carreira e emprestar credibilidade a uma trajetória que corria o sério risco de um desgaste iminente, o ator agarrou com unhas e dentes a possibilidade de deixar de lado seus personagens bobalhões e assumir uma persona mais sombria. Sua chegada ao grupo alterou também outros fatores: o roteiro de Holt Jr. passou a ser reescrito por Judd Apatow (que acabou não creditado, por regras do sindicato) e o que seria apenas uma comédia sobre a amizade bizarra entre dois homens virou um filme que flerta abertamente com o suspense - ainda que não tenha a coragem de ir até as últimas consequências principalmente por suas ambições comerciais junto ao público fiel de seu ator central.


 

Na verdade, apesar de viver um protagonista mais complexo do que em seus filmes anteriores, Carrey não chega a abandonar de vez seus trejeitos histriônicos em "O pentelho", mesmo que os equilibre com momentos mais discretos. A trama tem início com a separação do jovem executivo Steven Kovacs (Matthew Broderick), que, voltando a morar sozinho, contrata um serviço de televisão a cabo para ocupar suas noites solitárias. Quem aparece para a instalação é Chip (Jim Carrey), um rapaz um tanto estranho que, confundindo a atenção do novo cliente por um desejo de amizade, passa a perseguí-lo sem folga. A princípio aceitando a atenção de Chip, o tímido Steven logo passa a sentir-se incomodado com a obsessão do novo amigo. Quando resolve impor limites à relação, acaba por despertar um lado perigoso do instalador, que começa a utilizar-se de todas as suas forças para destruir sua vida, incluindo as chances de uma reconciliação com a ex-namorada, Robin (Leslie Mann).

Sob a direção acertadamente claustrofóbica de Ben Stiller - que dá as caras no filme em uma subtrama veiculada na televisão, sobre um homicídio entre irmãos gêmeos -, Jim Carrey dá, em "O pentelho", os primeiros passos em direção a uma carreira de ator sério, que culminaria em performances precisas em "O show de Truman: o show da vida" (1998), "O mundo de Andy" (1999) e "Brilho eterno de uma mente sem lembranças" (2004). Extremamente à vontade em cena, o astro mescla momentos de seu humor físico inconfundível com sequências onde exercita um lado dramático (ainda) um tanto exagerado. Seu colega de cena, Matthew Broderick (que recebeu um salário de apenas um milhão de dólares), está constrangido na medida certa, oferecendo uma contraparte adequada aos quase excessos de Carrey, mas é inegável que, ao alterar o roteiro original, a produção não consegue esconder certa irregularidade em sua segunda metade. Com um ritmo instável e algumas sequências arrastadas, "O pentelho" é nitidamente um degrau acima das bobagens até então estreladas por Carrey, mas sofre com sua indecisão entre uma comédia rasgada e um suspense com toques cômicos. Pode não ter sido o fracasso que foi alardeado por Hollywood - onde muita gente torcia pela queda do ator, não exatamente fácil de lidar -, mas tampouco é a obra marcante que poderia ter sido. Pode-se dizer, sem medo, que foi o primeiro capítulo de uma fase menos comercial e mais artística de sua trajetória - ainda que, em 1999, ele tenha voltado um pouco às origens com o sucesso de "O mentiroso", menos ousado mas bem mais regular.

segunda-feira

DUPLEX


DUPLEX (Duplex, 2003, Miramax/Buena Vista Pictures, 89min) Direção: Danny DeVito. Roteiro: Larry Doyle. Fotografia: Anastas Michos. Montagem: Greg Hayden, Lynzee Klingman. Música: David Newman. Figurino: Joseph G. Aulisi. Direção de arte/cenários: Stephen Alesch/Robin Stafender. Produção executiva: Alan C. Blomquist, Richard N. Gladstein, Meryl Poster, Jennifer Wachtell, Bob Weinstein, Harvey Weinstein. Produção: Drew Barrymore, Stuart Cornfeld, Nancy Juvonen, Jeremy Kramer, Ben Stiller. Elenco: Ben Stiller, Drew Barrymore, Eileen Essell, Harvey Fierstein, Maya Rudolph, Justin Theroux, Wallace Shawn, James Remar, Robert Wisdom, Swoosie Kurtz. Estreia: 26/9/2003

O primeiro longa-metragem de Danny DeVito como diretor, "Joga a mamãe do trem" (1987), já traía sua visão bastante particular de comédia, extraída de situações corriqueiras mas com os dois pés fincados em um tom sombrio e ácido. No filme, ele mesmo interpretava um aspirante a escritor que tentava convencer seu professor de escrita criativa a matar sua mãe autoritária - em troca dele mesmo assassinar a ex-esposa traidora do autor, como em "Pacto sinistro" (1951). Em seu trabalho seguinte atrás das câmeras, "A guerra dos Roses" (1989), um casal em processo de divórcio usava dos mais sórdidos artifícios para ficar com a posse da mansão que dividiam - mesmo que isso significasse sua destruição. "Duplex", lançado em 2003, confirmava a tendência de DeVito em rir de situações sérias e criticar, sem muita sutileza, o verniz que separa a civilização da barbárie. Ao contrapor um jovem casal em busca de um lar para chamar de seu e uma idosa aparentemente dócil que os separa da realização de seu sonho, a comédia estrelada por Ben Stiller e Drew Barrymore substitui a gargalhada óbvia pelo riso nervoso - opção inteligente que talvez explique sua decepcionante recepção comercial.

 

Com uma renda mundial que não chegou a cobrir nem mesmo a metade de seu orçamento, estimado em 40 milhões de dólares, "Duplex" provavelmente esbarrou na resistência do público em abraçar comédias que ousam fugir do esperado binômio pastelão/sofisticação. Situado em um meio-termo arriscado entre irmãos Farrelly e Woody Allen, o filme de DeVito aposta em personagens de caráter dúbio (ainda que facilmente adoráveis e de fácil empatia) e sequências de humor físico que deveriam dialogar diretamente com uma plateia ávida por risadas fáceis - mas que, por algum motivo, a afugentaram. O fraco resultado financeiro do filme, no entanto, não reflete sua qualidade. Assim como várias produções acima da média que naufragaram sem maior explicação, "Duplex" é um produto destinado a tornar-se cult. Talvez uma daquelas sessões da tarde queridas, com um público cativo e fiel, sempre disposto a rir das desventuras de um dos casais mais azarados de Nova York.

