quinta-feira

A FOGUEIRA DAS VAIDADES

 


A FOGUEIRA DAS VAIDADES (The bonfire of the vanities, 1990, Warner Bros, 125min) Direção: Brian DePalma. Roteiro: Michael Cristofer, romance de Tom Wolfe. Fotografia: Vilmos Zsigmond. Montagem: Bill Pankow, David Ray. Música: Dave Grusin. Figurino: Ann Roth. Direção de arte/cenários: Richard Sylbert/Joe Mitchell, Justin Scoppa. Produção executiva: Peter Guber, Christine Peters, Jon Peters. Produção: Brian DePalma. Elenco: Tom Hanks, Bruce Willis, Melanie Griffith, Morgan Freeman, Kim Catrall, Saul Rubinek, John Hancock, Rita Wilson, Kirsten Dunst. Estreia: 21/12/90

Sherman McCoy é um bem-sucedido magnata de Wall Street, bem casado e em franca ascensão profissional e financeira. Peter Fallow é um jornalista quase decadente, quase alcóolatra e quase em vias de abandonar a carreira. Uma noite, depois de um encontro, McCoy vê a amante atropelar um jovem negro em um bairro barra-pesada de Nova York e a incentiva a fugir do local, certo de que jamais serão descobertos. Por acaso, Fallow descobre a identidade do dono do veículo e, com a atenção da imprensa, não hesita em divulgá-lo e contar sua história. Exposto na mídia, McCoy se vê perdendo a a família, o respeito, a posição social e até mesmo a liberdade: bode expiatório de uma série de interesses políticos e advogados corruptos, ele se vê diante da ambição de gente como o demagogo reverendo de uma comunidade negra e um promotor público com ambições pouco louváveis. Enquanto sua descida é cada vez mais veloz, o caminho de Fallow rumo ao topo parece inevitável - e ele parece bastante disposto a pagar o preço do sucesso.

As expectativas a respeito da adaptação cinematográficas do best-seller "A fogueira das vaidades" - primeiro livro de ficção de Tom Wolfe - eram altas. Aplaudido pela imprensa e presença constante nas listas dos mais vendidos por meses, o romance de Wolfe - uma obra repleta de ironia e sarcasmo, sem herois e recheado de personagens dúbios e pouco agradáveis - soava como um desafio a quem quer que assumisse a responsabilidade de levá-lo às telas sem perder sua essência amoral. No entanto, desde sua gênese tudo apontava para um potencial desastre, justamente por seu tom pouco disposto a corroborar  a ideia do american way of life. Entre seguir a trama à risca - apostando na capacidade das plateias de abraçar ousadias temáticas e narrativas - e desfigurar a obra original como forma de alcançar uma bilheteria expressiva, a Warner Bros acabou por decidir-se pela segunda opção - o que resultou em críticas violentas e uma resposta ensurdecedora por parte do público: com pouco mais de 15 milhões de dólares de arrecadação mundial (contra um orçamento estimado em 47 milhões), a obra dirigida por Brian De Palma entrou para a história como um dos maiores fracassos de Hollywood, além de ser considerado um dos piores filmes das carreiras de todos os envolvidos - um grupo que conta com nomes poderosos da indústria, como Tom Hanks e Bruce Willis.

 


Antes de iniciar o processo de tornar-se um dos intérpretes mais respeitados de sua geração - com dois Oscar consecutivos de melhor ator -, Tom Hanks foi uma escolha inusitada e corajosa para viver o protagonista, Sherman McCoy, um bem-sucedido magnata de Wall Street, e só entrou em cena depois que Mike Nichols abandonou o barco e, com ele, levou Steve Martin, cujo perfil combinava bem mais com o personagem - antes ainda de Hanks outros nomes importantes chegaram a ser cotados, como Jon Voigt, Kevin Costner, Christopher Reeve e até John Lithgow (o preferido do diretor Brian De Palma) e Chevy Chase (que teria sido a escolha do próprio Tom Wolfe). A entrada de Hanks - assim como a de outros nomes chave do projeto, cortesia do então produtor Peter Guber  - acabou sendo um fator decisivo para o rumo da produção em direção a uma atmosfera bastante distinta do livro original, enfatizada pelo roteiro de Michael Cristofer (outro contratado por Guber): com sua aura de bom moço, Hanks suavizava a personalidade arrogante e amoral de McCoy e de certo modo equilibrava o cinismo do jornalista Peter Fallow, o segundo personagem central da trama - inglês no romance (assim como John  Cleese, que recusou o papel) e americano no cinema (o que não foi o suficiente para convencer Jack Nicholson a entrar no jogo). Em mais uma cartada para chamar a atenção do público, o estúdio ousou novamente e chamou Bruce Willis (em alta pelo sucesso de "Duro de matar", de 1988, mas sem maiores êxitos fora do cinema de ação). A surpreendente dupla formada por Hanks e Willis (mais o tititi em torno do livro de Wolfe) já seria o bastante para garantir notas de jornais, mas as esperadas filas nos cinemas ficaram apenas na vontade: o fiasco de bilheteria e as críticas impiedosas (cinco indicações ao Framboesa de Ouro, incluindo pior filme, atriz, roteiro e diretor) mostraram que nem grandes cineastas e atores de prestígio são imunes a erros gigantescos. Mas afinal de contas, passadas décadas de sua estreia, fica a pergunta crucial: "A fogueira das vaidades" é assim tão ruim?

Apesar de algumas ideias visuais interessantes - o plano-sequência de abertura, a fotografia pouco convencional - e do esforço de Brian De Palma em traduzir o tom artificial do romance através de atuações não naturalistas do elenco (que beira a histeria), o resultado final é decididamente frustrante. O roteiro de Michael Cristofer jamais consegue seduzir o público - talvez pela falta de um personagem com quem haja qualquer identificação, talvez por sua indecisão entre o drama e a comédia - e a escalação do elenco é flagrante ao menos exigente espectador. Tom Hanks é um ator excelente (como seria provado poucos anos depois), mas não acerta o tom de seu Sherman McCoy - não à toa o próprio ator o considera seu pior filme. Bruce Willis tem pouco a fazer com seu Peter Fallow - e quando o faz parece repetir os mesmos trejeitos de um de seus mais famosos personagens até então, na série de TV "A gata e o rato". E Melanie Griffith - escolha de De Palma, com quem havia trabalhado em "Dublê de corpo" (1984) - até tenta ser mais do que apenas uma mulher sensual, mas não alcança todas as nuances que lhe são exigidas - qualquer uma atriz considerada para o papel (Uma Thurman, Robin Wright, Kyra Sedwick) provavelmente teria se saído melhor. Juntos (ao lado de Morgan Freeman e F. Murray Abraham, também subaproveitados), eles parecem perdidos em cena, soterrados pelos artifícios técnicos do diretor e por suas tentativas infrutíferas de imprimir o tom de farsa da trama de Wolfe - deliciosa no papel, bastante problemática na tela.