Alex Rose (Ben Stiller) e Nancy Kendricks (Drew Barrymore) são jovens, apaixonados, felizes e no caminho para se tornarem bem-sucedidos profissionais. Ela trabalha em uma revista e tem ambições de ascender na carreira, e ele é um escritor em vias de entregar seu segundo livro - apesar do atraso considerável no cronograma especificado no contrato. Depois de muito procurarem um lar para chamar de seu, os dois pombinhos mal podem acreditar na sorte grande quando surge, diante de seus olhos, a oportunidade de comprar um espaçoso duplex no Brooklyn - a um preço atrativo, ainda que apertado dentro de suas condições financeiras. Apaixonados pelo apartamento, os dois resolvem investir suas economias na compra do imóvel, mesmo sabendo que o andar superior do imóvel está ocupado. A inquilina é uma senhora idosa chamada Miss Connelly (Eileen Essell), solitária, doce e de saúde frágil. Alex e Nancy tem certeza de que não irá demorar para que sua vizinha morra e eles possam finalmente tomar posse de todo o seu duplex - mas as coisas não são como parecem. A dócil velhinha logo se transforma em uma enorme pedra no sapato do casal: espaçosa, cínica e irascível, ela não hesita em utilizar-se de sua imagem meiga para esconder uma personalidade insuportável. Sem ter a quem recorrer, Alex e Nancy chegam à conclusão de que a única maneira que eles tem de se livrar de seu pesadelo é apressando sua morte.

Assim como em seus filmes anteriores, Danny DeVito leva seus personagens ao limite do eticamente aceitável, transformando cidadãos normais e pacíficos em potenciais homicidas. Ao contrário de fazer disso um discurso pessimista sobre a maldade intrínseca do ser humano, porém, ele o faz com humor e leveza. Alex e Nancy não são pessoas ruins - o que não pode ser dito a respeito da respeitável anciã que os tira do sério -, e não é difícil simpatizar com eles e (pasmem!) torcer para que seus planos mirabolantes deem certo. Completamente inaptos para o crime, Alex e Nancy são mais vítimas do que assassinos (ou pretensos assassinos) e, dona de um talento inesgotável para transformar a vida dos vizinhos em um inferno na Terra, Miss Connelly passa rapidamente da condição de velhinha indefesa a alguém capaz de tirar a paciência do mais pacífico cidadão. Criando maneiras surpreendentes de tentativas de homicídio, o roteiro de Larry Doyle brinca sem medo com uma completa inversão de expectativas, e encontra em Ben Stiller, Drew Barrymore e Eileen Essell os intérpretes ideais de sua imaginação fértil - e seu casamento com a direção debochada de DeVito resulta em um filme cujo humor inteligente infelizmente não encontrou seu público. Talvez pelo tema, talvez pelo tom sombrio, a plateia ignorou "Duplex" no cinema - e acabou privada de uma das comédias mais ousadas e divertidas da temporada.

quinta-feira

BUSCA FRENÉTICA


BUSCA FRENÉTICA (Frantic, 1988, Warner Bros, 120min) Direção: Roman Polanski. Roteiro: Roman Polanski, Gérard Brach. Fotografia: Witold Sobocinski. Montagem: Sam O'Steen. Música: Ennio Morricone. Figurino: Anthony Powell. Direção de arte/cenários: Pierre Guffroy. Produção: Tim Hampton, Thom Mount. Elenco: Harrison Ford, Emmanuelle Seigner, Betty Buckley, John Mahoney, Gérard Klein. Estreia: 19/02/88

Nada como, depois de um fracasso de proporções homéricas, voltar às origens para recuperar, se não o caminho das bilheteria, ao menos boa parte do prestígio acumulado em décadas de sucesso. Dois anos depois do fiasco irrecuperável de "Piratas" (1986) - que custou cerca de 40 milhões de dólares e rendeu menos de dois ao redor do mundo -, a carreira de Roman Polanski precisava urgentemente de um filme que resgatasse o respeito da crítica e relembrasse ao público o cineasta por trás de obras impecáveis como "O bebê de Rosemary" (1968) e "Chinatown" (1974). Nada mais natural, então, do que recorrer ao gênero que fez dele um dos mais importantes realizadores europeus de sua geração: de volta à Paris onde filmou seu clássico "O inquilino" (1976) e munido de intenções hitchcockianas, Polanski atingiu parte de seus objetivos. Apesar de não ter se tornado o grande êxito comercial esperado pela Warner Bros, sua primeira colaboração com a futura mulher Emmanuelle Seigner (com quem se casaria em agosto de 1989) o reconciliou com a maioria da crítica e mostrou que abandonar a grandiosidade e abraçar o minimalismo foi sua melhor opção.

Não é preciso ser graduado em Cinema para perceber que a inspiração de "Busca frenética"" - em termos temáticos e visuais - é o mestre do suspense Alfred Hitchcock. Com uma trama que remete diretamente a "A dama oculta" (1938), sequências que homenageiam obras como "Janela indiscreta" (1953) e a indefectível loura misteriosa que foi marca registrada de boa parte de sua filmografia , o filme de Polanski recorre até mesmo a um dos truques preferidos do cineasta britânico: o infame mcguffin - aqui representado por um artefato capaz de detonar armas nucleares (!!). Tal artifício até chega a incomodar de tão pueril, mas é fato que, até que se descubra os motivos por trás do desaparecimento da esposa do protagonista (interpretado por um apático Harrison Ford, provavelmente responsável por boa parte da repercussão popular do filme), a produção envolve e intriga na medida certa, aproveitando as ruas escuras de uma Paris bem menos acolhedora do que nos cartões postais mas charmosa o bastante para desfilar com beleza pelas lentes da fotografia do veterano polonês Witold Sobocinski - colaborador de nomes como Andrzej Wajda e Krysztof Zanussi. Percorrendo becos inferninhos, a câmera nervosa de Sobocinski mergulha o público em uma trama onde tudo parece perigoso e todos parecem suspeitos de algum crime inconfessável.

 

A trama começa com a chegada de Richard Walker (Harrison Ford) à Paris. Acompanhado da mulher, Sondra (Betty Buckley), ele está na capital francesa para uma conferência profissional, mas o casal tem também a intenção de reviver os bons momentos que passaram na cidade em sua lua-de-mel. Seus planos começam a dar errado quando Sondra simplesmente desaparece do quarto de hotel enquanto o marido está no chuveiro. Completamente perdido - não sabe falar francês e não tem a menor ideia do que pode ter acontecido com a esposa -, Walker tampouco recebe ajuda das autoridades locais, pouco interessadas em sua história. Depois de tentativas quase infrutíferas de investigar por conta própria, o médico descobre que o sumiço de Sondra está ligado a uma troca de malas ocorrida ainda no aeroporto - e tal descoberta o leva até Michelle (Emmanuelle Seigner), uma bela jovem que pode estar de posse do objeto procurado pelos sequestradores, que tem ligações com um grupo com intenções de controlar armas nucleares. Juntos, Walker e Michelle partem em busca de uma forma de resgatar Sondra e evitar uma tragédia maior, já que a polícia aparenta estar mais preocupada em desbaratar a quadrilha do que manter a mulher do médico viva.

A trama rocambolesca e com ares de aventura obsoleta de James Bond é o calcanhar de Aquiles de "Busca frenética". Roman Polanski é um diretor com o dom de buscar sempre ângulos desconfortáveis e criativos para enfatizar suas ideias frequentemente claustrofóbicas, mas acaba tropeçando em um roteiro - coescrito com o parceiro Gérard Brach - frequentemente confuso e sem foco bem definido. A presença de Emmanuelle Seigner soa gratuita a maior parte do tempo e a atuação de Harrison Ford, morna e indiferente, prejudica a empatia com seu personagem - que foi cogitado para cair nas mãos de Nick Nolte, William Hurt e Kevin Costner. Salva-se a primeira metade, intrigante, algumas sequências interessantes e até mesmo a presença magnética de Seigner. No mais, é um Polanski mais palatável ao gosto médio (ou seja sem maior personalidade) e menos marcante. Um supercine de luxo!!

quarta-feira

LOUCAMENTE APAIXONADOS


LOUCAMENTE APAIXONADOS (Like crazy, 2011, Paramout Vantage, 89min) Direção: Drake Doremus. Roteiro: Drake Doremus, Ben York Jones. Fotografia: John Guleserian. Montagem: Jonathan Alberts. Música: Dustin O'Halloran. Figurino: Mairi Chisholm. Direção de arte/cenários: Katie Byron/Rachel Ferrara. Produção executiva: Steven Rales, Mark Roybal, Audrey Wilf, Zygi Wilf. Produção: Jonathan Schwartz, Andrea Sperling. Elenco: Anton Yelchin, Felicity Jones, Jennifer Lawrence, Charlie Bewley, Alex Kingston, Oliver Muirhead, Chris Messina. Estreia: 22/01/2011 (Festival de Sundance)

Anna Gardner é uma jovem britânica que está em Los Angeles estudando Jornalismo. Jacob Helm sonha em fazer carreira como desenhista de móveis. Os dois se apaixonam perdidamente e fazem planos de passar o resto da vida juntos. Decidida a permanecer ao lado do namorado por mais tempo que o permitido em seu visto, Anna acaba por ver-se proibida de voltar aos EUA e retomar a relação. Desesperados com a situação, os namorados resolvem manter o relacionamento mesmo à distância, enquanto tentam resolver a questão. Todas as alternativas, no entanto, soam inadequadas: ele está começando uma bem estruturada carreira profissional e não vê sentido mudar de país, e um casamento (que pode dar um green card a ela) parece algo radical demais - e tampouco é garantia de sucesso, uma vez que o processo na imigração não é tão simples. Nesse meio-tempo, depois de uma breve separação, eles se envolvem com outras pessoas, mas não conseguem esquecer a força de seus sentimentos.

Com essa trama simples e direta, que fala direto ao coração do público, o cineasta Drake Doremus fez de "Loucamente apaixonados" um dos maiores sucessos do cinema independente de 2011: de sua estreia, em Sundance (de onde saiu com dois prêmios) até o lançamento comercial, aproximadamente um ano mais tarde, o filme foi exibido em festivais pelo mundo (Toronto, Vancouver, San Diego, Austin, Amsterdam, Montreal, Estocolmo, Oslo) e conquistou a crítica com sua delicadeza e energia juvenil e romântica. Longe de ter se tornado um campeão de bilheteria - ao menos dentro do conceito de lotar salas de exibição e formar filas quilométricas - e ignorado por cerimônias de premiação mais tradicionais (Oscar, Golden Globe, SAG Awards), o filme de Doremus cativa justamente por fugir das receitas mais óbvias de sucesso comercial e abraçar uma estética mais livre de amarras ao mesmo tempo em que permite ao espectador reconhecer nas telas todos os elementos que fazem do gênero um dos mais populares do cinema. Mais próxima do dolorido "Namorados para sempre" do que do alto astral "Questão de tempo" - todos lançados no mesmo ano -, a história de amor e desencontros entre Anna e Jacob se move com desenvoltura entre bons e maus momentos, delícias e tormentos, paixão e saudade, confiança plena e dúvidas angustiantes, sempre amparada no desempenho fascinante de seus dois atores centrais, um trunfo do qual Doremus lança mão sem o menor resquício de vergonha.

 

Donos de uma química palpável que salta das tela, Anton Yelchin e Felicity Jones são a alma de "Loucamente apaixonados". Improvisando boa parte dos diálogos - depois de exaustivos ensaios -, os jovens atores se entregam nitidamente às desventuras do casal de protagonistas, a ponto de não dar espaço algum para qualquer dúvida da plateia de que foram feitos realmente um para o outro. Mesmo quando a realidade dura se impõe à fantasia romântica, ambos são capazes, sem precisar mais do que expressões faciais ou movimentos discretos, de transmitir ao espectador um leque de emoções que resume todo o turbilhão pelo qual passam. Yelchin, primeira escolha do cineasta para viver Jacob, está encantador - e sua morte precoce, em 2016, com apenas 27 anos, parece ainda mais trágica quando se vislumbra o que o futuro poderia lhe oferecer. Felicity - premiada em Sundance e posteriormente alçada à grande promessa de Hollywood graças à sua indicação ao Oscar por "A teoria de tudo" (2014) - conquistou o diretor a ponto de estrelar seu filme seguinte, "Paixão inocente" (2013) e mostra um carisma e uma delicadeza raras. O trabalho dos dois é tão brilhante que até mesmo a sempre ótima Jennifer Lawrence - que seria oscarizada dois anos depois, por "O lado bom da vida" (2013) - consegue ser eclipsada (mesmo que, quando em cena, demonstre todo o seu potencial). 