Uma comédia farsesca que não atinge nem perto de seu potencial crítico, "A fogueira das vaidades" sofreu também com o erro primário de não ser direcionado para uma plateia mais sofisticada - os leitores da obra original - e tentar atingir um público médio que, via de regra, rejeita produções com conceitos menos maniqueístas. Ao deformar o romance de Wolfe para que coubesse em suas ambições comerciais, a Warner acabou com o que de havia de melhor no livro (a perspicaz leitura das ironias da sociedade) e o transformou em um produto mais "palatável" (leia-se superficial e sem nenhuma personalidade). O pífio resultado financeiro e o massacre da crítica apenas refletiram a profusão de equívocos acumulados desde sua concepção. Uma pena!

quarta-feira

AS BARREIRAS DO AMOR

 


AS BARREIRAS DO AMOR (Love field, 1992, Orion Pictures, 105min) Direção: Jonathan Kaplan. Roteiro: Don Roos. Fotografia: Ralf D. Bode. Montagem: Jane Kurson. Música: Jerry Goldsmith. Figurino: Collen Atwood, Peter Mitchell. Direção de arte/cenários: Mark Freeborn/Jim Erickson. Produção executiva: George Goodman, Kate Guinzburg. Produção: Sarah Pillsbury, Midge Sanford. Elenco: Michelle Pfeiffer, Dennis Haysbert, Stephanie McFadden, Brian Kerwin, Louise Latham, Beth Grant. Estreia: 11/12/92

Indicado ao Oscar de Melhor Atriz (Michelle Pfeiffer)

Vencedor do Urso de Prata (Melhor Atriz) no Festival de Berlim (Michelle Pfeiffer) 

Coisas de Hollywood: pronto para ser lançado em 1990, o drama "As barreiras do amor" - primeiro filme da produtor da atriz Michelle Pfeiffer, a Via Rosa - acabou sendo guardado em uma gaveta da Orion Pictures enquanto o estúdio enfrentava uma série de dificuldades financeiras que quase o levaram à falência. Sua demora em estrear, no entanto, mostrou-se providencial: o desempenho de Pfeiffer acabou por dar a ela o prêmio de melhor atriz no Festival de Berlim e indicações ao Golden Globe e ao Oscar - um currículo que destaca o que a produção tem de melhor. Apesar de suas boas intenções, o filme de Jonathan Kaplan não consegue deixar de dar a impressão de ser um telefilme de luxo, com ritmo irregular e situações repletas de clichês. 

A trama se passa em 1963, durante um conturbado período, repleto de revoltas por direitos civis e por manifestações contrárias à Guerra do Vietnã. Praticamente alheia aos problemas do país, a cabeleireira Lurene Hallett (Michelle Pfeiffer) vive uma rotina centrada no trabalho, na vida conjugal ao lado do marido, Ray (Brian Kerwin), e principalmente em sua dedicação quase doente por Jackie Kennedy - a quem admira por, entre outras razões, ter sobrevivido dignamente a um aborto espontâneo, como ela. A chance de ver de perto a mulher por quem é quase obcecada acontece com a visita do presidente e da primeira-dama à sua cidade, Dallas - uma visita que acaba tragicamente, com o assassinato de JFK. Arrasada, Lurenne resolve comparecer ao funeral, em Washington, apesar da proibição do marido. No ônibus que a leva até a capital do país ela conhece Paul Cater (Dennis Haysbert), um rapaz negro que está viajando ao lado da filha pequena, Jonell (Stephanie McFadden), uma criança calada e estranhamente nervosa. Sentindo que há algo de errado na relação entre os dois, a jovem acaba por envolvê-los em um mal-entendido que os leva a virar alvo da polícia - pouco afeita a respeitar cidadãos a quem considera inferiores.

 

Ao relembrar ao público norte-americano um de seus maiores traumas - vale lembrar que foi realizado antes do estupendo "JFK: a pergunta que não quer calar" (1991), de Oliver Stone - e tocar em uma de suas feridas mais profundas (o racismo), "As barreiras do amor" acrescenta um elemento novo a um subgênero dos mais queridos do cinema - o road movie -, convidando o público a acompanhar personagens que vão revelando aos poucos camadas que fazem deles seres bem mais complexos do que em uma primeira constatação. Pfeiffer consegue sair facilmente do tipo femme fatale que a acompanhava até então ao imprimir em sua Lurenne um tom de futilidade e ingenuidade que vai sendo substituída gradualmente pela sensação de desamparo e percepção de um mundo que foge de seu dia-a-dia açucarado: seu trabalho é primoroso, especialmente na transição entre dona-de-casa deslumbrada para uma mulher que encara o próprio sofrimento e vê diante de si um mundo de injustiças e violência. Dennis Haysbert - substituindo Denzel Washington, que abandonou o projeto pelas famosas "divergências artísticas" - não fica atrás, com uma interpretação silenciosa e discreta, em que comunica mais com o olhar do que com longos diálogos (ainda que, quando necessário, também saiba demonstrar a dimensão de seu talento). Completando o trio de protagonistas, a pequena Stephanie McFadden não se deixa intimidar por seus colegas veteranos, transmitindo em suas feições delicadas um mundo de medo e traumas que vão se revelando conforme a estrada vai ficando para trás.

Uma pena, porém, que a direção de Jonathan Kaplan seja tão quadrada. Não é preciso que haja grandes ousadias em um filme cujo roteiro (escrito por Don Roos, que mais tarde assinaria a direção de "O oposto do sexo", de 1998, e "Finais felizes", de 2005) segue todas as regras já conhecidas pelo grande público, mas Kaplan simplesmente evita qualquer desvio no que se poderia esperar do percurso dos personagens - e uma edição mais enxuta talvez resolvesse parte do problema de ritmo que acomete a produção em seu segundo ato. Comentado por uma trilha sonora atípica de Jerry Goldsmith, "As barreiras do amor" é um filme agradável e bem realizado, mas que não atinge todo o seu potencial e não consegue escapar de seu destino de ser um trabalho pouco memorável na carreira dos envolvidos.

terça-feira

ACONTECEU EM WOODSTOCK

 


ACONTECEU EM WOODSTOCK (Taking Woodstock, 2009, Focus Features, 120min) Direção: Ang Lee. Roteiro: James Schamus, livro de Elliot Tiber, Tom Monte. Fotografia: Eric Gautier. Montagem: Tim Squyres. Música: Danny Elfman. Figurino: Joseph G. Aulisi. Direção de arte/cenários: David Gropman/Ellen Christiansen De Jonge. Produção executiva: Michael Hausman. Produção: Celia Costas, Ang Lee, James Schamus. Elenco: Demetri Martin, Emile Hirsch, Imelda Staunton, Henry Goodman, Jonathan Groff, Jeffrey Dean Morgan, Mamie Gummer, Eugene Levy, Dan Fogler, Andy Prosky, Skylar Astin, Paul Dano. Estreia: 16/5/2009 (Festival de Cannes)

As lendas e fatos a respeito do Festival de Woodstock todo mundo já conhece - seus números, seus artistas, seus imprevistos e principalmente seu legado à história da música e da cultura popular (sem falar nos desdobramentos sociais e políticos). O que, então, poderia haver de novo a ser explorado em um filme quarenta anos depois do evento? A resposta surgiu quando o diretor Ang Lee foi interpelado por Elliot Tiber durante a divulgação de seu "Desejo e perigo" (2007): autor de um livro sobre os bastidores da organização do festival, do qual foi parte crucial, Tiber ofereceu ao cineasta a chance de contar a história sob um novo ponto de vista - e com um viés mais humano, comum em sua obra. Com seus colaboradores de confiança (James Schamus no roteiro, Eric Gautier na direção de fotografia e Tim Squyres na edição), o já vencedor de um Oscar (por "O segredo de Brokeback Mountain") lançou, no Festival de Cannes de 2009 o esperado "Aconteceu em Woodstock". O resultado, porém, ficou aquém das expectativas - tanto em termos financeiros quanto artísticos - e acabou se tornando um dos trabalhos menos memoráveis de Lee, a despeito de suas notáveis qualidades

Elliot Tiber, o autor do livro que deu origem ao filme, é interpretado por Demetri Martin, comediante em seu primeiro trabalho no cinema - uma falta de experiência e carisma que atrapalha muito as possibilidades de conexão com o espectador. Em 1969, Tiber abandona uma carreira pouco feliz de design de interiores em Nova York e retorna para a pequena cidade de White Lake com o objetivo de ajudar seus pais (Henry Goodman e Imelda Staunton) a manter vivo seu pequeno e nada convidativo hotel. A missão é complicada, já que nenhum dos dois é exatamente competente nos negócios e nada no lugar chama a atenção dos turistas ocasionais. A salvação da lavoura surge, no entanto, quanto ele menos espera: ao saber que uma cidade vizinha voltou atrás ao permitir a realização de um festival de música para o público hippie, o jovem toma as rédeas da situação e, depois de fazer contato com os produtores, transforma seu pacato lugarejo no cenário de um dos mais importantes acontecimentos culturais da história. Para isso, porém, ele precisa lutar contra o preconceito local, os problemas logísticos que envolvem a realização de algo inesperadamente gigantesco e encarar sua própria sexualidade conflituosa.