Ao apresentar vários elementos consagrados pelo cinema independente norte-americano contemporâneo - edição ágil, trilha sonora moderna - e utilizá-los a seu favor, "Loucamente apaixonados" aponta o talento de Drake Doremus, um cineasta ainda restrito a pequenos circuitos, com filmes interessantes mas pouco vistos, como "Quando te conheci" (2015) e "Amor a três" (2019). Conduzindo sua história com sutilezas visuais e dotado de grande senso de ritmo, Doremus evita o sentimentalismo fácil e aposta em uma trama de forte apelo popular sem deixar-se contaminar pelo caminho mais óbvio. Seu filme é simpático até mesmo quando se torna incômodo - afinal, a realidade como mostrada sob suas lentes é amenizada pela fotogenia de seus astros centrais e pela inteligência de um roteiro cuja principal inspiração é a vida como ela é, ainda que vista por um ângulo poético e generoso.

terça-feira

FAMÍLIA HOLLAR


FAMÍLIA HOLLAR (The Hollars, 2016, Sony Pictures Classics, 88min) Direção: John Krasinski. Roteiro: Jim Strouse. Fotografia: Eric Alan Edwards. Montagem: Heather Persons. Música: Josh Ritter. Figurino: Caroline Eselin. Direção de arte/cenários: Daniel B. Clancy/Gretchen Gattuso. Produção executiva: Michael London, Mike Sablone, Jim Strouse, Janice Williams. Produção: John Krasinski, Ben Nearn, Tom Rice, Allyson Seeger. Elenco: John Krasinski, Richard Jenkins, Margo Martindale, Anna Kendrick, Shartlo Copley, Charlie Day, Randall Park, Josh Groban, Mary Kay Place, Ashley Dyke. Estreia: 24/01/2016 (Festival de Sundance)

Quando o terror "Um lugar perigoso" estreou, em 2018, muita gente se surpreendeu com o talento de seu diretor: conhecido por seu desempenho na série "The office" (2005-2013), onde interpretava o bom-moço Jim Halpert, o jovem John Krasinski mostrava, então, uma faceta que não era exatamente nova para os fãs de cinema independente, que o acompanhavam desde sua estreia como diretor de longas-metragens - com o elogiado mas pouco visto "Breves entrevistas com homens hediondos", de 2009. Sensível, discreto e dotado de um senso de humor caloroso e humano, Krasinski atingiu, em seu segundo filme, o equilíbrio perfeito entre drama, comédia e romance. "Família Hollar" pode não ser um exemplo de originalidade (e tampouco tenta subverter as regras do cinema mainstream), mas é uma deliciosa sessão de risadas e lágrimas, defendida por um elenco acima de qualquer crítica e amparada por um roteiro redondinho, do qual é impossível não se gostar.

Se o filme tem um personagem principal, este é John Hollar, interpretado pelo próprio diretor: às vésperas de tornar-se pai pela primeira vez e frustrado com uma carreira de desenhista de graphic novels que não deslancha, ele é chamado às pressas para voltar à sua cidade natal quando sua mãe, a agregadora Sally (Margo Martindale), é diagnosticada com um tumor cerebral. Chegando em casa, ele encontra uma família à beira do colapso: seu pai, Don (Richard Jenkins), está falido, e seu irmão, Ron (Shartlo Copley), não consegue superar o divórcio e vive em constante conflito com a ex-mulher a respeito das duas filhas pequenas. Além disso, o enfermeiro que cuida de sua mãe, Jason (Charlie Day), agora é casado com sua ex-namorada, Gwen (Mary Elizabeth Winstead) - que deixa bem claro a quem quiser ouvir que ainda não o esqueceu. Enquanto tenta lidar com toda a pressão que subitamente caiu em sua cabeça, John conta com o apoio da apaixonada Rebecca (Anna Kendrick) - com quem não consegue se comprometer completamente.

 

Alternando sequências de um humor ingênuo e momentos que desafiam o público a não derramar rios de lágrimas, "Família Hollar" se sustenta em dois pilares fundamentais para cativar a plateia: seu roteiro, enxuto e nitidamente influenciado pelo bom cinema de personagens europeu, e seus atores, excepcionais e em dias de grande inspiração. Sem medo de abraçar carinhosamente os clichês que inundam os dramas familiares - e explorando-os a seu favor -, o script do também produtor Jim Strouse apresenta personagens com os quais a identificação é fácil e imediata e conduz com sensibilidade a trajetória de pessoas cuja complexidade vai se revelando pouco a pouco, conforme as situações vão se apresentando, muitas vezes de forma inexorável e avassaladora. É um imenso acerto não dotar nenhum de seus protagonistas com almas irretocáveis - todos os membros da família já erraram e acertaram da mesma forma, o que faz deles seres humanos falíveis e que podem ser encontrados em qualquer lugar do mundo, em qualquer classe social, em qualquer raça. Tal universalidade é um gol de placa - especialmente quando seus representantes são interpretados por um elenco de aplaudir de pé.

Se John Krasinski não precisa se esforçar muito para convencer no papel de um rapaz que é o orgulho da família, não deixa de ser surpreendente ver o sul-africano Shartlo Copley (de "Distrito 9") no papel de um desajustado mas amoroso pai, capaz de desatinos lamentáveis para ficar ao lado das filhas - é difícil não se deixar conquistar por ele, apesar de suas atitudes nem sempre éticas. Anna Kendrick volta a viver uma personagem dócil, emprestando a sua Rebecca um senso de responsabilidade essencial para o clã do namorado. Mas é impossível não reconhecer que o maior show em "Família Hollar" vem de seus protagonistas veteranos: oferecendo uma generosa dose humanidade ao casal de patriarcas, Richard Jenkins e Margo Martindale brilham em cada cena, em cada sequência, em cada momento, fazendo uso de sua vasta experiência para transmitir à plateia um sentimento de amor incondicional que somente a maturidade consegue atingir. Vem deles as lágrimas mais sentidas, as risadas mais honestas e a sensação de calor humano que persiste muito tempos depois dos créditos finais. Se "Um lugar perigoso" mostrou Krasinski como um cineasta inteligente em utilizar-se de todas as ferramentas técnicas de seu ofício, em "Família Hollar" ele já havia comprovado que também não lhe falta coração e o olhar afetuoso a seus personagens. Bravíssimo

segunda-feira

ASSASSINATO NUM DIA DE SOL


ASSASSINATO NUM DIA DE SOL (Evil under the sun, 1982, Universal Pictures, 117min) Direão: Guy Hamilton. Roteiro: Anthony Shaffer, romance de Agatha Christie. Fotografia: Christopher Challis. Montagem: Richard Marden. Figurino: Anthony Powell. Direção de arte/cenários: Elliot Scott/Peter Howitt. Produção: John Brabourne, Richard Goodwin. Elenco: Peter Ustinov, Colin Blakely, Jane Birkin, Nicholas Clay, Maggie Smith, Roddy McDowall, James Mason, Sylvia Miles, Diana Rigg, Denis Quilley, Emily Hone. Estreia: 25/01/82 (Festival de Manilla)

Encorajados pelo sucesso de "Assassinato no Expresso Oriente" (1974) - que deu o Oscar de atriz coadjuvante a Ingrid Bergman e ainda concorreu a outras cinco estatuetas da Academia -, os produtores John Brabourne e Richard Goodwin descobriram um filão dos mais rentáveis: adaptações caprichadas de obras de Agatha Christie, a rainha do romance policial. Foi assim que surgiram "Morte sobre o Nilo" (1978), "A maldição do espelho" (1980) e "Assassinato num dia de sol", lançado em 1982. Ao contrário de seus antecessores, porém, a segunda personificação de Peter Ustinov como o célebre detetive Hercule Poirot (de um total de seis) não atingiu as expectativas: não apenas fracassou em termos comerciais, com uma bilheteria bem aquém do esperado, como não repercutiu como o esperado junto à crítica e às cerimônias de premiação. Talvez por ser a transposição de um livro não tão famoso da autora, talvez por ser a menos ambiciosa das adaptações da série - sem nenhum nome estelar no elenco -, o filme sofre também de um ritmo pouco envolvente e personagens pouco carismáticos, mas ainda assim tem o charme inegável das tramas da escritora inglesa.

Com algumas pequenas alterações que não chegam a desfigurar a obra original - como a mudança de cenário (da Inglaterra para uma ilha banhada pelo Mar Adriático), a fusão de dois personagens em um e a mudança de gênero de outro - e a direção elegante de Guy Hamilton (também responsável por "A maldição do espelho"), "Assassinato num dia de sol" apresenta, em sua concepção, todos as marcantes características de Agatha Christie, que vão desde locações exóticas e personagens pouco confiáveis até uma resolução surpreendente - ainda que rocambolesca em excesso. A figura de Hercule Poirot, sua criação mais notável e popularmente conhecida, encontrou em Peter Ustinov a encarnação perfeita - mais até do que aquela forjada por Albert Finney em "Assassinato no Expresso Oriente" e anos-luz à frente da caricatura engendrada por Kenneth Branagh em suas duas (até agora) incursões no universo do detetive - e os suspeitos do crime imaginado pela romancista formam uma deliciosa seleção de milionários fúteis, serviçais abelhudos e uma vítima fácil de detestar: elementos que constroem uma estrutura sólida, amplamente celebrada pelos fãs do gênero e fielmente reconstituída por Hamilton e sua equipe.


 

A trama urdida por Christie e adaptada por Anthony Shaffer - também autor do roteiro de "Morte sobre o Nilo" - começa quando o veterano detetive Hercule Poirot é contratado, por uma seguradora, para investigar o caso de um diamante falsificado que ele descobre estar nas mãos do milionário Horace Blatt (Colin Blakely). Blatt está em lua-de-mel com Arlena Marshall (Diana Rigg), uma atriz aposentada, em uma idílica ilha no litoral do Mar Adriático, e é para lá que Poirot embarca, às custas de seus empregadores. O hotel onde Blatt e Marshall estão é de propriedade de Daphne Castle (Maggie Smith), que no passado abandonou a carreira artística e ainda tenta superar a rivalidade com a nova hóspede - que tampouco é benquista pelos demais visitantes do local. Quando Marshall é encontrada morta na praia, a Poirot caberá elucidar o crime: além do viúvo e da própria Daphne, também são suspeitos um casal de empresários do meio teatral - Odel e Myra Gardener (James Mason e Sylvia Miles) -, o autor de uma biografia não autorizada sobre a vítima - Rex Brewster (Roddy McDowall) - e um jovem casal em crise devido ao romance extraconjugal do marido - Patrick e Christine Redfern (Nicholas Clay e Jane Birkin).

"Assassinato num dia de sol" sofre principalmente de um ritmo claudicante, que, ao contrário das adaptações anteriores da dupla de produtores, falha ao criar a atmosfera de suspense necessária a um gênero que depende basicamente dela. Não ajuda também que as pistas que levam à resolução do crime sejam jogadas de forma tão morna - da mesma forma que o clímax, que nem de longe reflete os melhores momentos da autora do romance original. A própria solução do assassinato soa um tanto difícil de engolir, tamanho o excesso de reviravoltas e detalhes, e o elenco, apesar de talentoso, é mal aproveitado por Hamilton, que parece mais interessado em explorar as belas paisagens do que desenvolver os personagens - e, por consequência, torná-los importantes para o espectador. Peter Ustinov brilha como Hercule Poirot, assim como Maggie Smith como a dona do hotel (personagem que é uma amálgama de dois personagens do livro) e Jane Birkin como a sofrida e frágil Christine Redfern, uma mulher vitimizada pelos maus-tratos do marido adúltero. Porém, falta mais consistência à trama (ou à maneira com que foi traduzida para as telas) e nem tudo sai com a excelência esperada em uma produção de Bradbourne e Goodwin. Mesmo assim, é um entretenimento luxuoso, muito bem embalado e muito mais eficiente do que as modernizações vergonhosas realizadas por Kenneth Branagh e seu egocentrismo.

sexta-feira

BESAME MUCHO


BESAME MUCHO (Besame mucho, 1987, Francisco Ramalho Júnior Filmes/HB Filmes, 108min) Direção: Francisco Ramalho Jr.. Roteiro: Francisco Ramalho Jr.,Mário Prata, peça teatral de Mário Prata. Fotografia: José Tadeu Ribeiro. Montagem: Mauro Alice. Música: Wagner Tiso. Figurino: Domingos Fuschini. Direção de arte/cenários: Marcos Weinstock. Produção: Hector Babenco, Francisco Ramalho Jr.. Elenco: Antônio Fagundes, José Wilker, Christiane Torloni, Glória Pires, Giulia Gam, Paulo Betti, Isabel Ribeiro. Estreia: 13/8/87

Montada pela primeira vez em 1982 nos palcos de São Paulo - e no ano seguinte no Rio de Janeiro -, a peça teatral "Besame mucho", de Mário Prata, não demorou a chegar às telas de cinema. Adaptada pelo cineasta Francisco Ramalho Jr e pelo próprio Prata, a história com traços autobiográficos estreou em agosto de 1987, embalada pelos prêmios (roteiro e figurino) do Festival de Gramado e pela popularidade de seu elenco principal, formado por astros globais. Com um texto nostálgico e uma produção caprichada, acabou por se tornar um dos filmes nacionais mais queridos de sua temporada - apesar de raramente ser lembrado pela crítica ou até mesmo pelo público em listas de principais produções do cinema brasileiro, deixa a sensação, após os créditos finais, de um passatempo inofensivo dos mais agradáveis.