 

Fugindo da tentação de fazer do festival seu protagonista, Ang Lee segue mantendo-se fiel à sua marcante característica de priorizar os sentimentos humanos e, com eles, criar um amplo mosaico de personagens interessantes, como a travesti interpretada por Liev Schreiber (que assume o posto de segurança informal do evento), o jovem veterano do Vietnã vivido por Emile Hirsch e a idiossincrática mãe do protagonista (em um show particular de Imelda Staunton). Woodstock, na visão do cineasta, é apenas o pano de fundo (forte) para uma jornada de autodescobrimento, pincelada de momentos clássicos reproduzidos sutilmente pelo desenho de produção caprichado e pelo figurino, que dialogam com o tom onírico impresso pelo roteiro. A opção do filme em não mostrar absolutamente nenhum número musical - o que provavelmente é motivo de frustração para os fãs mais obcecados do festival - é surpreendente, mas condiz com o tom menos documental e mais emotivo da produção, que apesar disso falha em não aprofundar a contento todas as possibilidades que apresenta ao espectador. Tal problema impede que uma de suas maiores qualidades - o belo elenco - seja aproveitado em todo o seu potencial.

Quem começar uma sessão de "Aconteceu em Woodstock" com a intenção de ver Janis Joplin, Joe Cocker ou Jimi Hendrix certamente irá se decepcionar. O filme de Ang Lee é para um público que procura obras sobre pessoas em busca de si mesmas - mesmo que para isso seja preciso fazer parte de um evento de proporções gigantescas que mudou o mundo (ou ao menos a concepção de muita gente sobre ele). Pode não ser uma obra-prima como alguns dos melhores trabalhos do cineasta, mas é simpático e honesto o bastante para não fazer feio em uma filmografia marcada pela sensibilidade e pelo carinho por seus personagens.

segunda-feira

À PROCURA DO AMOR

 


À PROCURA DO AMOR (Enough said, 2013, Fox Searchlights Pictures, 93min) Direção e roteiro: Nicole Holofcener. Fotografia: Xavier Grobet. Montagem: Robert Frazen. Música: Marcelo Zavros. Figurino: Leah Katznelson. Direção de arte/cenários: Keith Cunningham/Douglas Mowat. Produção executiva: Chrisann Verges. Produção: Stefanie Azpiazu, Anthony Bregman. Elenco: Julia Louis-Dreyfus, James Gandolfini, Catherine Keener, Toni Collette, Ben Falcone, Tracey Fairaway, Tavi Gevinson. Estreia: 07/9/2013 (Festival de Toronto)

No dia 17 de junho de 2013, os fãs de cinema em geral - e da série "Família Soprano" em particular - foram surpreendidos com a notícia da morte precoce, aos 51 anos, do ator James Gandolfini, vítima de um infarto fulminante durante uma viagem à Roma. Sua partida inesperada, além de deixar o público órfão de um ator de grande carisma, o impediu de colher os louros por seus dois últimos trabalhos. "A entrega" - cujas filmagens acabaram um mês antes de sua morte - só estreou em setembro de 2014 no Festival de Toronto, mas um ano antes, no mesmo festival, as plateias tiveram a oportunidade de conhecer um lado menos sombrio e violento do célebre intérprete de Tony Soprano: lançado pela Fox Searchlight Pictures, "À procura do amor" apresentava um Gandolfini doce e capaz de fazer suspirar as mulheres mais românticas. Sim, a produção escrita e dirigida por Nicole Holofcener era uma comédia romântica. Adulta, um tanto mais realista e com personagens mais verossímeis, mas ainda assim uma comédia romântica, com todos os elementos clássicos do gênero. E, para alegria de todos, uma produção deliciosa, daquelas de deixar qualquer um com um sorriso no rosto.

Eva (Julia Louis-Dreyfus) trabalha como massagista a domicílio e está em crise com a iminente viagem de sua filha adolescente, Ellen (Tracey Fairaway), para a faculdade. Separada e pouco otimista em relação a possíveis relacionamentos, ela se vê surpreendida com a inesperada atração que passa a sentir por Albert (James Gandolfini), um homem que, a princípio, não tem nada a ver com o que ela procura em homens. De meia-idade, acima do peso, igualmente separado e prestes a ver a filha sair de casa, Albert acaba a conquistando pelo humor, pela gentileza e pela química que surge entre eles. O romance nascente e promissor, no entanto, sofre um baque quando Eva descobre que seu novo príncipe encantado é o ex-marido de Marianne (Catherine Keener), uma nova cliente, que divide com ela fatos poucos lisonjeiros a seu respeito (sem imaginar do incipiente namoro entre os dois). Influenciada pelas conversas com Marianne - uma poetisa a quem tem em alta conta -, Eva começa a questionar seus sentimentos e as percepções sobre Albert, que nem de longe sonha que a relação está ameaçada por uma visão unilateral (e um tanto injusta de sua pessoa).

Autora de filmes cujo foco são personagens críveis e humanos, como "Amigas com dinheiro" (2006) e "Sentimento de culpa" (2010), Nicole Holofcener faz um gol de placa com "À procura do amor": sem buscar catarses exageradas e fugindo da artificialidade comum a comédias românticas, faz de seu filme uma pérola dirigida a uma fatia do público frequentemente alijada dos maiores sucessos do gênero. Sua escolha por dois atores atípicos como protagonistas - ao lado de sua constante colaboradora, Catherine Keener - é, paradoxalmente, seu maior acerto. Julia Louis-Dreyfus é uma força da natureza, uma atriz que consegue ir do humor ao drama sem maior esforço, dotando sua Eva de nuances e idiossincrasias que a aproximam do espectador até mesmo quando comete erros bobos e desnecessários. Gandolfini, por sua vez, deixa antever uma faceta solar e agradável, raramente percebida em suas atuações anteriores (com a possível exceção do pouco lembrado "A mexicana") e acabou por merecer aplausos unânimes por sua sutileza em dar vida a um personagem a anos-luz de sua mais famosa criação. A química entre os dois é precisa e conduz a trama com um ritmo próprio, que é costurado sem pressa e à base de diálogos inteligentes e perspicazes - além de um elenco coadjuvante onde brilha também a sempre ótima Toni Collette.

Ao driblar os clichês que deixam quase todas as comédias românticas com o mesmo tom de artificialidade, Holofcener imprime a "À procura do amor" uma organicidade rara - mérito de seu roteiro que flui com extrema felicidade tanto em momentos mais leves quanto naqueles que exigem do elenco uma carga maior de dramaticidade (ainda que jamais em exagero). Uma cineasta que encoraja o improviso em seus trabalhos, Nicole extrai de Gandolfini e Louis-Dreyfus desempenhos que soam absolutamente reais - e, por consequência, bem distantes de suas personas até então mais conhecidas. Calorosos, humanos e falíveis, Eva e Albert são o mais próximo que personagens de cinema podem chegar de seu público - e isso se deve primordialmente graças a seus intérpretes, em estado de graça da primeira à última cena. "À procura do amor" é ouro.

sexta-feira

AMOR À DISTÂNCIA

 


AMOR À DISTÂNCIA (Going the distance, 2010, New Line Cinema, 103min) Direção: Nanette Bernstein. Roteiro: Geoff LaTulippe. Fotografia: Eric Steelberg. Montagem: Peter Teschner. Música: Mychael Danna. Figurino: Catherine Marie Thomas. Direção de arte/cenários: Kevin Kavanaugh/David Schlesinger. Produção executiva: Richard Brener, Michael Disco, Dave Neustadter. Elenco: Drew Barrymore, Justin Long,Charlie Day, Jason Sudeikis, Christina Applegate, Ron Livingston. Estreia: 27/8/2010

Os fãs de comédias românticas via de regra não são muito exigentes. Uma dupla de protagonistas carismáticos e/ou bonitos, piadas engraçadinhas, uma trilha sonora agradável e de preferência um final feliz (verossímil ou não) bastam para que a experiência seja positiva por aqueles que procuram apenas uma hora e meia de diversão descompromissada. "Amor à distância", estrelado por Drew Barrymore em 2010 não é uma exceção: simples, simpático - e talvez por isso mesmo pouco memorável -, é um filme capaz de deixar qualquer um com sorriso no rosto, desde que não haja grandes expectativas. Seguindo à risca a fórmula já exaustivamente testada e aprovada, o primeiro filme de ficção da documentarista Nanette Bernstein ganha pontos, no entanto, a apostar em algumas piadas mais adultas e eleger como maior vilão não uma ex-namorada vingativa ou mal-entendidos romanescos, mas sim uma circunstância bem mais prosaica: a distância geográfica.