A trama criada por Prata não é das mais originais: ao acompanhar a trajetória de dois casais de amigos durante vinte anos, o dramaturgo não chega a aprofundar psicologicamente seus personagens nem tampouco apelar para reviravoltas dramáticas que possam provocar grandes catarses. Porém, é na sua estrutura que a peça (e o filme, acertadamente fiel) surpreende: ao começar a ação no final dos anos 1980 e regredindo até o fatídico 1964, o roteiro substitui a pergunta clássica "o que vai acontecer?" pela menos óbvia "como eles chegaram até esse ponto?". Dessa forma, Prata desnuda idiossincrasias, hipocrisias e inseguranças de seus protagonistas com um acento cômico que permite ao público envolver-se com o enredo sem questionar suas possíveis falhas. Além disso, aproveita para apontar, com inteligência, a mudança dos comportamentos sociais e políticos do país durante um de seus períodos mais críticos através de personagens que, de uma maneira ou outra, são afetados por tais transformações. 

 

Quando o filme começa, Xico (José Wilker) e Olga (Glória Pires) estão se divorciando, depois de uma crise longa e desgastante. Ele é um premiado autor de teatro, mas sem que ninguém saiba, sua principal peça, "Besame mucho", foi escrita, na verdade, por sua mulher - que, na juventude, passou da alienação política a um auto-exílio durante a ditadura militar. Em sentido oposto, o quase idealista Tuca (Antônio Fagundes) tornou-se um empresário de sucesso, crescendo financeiramente em sua cidadezinha natal ao lado da mulher, Dina (Christiane Torloni), que abandonou a rigidez moral da adolescência para embarcar em uma série de fantasias eróticas com o marido, como forma de enterrar um passado de frustrações sexuais. A partir desse primeiro momento, o filme começa a regredir cronologicamente e apresentar os dois casais na construção de seus relacionamentos, suas carreiras e vidas sentimentais - até chegar ao tenebroso 31 de março de 1964, data em que suas próprias relações interpessoais também chegam a um impasse - o primeiro de muitos que ainda lhes atormentariam a existência.

Se o texto de Mário Prata parece mais apropriado ao palco do que às telas de cinema - uma linguagem mais direta e simples que nem sempre se conecta perfeitamente à sua adaptação -, a direção de Francisco Ramalho Jr. explora com precisão seu maior trunfo: o elenco. Aproveitando-se do tom mais leve de seus personagens, Antônio Fagundes e Christiane Torloni brilham com uma química previamente testada na televisão (e que voltariam a repetir em trabalhos futuros). José Wilker e Glória Pires, vivendo um casal com mais nuances dramáticas, brincam sem medo com todas as incoerências de Xico e Olga, provavelmente os mais alterados pela dinâmica da sociedade e da vida de uma cidade grande. Entre os coadjuvantes, Paulo Betti e Giulia Gam quase roubam a cena com momentos de humor equilibrado entre o ingênuo e o picante. Soma-se a isso a percepção triste de que o Brasil de 1964 não está tão distante assim do Brasil de 2022 - com a sombra folclórica de uma ameaça comunista que só existia (e existe) na paranoia da direita. É essa pitada de ironia (involuntária, uma vez que a peça estreou quando havia a ilusão de que o passado já estava enterrado de vez) que faz com que "Besame mucho" deixe de ser apenas uma comédia dramática sobre a imaturidade masculina e a evolução (ou não) da sociedade e se torne quase um lembrete de quão cíclicas são as mudanças no mundo.

quinta-feira

MEN: FACES DO MEDO


MEN: FACES DO MEDO (Men, 2022, A24 Productions, 100min) Direção e roteiro: Alex Garland. Fotografia: Rob Hardy. Montagem: Jake Roberts. Música: Ben Salisbury. Figurino: Lisa Duncan. Direção de arte/cenários: Mark Digby. Produção: Andrew Macdonald, Allon Reich. Elenco: Jesse Buckley, Rory Kinnear, Paapa  Essiedu, Gayle Rankin. Estreia: 20/5/2022 (Canadá)

Aviso de utilidade pública: a quem procura um filme de terror tradicional - com sustos orquestrados com o objetivo de fazer o espectador pular da poltrona - ou uma trama de suspense que funcione como um quebra-cabeças - cujas peças façam sentido nos últimos minutos -, "Men: faces do medo" não é o programa mais indicado. Sim, ele assusta em alguns momentos. Sim, ele propõe um intrincado jogo psicológico. Mas, apesar do terço final apelar para uma violência gráfica quase desconcertante, ele não é um produto comercial puro e simples que busca o sangue gratuito. E infelizmente, apesar de envolver a plateia com uma série de questões promissoras, frustra ao não respondê-las a contento. Ao entregar mais perguntas que respostas, Garland se aproxima, paradoxalmente, de uma superficialidade que quase compromete todas as qualidades do filme - que  não são poucas e são redentoras.

Visualmente "Men" é um desbunde. A fotografia excepcional de Rob Hardy enche os olhos a cada sequência, com um colorido vibrante que acentua o tom de pesadelo que percorre todos os 100 minutos de projeção. O cenário bucólico do interior inglês é um achado, por contrapor a vastidão de seu verde com a sensação claustrofóbica experimentada pela protagonista. E merece aplausos a equipe capaz de conceber os efeitos visuais do ato final - perturbadores, doentios e radicalmente ousados até mesmo quando se sabe que a produtora do filme (A24) é aquela que revelou ao mundo os nomes de Robert Eggers e Ari Aster, responsáveis por um novo sopro de criatividade no cinema de terror: o espectador pode sentir-se incomodado, desconfortável ou enojado, mas é impossível que fique incólume ao que vê. Nesse ponto, pode-se dizer que "Men" é um casamento entre o horror visual de David Cronenberg e o suspense psicológico de David Lynch - acrescido de uma temática das mais relevantes e uma atriz com talento suficiente para segurar até mesmo os momentos mais bizarros da narrativa.

 


Indicada ao Oscar de atriz coadjuvante por seu trabalho em "A filha perdida" (2021), Jesse Buckley assume, em "Men", o posto de protagonista absoluta. Ela vive Harper, uma mulher traumatizada com a morte violenta do ex-marido abusivo (que pode ou não ter cometido suicídio) que resolve afastar-se da civilização para por os pensamentos em ordem e procurar um pouco de paz de espírito. Para isso, ela aluga uma confortável e isolada casa de campo no interior da Inglaterra. Seu objetivo, porém, começa a parecer um tanto utópico logo que ela chega ao local: perseguida por uma estranha figura nua que chega a invadir a propriedade, Harper não demora a perceber que o corporativismo masculino é regra na cidade - qua aparentemente não tem mulheres entre seus habitantes. Sufocada pelo ambiente patriarcal que passa a cercá-la (nem mesmo o padre ou o policial encarregado de protegê-la parecem confiáveis), a atormentada viúva se vê diante da angústia de estar à mercê de pessoas que também a ameaçam - e ir embora de repente não parece a melhor solução.

Os dois primeiros atos de "Men" são um primor de surrealismo e tensão, sublinhados pelo clima feérico oferecidos pela fotografia de Hardy, que passa, sem escalas, do deslumbramento ao assombro - ao comer uma maçã da árvore diante da propriedade, Harper parece ter dado início a seu pesadelo, como uma forma de punição. A partir daí a sensação de perigo iminente aumenta de forma exponencial, conduzindo a personagem (e o espectador) por um labirinto de medo e constante insegurança. É admirável, também, a ideia de fazer com que todos os personagens masculinos do filme (com exceção do falecido marido de Harper) sejam interpretados pelo mesmo Rory Kinnear, em um efeito perturbador e que remete à ideia de que, afinal de contas, todos os homens são iguais. Essa teoria, reiterada durante todo o filme, pode até parecer, a princípio, simplória e superficial, mas é ela quem dá o tom de toda a produção e reafirma o desamparo a que toda mulher está propensa em um mundo que lhe é normalmente hostil. É um conceito interessante e a maneira com que é proposto no filme é aberto às mais variadas interpretações - que estão ligadas também, segundo o próprio cineasta, às duas imagens religiosas encontradas por Harper na igreja local e cujos significados podem explicar boa parte dos enigmas criados pelo roteiro.

É sempre empolgante quando um filme ousa e empurra os limites do espectador - sejam eles quais forem. Da mesma forma, é louvável quando uma produção cinematográfica expande seus domínios a outras formas de arte. Porém, quando um filme exige um conhecimento prévio (e relativamente inacessível ao público médio) para que se faça entender, há algo de errado em sua concepção. Esse é o maior problema de "Men": lançar perguntas no ar e não fazer muita questão de que suas respostas sejam compreendidas. É admirável a ousadia de Alex Garland - um diretor que aos poucos vem se firmando como um realizador com coisas a dizer - em desafiar a lógica do mercado e provocar a plateia às raias do insuportável. Mas até mesmo ousadia em excesso pode atrapalhar boas ideias, e é isso que acontece com seu terceiro longa: genialmente concebido, fantasticamente realizado, mas incapaz de satisfazer seu principal consumidor. Ainda assim, um filme muito acima da média e destinado a tornar-se cult com o passar do tempo.

quarta-feira

BOA SORTE, LEO GRANDE


BOA SORTE, LEO GRANDE (Good luck to you, Leo Grande, 2022, Searchlight Pictures, 97min) Direção: Sophie Hyde. Roteiro: Katy Brand. Fotografia e montagem: Bryan Mason. Música: Stephen Rennicks. Figurino: Sian Jenkins. Direção de arte/cenários: Miren Marañon/Fiona Albrow. Produção executiva: Katy Brand, Julian Gleek, Mark Gooder, Sophie Hyde, Nadia Khamlichi, Nessa McGill, Martin Metz, Alison Thompson. Produção: Debbie Gray, Adrian Politowski. Elenco: Emma Thompson, Daryl McCormack, Isabella Laughland. Estreia: 22/01/2022 (Festival de Sundance)

Em uma época em que mulheres são apedrejadas virtualmente por ousarem desafiar os limites impostos pela sociedade a sua idade e criticadas nem tão virtualmente assim por sua busca pela liberdade sexual e sentimental, não deixa de ser uma grande ousadia o lançamento de um filme como "Boa sorte, Leo Grande": com uma visão predominantemente feminina a respeito de assuntos relevantes e urgentes, o filme de Sophie Hyde é um triunfo em todos os pontos, capaz de fazer rir, pensar e emocionar através de uma estrutura aparentemente simples que esconde uma profundidade rara no cinema comercial. Ao tratar com naturalidade temas como sexo, solidão, família e hipocrisia, o roteiro de Katy Brand transforma o que poderia ser um tedioso e autoindulgente discurso em uma pérola de sofisticação e sensibilidade.

Que não se espere, em "Boa sorte, Leo Grande", piadas escatológicas e/ou fáceis, ainda que o roteiro não se furte a brincar com os contrastes entre seus protagonistas e suas idiossincrasias. Como em uma boa peça de teatro, seus personagens vão revelando aos poucos suas facetas, permitindo a eles mesmos - e ao público - que suas reais motivações e sentimentos só surjam nos momentos mais precisos. Alternando-se no domínio das conversas, a professora aposentada Nancy (Emma Thompson) e o garoto de programa Leo Grande (Daryl McCormack) desfilam, em pouco mais de uma hora e meia, seus sonhos e frustrações, em uma relação que permite tal profundidade somente por s saber efêmera - a princípio nenhum dos dois sabe a verdadeira identidade do outro, escondidos que estão sob as máscaras que a situação exige. Ela é uma viúva que sempre viveu sob as normas impostas por sua religiosidade e criação conservadora; ele disfarça sua profissão sui generis sob um verniz intelectual e gentil que o protege dos preconceitos inerentes à função. Ela quer conhecer, na prática, tudo aquilo de que apenas ouviu falar em sua vida sexual insossa - e tem inclusive uma lista escrita de tais desejos; ele sofre com a rejeição da mãe e oferece aos clientes mais do que apenas momentos de prazer físico - lhes oferta também o ombro amigo,e se mostra disposto a ouvir o quanto for necessário. Nenhum deles é imune à solidão - e aí está o pulo do gato do filme.

 

Tanto Nancy quanto Leo podem parecer, nos primeiros minutos, uma perigosa soma de clichês. Basta alguns momentos, no entanto, para que a inteligência do texto de Brand e a elegãncia da direção de Sophie Hyde apontem um caminho diferente para a narrativa. Sim, com exceção de uma única sequência perto do clímax, toda a ação se passa em um quarto de hotel, mas limitar "Boa sorte, Leo Grande" a teatro filmado é negar à construção estética de Hyde todos os seus inúmeros méritos. A fotografia de Bryan Mason (igualmente responsável pela edição enxuta) acompanha não só as mudanças climáticas e temporais, mas também a evolução do relacionamento entre os personagens. A trilha sonora, discreta, paira no ar como um comentário sutil aos diálogos, e o figurino serve como a confirmação visual à personalidade de cada um em cena. Leo, por exemplo, não abusa do previsível estilo sexy que poderia lhe definir, optando por uma sobriedade surpreendente - assim como Nancy, conservadora e tímida, aos poucos vai se permitindo uma liberdade maior até mesmo para se vestir.