Erin Langford (Drew Barrymore, repetindo com graça a personagem amalucada que salvou sua carreira) é uma jornalista de 31 anos que ainda busca a realização profissional, sempre adiada por sua tendência a valorizar mais seus relacionamentos do que sua incipiente . Às vésperas de deixar um estágio em Nova York para voltar a sua São Francisco natal, ela conhece e se apaixona por Garrett Scully (Justin Long), que trabalha em uma gravadora, paparicando bandas adolescentes enquanto não dá seu pulo do gato musical. Quando ela volta para casa, depois de um rápido idílio amoroso, os dois resolvem manter o namoro à distância, mesmo plenamente conscientes das dificuldades do pacto de fidelidade a que se propõem. Aos poucos, porém, eles percebem que a coisa não será assim tão simples e cor-de-rosa como pretendiam. Saudoso, ele se apoia nos pouco confiáveis amigos, Dan (Charlie Day) e Box (Jason Sudeikis), enquanto ela não chega a ser propriamente incentivada pela irmã mais velha, Corinne (Christina Applegate) - que passa os dias cuidando do marido e dos filhos pequenos.

 

O humor de "Amor à distância" surge, como se poderia imaginar, a partir de seus coadjuvantes - ainda que os protagonistas sejam adoráveis e carismáticos. Tanto os companheiros de Garrett quanto a família de Erin são o tempero ideal de uma história de amor ligeiramente inspirada pela experiência real de um amigo do roteirista Geoff  LaTulippe (provavelmente muito disfarçada e exagerada em sua transposição para as telas). Todas as situações decorrentes do relacionamento atípico do casal central são tratadas com carinho e leveza - os longos e saudosos telefonemas, as conversas diante da tela do computador, os temores (infundados ou não) de infidelidade, as dúvidas em relação ao prosseguimento do namoro, a falta de sexo, as dificuldades logísticas de um reencontro - e, ilustrados por uma trilha sonora das melhores (The Cure, The Pretenders). Drew Barrymore e Justin Long (que já foram namorados na vida real) apresentam uma química das mais certeiras e mesmo que algumas sequências flertem com o vulgar (apesar de bastante engraçadas), jamais ultrapassam os limites esperados para o gênero - e servem para conduzir a história, sem prejuízos para seu ritmo ou foco. Tudo isso, somado a acertada opção de Bernstein em não forçar a mão no drama, fazem do filme uma sessão praticamente sem contra-indicações.

Não exatamente um sucesso estrondoso de bilheteria, "Amor à distância" é mais um exemplar na lista de produções inofensivas estreladas por Drew Barrymore - ao lado de "Afinado no amor" (1998), Para sempre Cinderela" (1998), "Nunca fui beijada" (1999) e "Como se fosse a primeira vez" (2004). Seu público-alvo sabe o que esperar de cada um de seus filmes. E não é isso que se chama de conforto?

quinta-feira

MEU QUERIDO PRESIDENTE

 


MEU QUERIDO PRESIDENTE (The American president, 1995, Universal Pictures/Castle Rock Entertainment, 114min) Direção: Rob Reiner. Roteiro: Aaron Sorkin. Fotografia: John Seale. Montagem: Robert Leighton. Música: Marc Shaiman. Figurino: Gloria Gresham. Direção de arte/cenários: Lillu Kilvert/Karen O'Hara. Produção executiva: Charles Newirth, Jeffrey Stott. Produção: Rob Reiner. Elenco: Michael Douglas, Annette Bening, Michael J. Fox, Martin Sheen, Richard Dreyfuss, Samantha Mathis, Anna Deavere Smith, Shawna Waldron. Estreia: 08/11/95

Indicado ao Oscar de Trilha Sonora Original (Comédia ou Musical)

Às vezes tudo que um diretor de cinema precisa é de uma comédia romântica para demonstrar que também tem um lado menos denso - e de quebra deixar para trás um fiasco homérico. Depois que seu "O anjo da guarda" (1994) fracassou gigantescamente nas bilheterias e foi massacrado pela crítica, Rob Reiner percebeu que a forma de fazer as pazes com o público e com o sucesso seria retornar ao gênero que já havia lhe dado a oportunidade de criar um clássico contemporâneo. Sendo assim, seis anos depois que Meg Ryan entrou para a história fingindo um orgasmo em pleno restaurante lotado - em "Harry & Sally: feitos um para o outro" - uma nova história de amor inofensiva e elegante chegava às telas com sua assinatura, mas dessa vez, com um pequeno upgrade em relação a seus protagonistas: em vez de um casal normal no começo dos trinta anos e vivendo em uma fotogênica Nova York, os personagens principais de "Meu querido presidente" são uma lobista ambiental e um quarentão viúvo que é ninguém menos que o presidente dos EUA.

Andrew Sheperd (interpretado com charme por Michael Douglas) está chegando à segunda metade de seu mandato como presidente, com alto índice de aprovação do eleitorado e sem causar maiores problemas junto a seus correligionários do Partido Democrata. Eleito logo após a morte da esposa, vítima de câncer, Sheperd é visto como um pai dedicado (de uma filha pré-adolescente) e de uma integridade a toda prova - para desgosto de seu maior rival, o republicano Bob Rumson (Richard Dreyfuss), à espera de qualquer deslize para tentar suplantá-lo em uma nova e próxima eleição. A chance de ouro de Rumson chega quando entra em cena Sydney Ellen Wade (Annette Bening), uma competente e conhecida lobista lutando pela aprovação de uma lei a favor do meio-ambiente. Encantado pela inteligência e pela sensibilidade de Sydney, o presidente se deixa seduzir pela possibilidade de um novo romance - até que seus oponentes resolvem apelar para táticas pouco elogiáveis com o intuito de destruir suas chances de reeleição. Resta a ele decidir-se, então, pelo amor ou pelo poder.

Escrito por Aaron Sorkin - criador e roteirista da bem-sucedida série "The West Wing", que também trata dos bastidores da política norte-americana -, "Meu querido presidente" não tenta ser um retrato fiel dos meandros da Casa Branca e seus adendos. Pelo contrário, o filme de Reiner apresenta uma visão romântica e idealizada, quase a ponto de tornar-se maniqueísta: enquanto Sheperd é retratado como bom moço, honesto e incapaz de qualquer deslize deliberado, seu rival - vivido por Richard Dreyfuss nitidamente à vontade - é a epítome da política como algo venal, sujo e amoral. Entre os dois extremos, está a heroína de Annette Bening, mostrada como uma mulher independente, bem-sucedida e respeitada que, no entanto, não escapa de ser a típica protagonista de histórias de amor direcionadas aos fãs do gênero: mesmo tentando manter a pose de alguém que põe a carreira acima da vida pessoal, basta um encontro regado a belas roupas, boa bebida e uma rodada de dança para que suas prioridades entrem em xeque. São poucos os momentos em que Reiner (que conduz o filme com sobriedade mas nunca a ironia que se poderia esperar) deixa sobressair a argúcia característica da obra mais famosa de Sorkin - somente quando entram em cena os assessores de Sheperd, interpretados por Martin Sheen e Michael J. Fox, é que se pode reconhecer seu texto quase cínico (é de se imaginar como seria seu roteiro original, que contava com 385 páginas).

Indicado ao Oscar de melhor trilha sonora original (comédia ou musical), "Meu querido presidente" é um filme que, mesmo longe de ser brilhante, jamais subestima o espectador. Oferece um casal central extremamente simpático (Bening ficou com o papel para o qual foram consideradas Jessica Lange, Emma Thompson, Michelle Pfeiffer e Susan Sarandon), uma história sem sobressaltos ou ousadias temáticas e narrativas e uma atmosfera romântica e adulta rara em filmes comerciais de sua época - vale lembrar que foi o ano de blockbusters como "Toy story", "Pocahontas", Duro de matar 3" e "Ace Ventura 2", nenhum deles exatamente apropriado para quem desejava apenas sentir-se apaixonado ao entrar em uma sala de exibição. Delicado mas pouco memorável, ao menos serviu para deixar para trás o fracasso de "O anjo da guarda" - pelo menos até o filme seguinte de Reiner, "Fantasmas do passado", que também não foi exatamente um sucesso.

quarta-feira

TESTEMUNHA FATAL

 


TESTEMUNHA FATAL (Eyewitness, 1981, 20th Century Fox, 103min) Direção: Peter Yates. Roteiro: Steve Tesich. Fotografia: Matthew F. Leonetti. Montagem: Cynthia Scheider. Música: Stanley Silverman. Figurino: Hilary Rosenfeld. Direção de arte/cenários: Phillip Rosenberg/Gary J. Brink, Edward Stewart. Produção: Peter Yates. Elenco: William Hurt, Sigourney Weaver, Christopher Plummer, James Woods, Morgan Freeman, Pamela Reed. Estreia: 13/02/81

Uma história de amor que não convence. Um filme de suspense que não empolga. E uma trama policial incapaz de despertar o menor interesse no espectador. É difícil acreditar que por trás de "Testemunha fatal" exista uma equipe que conta com um diretor de prestígio, um roteirista vencedor do Oscar e um elenco composto por atores acima de qualquer suspeita. Primeiro trabalho de Peter Yates depois do sucesso de "O vencedor" (1979) - também escrito por Steve Tesich - e estrelado pelos então promissores William Hurt e Sigourney Weaver, o filme naufragou nas bilheterias e acabou se tornando uma nota de rodapé na carreira de seus astros. Hurt, que estava em vias de derreter as telas de cinema com "Corpos ardentes" - que também não foi um êxito comercial mas virou cult com o passar do anos - e Weaver - fresquinha da aclamação popular por "Alien: o oitavo passageiro" (1979) - já eram atores de grande talento, mas nem mesmo eles foram capazes de esconder as inconsistências do roteiro e a apatia da direção - algo surpreendente quando se trata de Yates, um cineasta capaz de grandes feitos quando de posse de um bom material.

Escrito como uma fusão de duas histórias incompletas de Steve Tesich - que ganhou um Oscar por "O vencedor" -, o roteiro de "Testemunha fatal" deixa claro, desde o início, a fragilidade de sua trama central e de seus personagens. O filme começa com o assassinato de um milionário vietnamita, morto em seu escritório, localizado em um arranha-céu de Manhattan. Para cobrir o caso é escalada a jornalista Tony Sokolow (Sigourney Weaver) - a ocasião perfeita para que o zelador Daryll Deever (William Hurt) se aproxime dela, seu maior objeto de desejo. Para mantê-la sempre por perto, Deever dá a entender que sabe mais do que aparenta sobre o crime - e enquanto a bela repórter vai se deixando seduzir por sua persistência, acaba por despertar os ciúmes de seu noivo, Joseph (Christopher Plummer), um milionário frio e pouco afeito a demonstrações de carinho. O romance nascente entre duas personalidades tão díspares vai se tornando mais profundo a cada passo das investigações - que leva à possível culpa de Aldo (James Woods), colega de Deever e desafeto público da vítima.
 
 
Assumidamente pouco propenso a reviravoltas e tramas complexas, sempre preferindo dedicar-se aos personagens do que às histórias que conta, Steve Tesich erra feio em ambos os quesitos em seu trabalho em "Testemunha fatal": enquanto o enredo policial falha imensamente em envolver o espectador (o nome do culpado do crime e seus motivos para tal não são nem de longe interessantes), o romance entre Tony e Daryll tampouco empolga, principalmente devido à falta de profundidade oferecida a eles: em nenhum momento se sabe mais do que o extremamente básico a respeito deles. Daryl é apenas um zelador solitário apaixonado por uma repórter de TV famosa, a ponto de gravar seus programas para assistir repetidas vezes - e que parece mais um stalker do que um romântico. Tony é uma jornalista popular, que tenta (mas não muito) fugir de sua vida privilegiada de filha de milionários e que não demonstra nada mais do que ambição profissional em sua relação com seu admirador. A paixão que surge entre eles é repentina demais para ser crível e é desenvolvida com preguiça e falta de imaginação pelo roteiro - não há sequer uma única cena que transmita qualquer lampejo de química entre Hurt e Weaver, que voltariam a fazer parte do mesmo filme em outras duas ocasiões ("A vila", de 2004, e Ponto de vista", de 2008).

E se o roteiro de Tesich incomoda por sua superficialidade, o mesmo pode ser dito da direção de Peter Yates. Imprimindo um ritmo enfadonho a seu filme, Yates parece não fazer a menor questão de conquistar o interesse da plateia - e falha em criar qualquer atmosfera de tensão ou romantismo. Desperdiçando um elenco de ótimos atores e conduzindo a narrativa de forma apática - a ponto de conceber um final morno e anticlimático que apenas reitera sua pouca inspiração -, o cineasta, que voltaria ao Oscar com o belo "O fiel camareiro" (1983), mostra que cinema é, antes de qualquer coisa, um conjunto de fatores e talentos que, quando não devidamente azeitados, pode dar muito errado.

terça-feira

CONCORRÊNCIA DESLEAL

 


CONCORRÊNCIA DESLEAL (Concorrenza sleale, 2001, Medusa Films/Massfilm/Agidi, 110min) Direção: Ettore Scola. Roteiro: Ettore Scola, Furio Scarpelli, Silvia Scola, Giacomo Scarpelli, estória de Furio Scarpelli. Fotografia: Franco Di Giacomo. Montagem: Raimondo Crociani. Música: Armando Trovajoli. Figurino: Odette Nicoletti. Direção de arte/cenários: Luciano Ricceri/Ezio Di Monte. Produção: Franco Committeri. Elenco: Diego Abatantuono, Sergio Castellitto, Gérard Depardieu, Antonella Attili, Elio Germano, Sabrina Impacciatore. Estreia: 23/02/2001

Itália, 1938. Umberto Melchiori tem uma loja de roupas sob medida e, mais do que o orgulho que tem do negócio que acompanha sua família há gerações, considera uma roupa bem talhada uma forma de arte subestimada. Católico praticante e marido dedicado à família - incluindo o cunhado folgado -, ele teria a vida tranquila que pediu a Deus se não fosse Leone Della Rocca, seu vizinho e nêmesis. Judeu e dono de uma loja de roupas prontas, Leone incomoda seu concorrente principalmente por não ter a mesma preocupação estética, preferindo conquistar seus clientes com preços atrativos e a praticidade de uma confecção moderna. Vivendo às turras - a ponto de chegarem às vias de fato -, Umberto e Leone nem desconfiam do romance Romeu e Julieta de seus filhos jovens, e de certa forma só concordam (tacitamente) com a amizade de seus dois caçulas, cujos olhos atônitos e inocentes são as testemunhas de uma rotina banhada a rusgas e constantes momentos de tensão. A rivalidade entre os dois vizinhos, porém, sofrerá uma profunda transformação com a ascensão de Hitler e o recrudescimento do antissemitismo - que fará com que a relação entre suas famílias assuma nuances inesperadas e/ou corajosas.