Mas nada funcionaria em "Boa sorte, Leo Grande" se não fosse Emma Thompson. Uma das maiores atrizes de sua geração, a vencedora de dois Oscar - um deles pelo roteiro de "Razão e sensibilidade" (1995) - confirma sua versatilidade e maturidade artística ao abraçar uma personagem complexa com toda a intensidade de sua experiência. Ao injetar humanidade em uma protagonista cujos defeitos são óbvios e pouco adoráveis - ainda que explicáveis por sua criação machista e religiosa -, Thompson ultrapassa os limites da simples atuação e entrega ao espectador o retrato de uma pessoa verdadeira, repleta de falhas mas dotada de uma humanidade quase palpável. É uma de suas atuações mais memoráveis, merecidamente cotada para mais uma indicação à estatueta dourada. Resta saber se a Academia será tão corajosa quanto ela em homenagear um filme que celebra o prazer feminino como forma de libertação: ao aparecer completamente nua em cena, Thompson não apenas se liberta das amarras de uma ditadura estética claustrofóbica, mas também ensina o amor próprio, a autoconfiança e a liberdade de ser quem se é. Se isso não é empoderamento não sei o que mais pode ser...

terça-feira

DESERTO PARTICULAR


DESERTO PARTICULAR (Deserto particular, 2021, Fado Filmes/Anacoluto/Grafo Audiovisual, 121min) Direção: Aly Muritiba. Roteiro: Aly Muritiba, Henrique dos Santos. Fotografia: Luis Armando Arteaga. Montagem: Patricia Saramago. Música: Felipe Ayres. Figurino: Isbella Brasileiro. Direção de arte/cenários: Fabiola Bonofiglio, Marcos Pedroso. Produção executiva: Vasco Esteves, João Fonseca, Raiane Rodrigues, Chris Spode. Produção: Gonçalo Galvão Teles, Luis Galvão Teles, Antonio Gonçalves Júnior, Aly Muritiba. Elenco: Antonio Saboia, Pedro Fasanaro, Thomas Aquino, Laila Garin, Zezita Matos, Flávio Bauraqui. Estreia: 02/9/2021 (Festival de Veneza)

É difícil falar sobre "Deserto particular" sem tropeçar em spoilers. Por mais que o filme se sustente independentemente da reviravolta que acontece em sua metade - o que fica nítido em uma revisão - e se mantenha como um dos exemplares mais empolgantes do cinema brasileiro das últimas décadas, é crucial que se mantenha em segredo um dos pontos vitais de seu roteiro, sob pena não de estragar a experiência, mas de privar o espectador do prazer de descoberta que tanto nos emociona quanto eletriza.

É difícil falar de "Deserto particular" sem elogiar o roteiro enxuto, por vezes claustrofóbico, de Aly Muritiba e Henrique dos Santos, que mergulha o público em uma narrativa quase seca, que vai se expandindo até quase irromper em uma enxurrada de sensações conflitantes. Ao contrapor masculino/feminino, sudeste/nordeste, força/fragilidade, os autores - merecidamente premiados com o Grande Prêmio do Cinema Brasileiro de 2022 - abraçam sem medo as dicotomias que regem o país, retratando-as em relações interpessoais jamais previsíveis e calcadas em um suspense psicológico dos mais admiráveis. Criando personagens verossímeis e nada óbvios, Muritiba e Henrique fogem do maniqueísmo ao dotar seus protagonistas tanto de qualidades quanto de defeitos e aproximá-los da plateia mesmo quando cometem erros quase imperdoáveis.

 


É difícil falar de "Deserto particular" sem aplaudir seu elenco. Se o estreante Pedro Fasanaro quase rouba a cena com uma atuação corajosa que escapa com louvor das armadilhas a que poderia ser submetido com seu surpreendente Robson, seu entorno é igualmente impecável - desde Thomas Aquino como seu fiel escudeiro Fernando, dono de alguns diálogos impagáveis, até a ótima Zezita Matos como sua imprevisível avó. E qualquer elogio que se faça a Antonio Saboia por seu desempenho como o protagonista Daniel provavelmente será insuficiente para dimensionar a extensão de sua façanha. Em duas horas de duração, Saboia transita - muitas vezes sem qualquer aviso prévio - por uma vasta gama de sentimentos, intercalando momentos de fúria, dor, amor, solidão, frustração e tesão com a segurança de um grande (e ainda subestimado) ator. Sua construção de Daniel -um policial afastado da corporação depois de um episódio de violência - envolve desde a expressão corporal exemplar (não apenas sua musculatura, mas também sua postura fala mais do que qualquer monólogo) até a atenção a seu semblante (normalmente sisudo mas capaz do mais apaixonado sorriso quando necessário).

É difícil falar de "Deserto particular" sem admirar a direção inteligente de Aly Muritiba. Ao equilibrar seu cuidado com os atores com o senso estético que remete a road movies célebres como "Paris, Texas" (1984), o cineasta, responsável pelos premiados "Ferrugem" (2018) e "Jesus Kid" (2021) constrói uma atmosfera repleta de sensualidade e tensão, onde cada cena, cada sequência, cada linha de diálogo levam a um estado de completo envolvimento da plateia, a quem não resta alternativa senão entregar-se completamente a uma história de amor, obsessão e tolerância contada com, acima de tudo, respeito por seus protagonistas: como uma testemunha neutra dos acontecimentos, sua câmera praticamente lê a alma dos personagens, atormentados por suas paixões irreparáveis e medos irreprimíveis. Não bastasse tudo isso, Muritiba ainda encerra seu filme com um hino pop capaz de entusiasmar o mais renitente espectador:é impossível ficar incólume a "Total eclipse of the heart", que, na voz rouca de Bonnie Tyler, ilustra com perfeição os meandros da história de amor entre Daniel e Sara.

Por fim, é impossível falar de "Deserto particular" sem lamentar que não tenha chegado a figurar entre os indicados ao Oscar de melhor filme internacional, vaga que tentou depois de selecionado pelo comitê responsável. Ao falar sobre amor e tolerância em um período tão lúgubre na cultura nacional, teria sido um alento - e um justo reconhecimento a suas qualidades - vê-lo disputando a estatueta da Academia. Como nem só de prêmios e reconhecimentos internacionais, porém, "Deserto particular" se mantém como uma obra fundamental da arte brasileira. Bravo!

VAMPIROS DO DESERTO

VAMPIROS DO DESERTO (The forsaken, 2001, Screen Gems/Sandstorm Films, 90min) Direção e roteiro: J. S. Cardone. Fotografia: Steven Bernstein...