O 35º longa-metragem do diretor italiano Ettore Scola, lançado em 2001, não foge de sua elogiada sensibilidade quanto a relações interpessoais durante períodos históricos turbulentos. Assim como "Um dia muito especial" (1977) centralizava seu olhar no idílio entre uma dona-de-casa frustrada e um funcionário público homossexual durante a visita de Hitler à Itália, "Concorrência desleal" centraliza seu foco nas consequências funestas da adesão do país à política de Mussolini - e posteriormente às práticas segregacionistas e criminosas da Alemanha nazista. Com um roteiro em tom de crônica que privilegia os momentos mais pessoais em detrimento do didatismo, Scola apresenta, diante do espectador, tipos agradáveis e de fácil identificação - as crianças pensando em travessuras e em formas de chamar a atenção das belas mulheres a seu redor, a dupla de jovens apaixonados, o cunhado pouco afeito ao trabalho, o professor politicamente antenado - como um artifício narrativo leve, para que, em seu terço final, possa estabelecer, com um viés mais sério e melancólico, sua real intenção de emocionar sem apelar para qualquer tipo de excesso sentimental.

 

Mesmo sem o impacto dos melhores trabalhos de Scolla, "Concorrência desleal" não deixa de lado as principais características de sua vasta e prestigiada filmografia. Dotada do delicioso senso de humor italiano e realizada com o inegável talento de seu realizador em buscar a grandeza de seus personagens (sejam eles protagonistas ou coadjuvantes), a produção estrelada por Sergio Castellitto e Diego Abatantuono - ambos com desempenhos memoráveis - é extremamente feliz em sua tentativa de criar uma atmosfera lúdica que vai, gradativamente, se tornando mais pesada e sufocante. Sem forçar situações, o roteiro conduz a trama em um ritmo que permite ao espectador intercalar momentos calorosos com sequências da mais pura poesia, em que a natureza humana, com todas as suas idiossincrasias, se sobrepõe ao pesadelo fascista. Emocionante ao retratar pessoas que deixam de lado rusgas pessoais em nome de algo maior, o filme de Scolla reitera uma fé na humanidade de que somente cineastas com sua sensibilidade são capazes. A bela trilha sonora, de Armando Trovaioli, sublinha tal sentimento, sempre discreta e eficaz, assim como a competente reconstituição de época, que convida o público a uma viagem no tempo, e o elenco, impecável do primeiro ao último nome (e que pode se dar ao luxo de contar com Gérard Depardieu em um pequeno - mas representativo - papel).

O elenco, aliás, é crucial para o sucesso de "Concorrência desleal" em atingir seu objetivo de conquistar o coração do espectador. A química precisa entre Diego Abantuono (como Umberto) e Sergio Castellitto (na pele de Leone) é o ponto alto do filme: os dois atores constroem seus personagens sutilmente, apostando nos detalhes que os afastam e nos tons que os aproximam. Juntos em cena, os dois formam a base para todo o resto da produção, a pedra fundamental de uma história aparentemente frágil (e estabelecida em formato de crônica) que vai se desdobrando aos poucos diante do olhar do público. Sem ser exatamente um clássico instantâneo como "Nós que nos amávamos tanto" (1974) e "Feios, sujos e malvados" (1976) mas indiscutivelmente mais uma pequena obra-prima de seu diretor, "Concorrência desleal" é uma pérola que merece ser louvada como tal.

segunda-feira

JOGOS DE ADULTOS

 


JOGOS DE ADULTOS (Consenting adults, 1992, Hollywood Pictures, 99min) Direção: Alan J. Pakula. Roteiro: Matthew Chapman. Fotografia: Stephen Goldblatt. Montagem: Sam O'Steen. Música: Michael Small. Figurino: Gary Jones, Ann Roth. Direção de arte/cenários: Carol Spier/Gretchen Rau. Produção executiva: Pieter Jan Brugge. Produção: Alan J. Pakula, David Permut. Elenco: Kevin Kline, Mary Elizabeth Mastrantonio, Kevin Spacey, Forest Whitaker, Rebecca Miller. Estreia: 16/10/92

Em 1982, o diretor Alan J. Pakula assinou uma de suas obras-primas, "A escolha de Sofia", que rendeu o Oscar de melhor atriz à Meryl Streep e marcou a estreia de Kevin Kline no cinema. Dez anos depois, cineasta e astro voltaram a se encontrar em "Jogos de adultos" - mas, já com Kline consagrado com uma estatueta de coadjuvante por "Um peixe chamado Wanda" (1988), o reencontro ficou muito longe de ser memorável. Vindo do sucesso apenas razoável de "Acima de qualquer suspeita" (1990) - que tornou anêmico o romance best-seller de Scott Turow - e antes de unir Julia Roberts e Denzel Washington na versão cinematográfica de "O Dossiê Pelicano", de John Grisham, Pakula decepcionou crítica e público com uma produção insossa que em momento algum lembra o brilhantismo de seus melhores trabalhos. Com um roteiro preguiçoso que praticamente evita qualquer tipo de suspense e uma direção quase mecânica, "Jogos de adultos" falha em todos os quesitos - e nem a presença de um iniciante Kevin Spacey oferece maiores motivos de entusiasmo.

A trama começa de forma promissora: entediados com a vida doméstica e com a solidão a dois imposta pela ida da filha à universidade, o casal formado por Richard e Priscilla Parker (Kevin Kline e Mary Elizabeth Mastrantonio) vê sua rotina alterada pela chegada à vizinhança de outro casal, bem menos convencional. Eddy e Kay Otis (Kevin Spacey e Rebecca Miller) não apenas se tornam amigos próximos mas também apresentam aos vizinhos um estilo de vida mais leve e divertido - e até mesmo quando Eddy demonstra não ser exatamente uma pessoa muito ética profissionalmente isso não atrapalha suas relações. A coisa começa a mudar de figura, porém, quando o simpático e sedutor novo amigo surge com uma ideia ousada: percebendo a atração de Richard por sua mulher e ele próprio encantado por Prsicilla, Eddy propõe uma troca de casais. Depois de muito hesitar, Richard aceita a proposta - mas quando Kay aparece violentamente assassinada, ele passa a ser o principal suspeito. Certo de que Eddy tem responsabilidade pelo crime, o até então pacato compositor de jingles comerciais luta para provar sua inocência e comprovar a culpa de seu carismático vizinho - agora viúvo e apaixonado por Priscilla.

 

Chega a ser inacreditável que um cineasta do porte de Pakula, que dotou produções como "A trama" (1974) e "Todos os homens do presidente" (1976) de um senso impecável de ritmo, seja o mesmo de "Jogos de adultos": com uma direção sem criatividade e uma edição monótona que impede qualquer chance de despertar interesse no espectador, seu filme sofre de uma absoluta falta de energia. Anêmico a ponto de anestesiar até mesmo aos normalmente bons atores que tem em mão - além dos dois Kevins o elenco conta ainda com Forest Whitaker -, o compasso do roteiro de Matthew Chapman (que mais tarde cometeria o problemático "A cor da noite", estrelado por Bruce Willis em 1994) não permite qualquer envolvimento do público, perdido (no pior sentido da palavra) em uma trama cuja reviravolta é previsível ainda no primeiro ato. Sem aprofundar nenhuma das questões levantadas em seu começo - a crise no casamento dos protagonistas, a personalidade dúbia do vilão, as engrenagens da justiça -, sua história peca principalmente ao negar à audiência os principais elementos de um filme de suspense: o mistério e a catarse: fica evidente desde os primeiros minutos que Eddy não é flor que se cheire e que sua insistência em movimentar a vida amorosa dos dois casais tem segundas e terceiras intenções, e o roteiro não faz a menor questão de subverter expectativas ou tomar rumos que não os mais óbvios. E isso sem falar no ato final, de uma pobreza criativa sem tamanho.

É uma pena que a soma de tantos talentos não impeça que "Jogos de adultos" seja uma produção tão esquecível - para não dizer medíocre. Nem mesmo Kevin Kline e Kevin Spacey, conhecidos por seus dotes dramáticos, conseguem oferecer qualquer tipo de energia que amenize a sensação de apatia que perpassa todos os 99 minutos (que parecem ser mais longos do que o normal) de projeção. Uma mancha desnecessária no currículo de todos os envolvidos.

sexta-feira

O VIOLINISTA QUE VEIO DO MAR

 


O VIOLINISTA QUE VEIO DO MAR ( Ladies in Lavender, 2004, UK Film Council/Baker Street/Future Films, 104min) Direção: Charles Dance. Roteiro: Charles Dance, conto de William J. Locke. Fotografia: Peter Biziou. Montagem: Michael Parker. Música: Nigel Hess. Figurino: Barbara Kidd. Direção de arte/cenários: Caroline Amies/David Hindle. Produção executiva: Bill Allan, Charles Dance, Emma Hayter, Robert Jones. Produção: Elizabeth Karlsen, Nik Powell. Elenco: Judi Dench, Maggie Smith, Daniel Bruhl, Natascha McElhone, Freddie Jones, Toby Jones, Miriam Margoyles. Estreia: 14/6/2004 (Festival de Taormina)

Conhecido por seu trabalho como intérprete em produções de prestígio como "Assassinato em Gosford Park" (2001) e "O jogo da imitação" (2014) e séries premiadas como "Game of thrones" e "The crown", o ator britânico Charles Dance tem, em seu currículo, uma interessantíssima incursão como diretor. Lançado discretamente em 2004, "O violinista que veio do mar" já seria imperdível por ter seu elenco liderado pelas espetaculares Judi Dench e Maggie Smith, mas, além disso - e de ser o primeiro trabalho em língua inglesa do alemão Daniel Bruhl -, a adaptação do conto de William J. Locke é um filme acima da média, com um ritmo delicado que ecoa as belas paisagens da costa inglesa e brinda o espectador com personagens fascinantes e uma trama que surpreende pelos desdobramentos inusitados (mas nunca inverossímeis ou tirados da manga). Valorizado pelos desempenhos exemplares de Dench e Smith - o que não chega a ser uma surpresa -, o filme de Dance é um deleite para os fãs de histórias contadas com sutileza e sobriedade.

A trama gira em torno de Ursula (Judi Dench) e Janet (Maggie Smith), duas irmãs viúvas que moram juntas em um chalé na costa da Cornualha, poucos anos antes da II Guerra Mundial. Sua rotina pacata e sem grandes acontecimentos é abalada depois de uma violenta tormenta, quando um jovem desacordado é encontrado na praia. A princípio temerosas de colocar um desconhecido dentro de casa, logo elas resolvem cuidar do rapaz, que não fala sua língua e cuja origem é uma incógnita. Aos poucos sua comunicação vai ficando menos complicada: ao aprender noções rudimentares de inglês, o novo hóspede se identifica como Andrea, um polonês que, a caminho dos EUA para tentar a sorte como violonista, sobreviveu a um naufrágio. Enquanto se recupera dos ferimentos, Andrea, sem perceber, despertar sentimentos há muito enterrados nas duas solitárias idosas - que passam a temer sua partida especialmente quando ele inicia uma amizade com a extrovertida Olga (Natasha McElhone), uma bela russa que mora nas proximidades do chalé.

 

Fazendo pequenas alterações na história original - como a transferência para os anos pré-I Guerra Mundial e o desfecho da relação entre os protagonistas -, o roteiro do também diretor se apoia em pequenos momentos, emoções discretas e diálogos curtos (mas repletos de subtextos). Acostumadas a atuações minimalistas e sutis, Judi Dench e Maggie Smith voltam a encantar com desempenhos comoventes, pontuadas pelo bom trabalho do alemão Daniel Bruhl em seu primeiro filme falado em inglês: a interação entre os três personagens principais são o que há de melhor na obra, em uma dinâmica pontuada de mistério, sedução e até um pouco de suspense. Deixando sempre no ar uma série de possibilidades que impedem que o espectador adivinhe os próximos acontecimentos, o filme de Dance imprime uma sensação deliciosa de uma história contada em frente à lareira, com personagens humanos e bem escritos diante de situações que caminham entre o romântico e trágico. Só não é ainda melhor por sua falha em explorar a contento a relação entre o misterioso violinista e Olga - um relacionamento que nunca deixa exatamente claro a que veio (a não ser precipitar o ato final da trama).

Em seu primeiro (e até agora único) trabalho como diretor, Charles Dance mostra-se atento às sutilezas, tanto de sua trama quanto de suas estupendas atrizes. Talvez pelo fato de ser também um intérprete, Dance valoriza a construção paulatina de climas e relações entre seus personagens, enfatizando-as mais do que à própria trama, que serve, na verdade, como uma forma de retrato da solidão e suas vicissitudes. Narrado em um ritmo delicado que não deixa espaço para cortes bruscos e catarses exageradas, "O violinista que veio do mar" é um oásis de paz e sensibilidade - e mais um exemplo do talento dos colaboradores envolvidos.

quinta-feira

ENCAIXOTANDO HELENA

 


ENCAIXOTANDO HELENA (Boxing Helena, 1993, Mainline Pictures/MGM Pictures, 107min) Direção: Jennifer Chambers Lynch. Roteiro: Jennifer Chambers Lynch, estória de Philippe Caland. Fotografia: Bojan Bazelli, Frank Byers. Montagem: David Finfer. Música: Graeme Revell. Direção de arte/cenários: Paul Huggins/Sharon Braunstein. Produção executiva: James R. Schaeffer, Larry Sugar. Produção: Philippe Caland, Carl Mazzocone. Elenco: Julian Sands, Sherilyn Fenn, Bill Pullman, Art Garfunkel, Betsy Clark, Kurtwood Smith. Estreia: Janeiro/93 (Festival de Sundance)

Antes mesmo de chegar às telas - o que aconteceu no Festival de Sundance de 1993 -, o filme de estreia da diretora Jennifer Lynch já estava nas páginas das publicações sobre cinema. Nem tanto pela curiosidade a respeito do primeiro trabalho da filha do prestigiado David Lynch mas sobretudo a respeito dos problemas de bastidores, que incluíam um clamoroso processo contra a atriz Kim Basinger  e a escolha por um elenco sem grandes astros depois da possibilidade de contar com Ed Harris ou John Malkovich no principal papel masculino. Fracasso de bilheteria que dividiu a crítica e comprometeu a nascente carreira da cineasta - que assinou alguns longa-metragens de pouca repercussão antes de dedicar-se à televisão -, "Encaixotando Helena" esbarrou principalmente na indecisão entre ser uma perturbadora história de amor ou um filme de suspense erótico: não agradou a nenhum público-alvo e entrou para a história mais como curiosidade do que exatamente por suas qualidades artísticas.

Segundo a própria Jennifer, seu roteiro foi escrito em dois meses quando ela tinha apenas dezenove anos. Não é de duvidar, a julgar pela superficialidade da trama e pela construção de seus personagens repleta de clichês. O protagonista, Nicholas Cavanaugh (Julian Sands) pode até carregar traumas de infância causados pelo excesso de sensualidade de sua mãe - algo que atrapalha sua relação com a colega de profissão, Anne Garret (Betsy Clark), disposta a um compromisso mais sério -, mas tais sentimentos jamais ultrapassam o óbvio. A bela Helena (Sherylin Fenn), apesar de demonstrar uma personalidade forte e uma certa prepotência em seu relacionamento com Ray O'Malley (Bill Pullman), não repete tais atitudes quando confrontada com um destino pouco feliz nas mãos de Nicholas. E toda a tensão sexual fetichista advinda da situação central não consegue escapar de um tom de fantasia machista, prejudicado pela estética pouco sofisticada e pela trilha sonora invasiva de Graeme Revell. O fato de Lynch ter recebido o aval do produtor Carl Mazzocone para assumir a direção do filme para que ele tivesse um olhar feminino não altera a percepção de que, apesar das intenções, "Encaixotando Helena" não passa de uma tentativa mal-sucedida de mesclar horror gótico, romance e sexo.


 

A trama engendrada por Jennifer Lynch gira em torno de Nick Cavanaugh, um médico bem-sucedido profissionalmente, atormentado por lembranças de uma infância dominada pela sensualidade avassaladora da mãe. Com a morte da matriarca, ele se transfere para a isolada mansão da família e se entrega a uma obsessão por Helena, por quem se apaixonou perdidamente depois de um breve encontro. Nem mesmo seu namoro hesitante com uma colega de trabalho, Anne, o afasta dos pensamentos constantes de reconquistar a bela e sedutora jovem, que simplesmente ignora suas tentativas de aproximação e o trata com um desprezo quase debochado. A relação entre eles sofre uma reviravolta, no entanto, quando um acidente de carro joga Helena nos braços de Nick - depois de amputar as duas pernas de sua musa, ele a esconde em sua propriedade e começa um intensivo jogo de sedução, com o objetivo de convencê-la de seu amor e dedicação. A princípio chocada com sua nova situação, Helena aos poucos vai percebendo que não há maneira de fugir de sua triste sina.

Helena, a heroína trágica criada por Jennifer Lynch, parecia, no começo dos anos 1990, por pouco não caiu nas mãos de Madonna, então em sua cruzada sensual que incluía o álbum "Erotica" e o livro de fotografias "Sex". A saída da estrela pop do projeto abriu espaço para outro símbolo sexual inquestionável do momento, Kim Basinger, parte do inconsciente popular masculino desde suas aventuras ao lado de Mickey Rourke no cult movie "9 1/2 semanas de amor" (1986). Basinger chegou a se comprometer com a produção até que, inesperadamente, abandonou o barco, para fúria dos produtores, que foram à justiça e a condenaram ao pagamento de uma multa de nove milhões de dólares. A saída, tanto de Madonna quanto de Basinger, alterou o tom de "Encaixotando Helena", que tornou-se mais explícito com a chegada de Sherilyn Fenn, cujo rosto angelical já havia sido explorado pelo pai de Jennifer, David, em sua série de televisão "Twin Peaks". Deslumbrante, mas sem alcance dramático o bastante para driblar as falhas do roteiro e a insegurança da direção, Fenn faz pouco mais do que enfeitar a tela, deixando o esforço maior para Julian Sands, que tenta ao máximo extrair verossimilhança em uma trama que, apesar da ousadia de sua premissa, se acovarda em um final decepcionante. Prometendo muito mais do que entrega (em termos de trama e resultado final), "Encaixotando Helena" pode até lembrar, em sua atmosfera onírica, a obra de David Lynch. Mas a estreia de Jennifer ficou muito aquém do que o DNA poderia sugerir.

quarta-feira

PREMONIÇÕES


PREMONIÇÕES (Premonition, 2007, TriStar Pictures/MGM, 96min) Direção: Mennan Yapo. Roteiro: Bill Kelly. Fotografia: Torsten Lippstock. Montagem: Neil Travis. Música: Klaus Badelt. Figurino: Jill Ohanneson. Direção de arte/cenários: Dennis Washington/Raymond Pulmilia. Produção executiva: Nick Hamson, Andrew Sugerman, Lars Sylvest. Produção: Ashok Amritraj, Jennifer Gibgot, Jon Jashni, Sunil Perkash, Adam Shankman. Elenco: Sandra Bullock, Julian McMahon, Nia Long, Kate Nelligan, Peter Stormare, Shyann McClure, Courtney Taylor Burness. Estreia: 12/3/2007

Quando "Premonições" estreou, no começo de 2007, a carreira de Sandra Bullock estava em uma encruzilhada. Seus dias como "a nova Julia Roberts" já estavam encerrados - sua última comédia a levar multidões às salas de exibição, "Miss Simpatia" já tinha sete anos de idade - e ela ainda não havia se reinventado como a atriz séria que levaria um Oscar por "Um sonho possível" (2009). Nesse meio do caminho entre a popularidade e o prestígio, alguns filmes buscavam um novo sucesso com artifícios variados, como continuações ("Miss Simpatia 2: armada e poderosa", de 2005) e o reencontro com Keanu Reeves ("A casa do lago", de 2006). Dirigida pelo alemão Mennan Yapo - conhecido pelo sucesso "Adeus, Lênin" (2000) -, a trama de suspense com lances místicos não chegou a ser um estouro de bilheteria, mas rendeu quatro vezes seu orçamento de 20 milhões de dólares e, se não agradou completamente à crítica, se mostrou acima da média dentro de um gênero perigosamente à beira do esgotamento.

Usando e abusando das caras e bocas que lhe renderam fama e dinheiro, Bullock interpreta Linda Hanson, a feliz esposa do executivo Jim (Julian McMahon) e mãe de duas pré-adolescentes no auge da energia. Sua rotina em uma bela casa no subúrbio é radicalmente alterada quando ela recebe a trágica notícia de que seu marido morreu em um acidente de carro. Devastada e inconsolável, Linda está prestes a entrar em uma severa depressão quando, para sua surpresa, acorda no dia seguinte ao funeral de Jim e descobre que ele está vivo. Sua confusão aumenta ainda mais nos dias seguintes, que parecem alternar-se em duas realidades alternativas: em uma delas, é preciso lidar com a dor da perda e descobertas a respeito das mentiras que sustentavam seu casamento; em outra, a vida como ela conhece permanece a mesma, sem o fantasma do acidente pairando sobre suas cabeças. O que na verdade está acontecendo - e Linda chega a essa conclusão mesmo sendo considerada desequilibrada pelos amigos e familiares - é que, por alguma razão, os dias estão fora de ordem cronológica, e ela precisa encontrar uma maneira de reverter o triste destino de sua história de amor.


 

Feliz em estabelecer sua intrigante premissa, o roteiro de Bill Kelly - autor da comédia "De volta para o presente", estrelado por Brendan Fraser e Alicia Silverstone em 1999 - falha, no entanto, em oferecer uma explicação plenamente satisfatória a ela. Apelando para um misticismo que pode não agradar a todos, deixa no ar uma sensação de potencial não completamente desenvolvido, apesar do terço final relativamente tenso e com um clímax surpreendente. Sandra Bullock exagera em boa parte dos 96 minutos de sessão, intercalando expressões de tristeza e assombro sem maiores nuances ou sutileza, mas é inegável que seu status de estrela segura bastante o interesse pela trama, assim como a presença de Julian McMahon, então astro da série "Nip/Tuck", que pouco tem a fazer em cena além de desfilar charme. Com personagens pouco aprofundados, tanto ele quando Bullock fazem o possível para dar-lhes uma consistência e uma coerência que muito faz falta no resultado final.

Para quem é fã de Sandra Bullock ou de produções de suspense com tons místicos e/ou sobrenaturais, "Premonições" é um prato cheio. Conduzido com segurança por Yapo - que resiste à tentação do caminho mais fácil e dribla com destreza os clichês do roteiro (mesmo que por momentos os utilize de forma sutil) - e recusando o tom de ironia que muitas vezes enfraquece as produções do gênero, o filme instiga o espectador desde os minutos iniciais com uma história que fala sobre amor, perdão e segundas chances. Não chega a ser brilhante, mas cumpre boa parte do que promete e deu a Sandra Bullock a oportunidade de mostrar-se competente o suficiente para uma nova (e mais séria) fase na carreira.

 

terça-feira

DOIS TIRAS MEIO SUSPEITOS

 


DOIS TIRAS MEIO SUSPEITOS (Partners, 1982, Paramount Pictures, 93min) Direção: James Burrows. Roteiro: Francis Veber. Fotografia: Victor J. Kemper. Montagem: Danford B. Greene, Stephen Lovejoy. Música: Georger Delerue. Figurino: Wayne Finkleman. Direção de arte/cenários: Richard Sylbert/George Gaines. Produção executiva: Francis Veber. Produção: Aaron Russo. Elenco: Ryan O'Neal, John Hurt, Kenneth McMillan, Robyn Douglas, Jay Robinson, Denise Galik. Estreia: 30/4/82

Para que se goste de "Dois tiras meio suspeitos" é preciso que se leve em conta que seu humor - como o título nacional deixa bem claro - se baseia basicamente em clichês e estereótipos homossexuais, o que, à época de seu lançamento (1982) não era uma questão que chegava a incomodar o público médio que havia ignorado de forma ostensiva o policial "Parceiros da noite" (1980) e lotado as salas de exibição para rir do casal gay de "A gaiola das loucas" (1978) - não por acaso escrito pelo mesmo Francis Veber dessa produção de baixo orçamento da Paramount que não era do agrado dos executivos do estúdio e naufragou nas bilheterias. Descrito pela crítica como um cruzamento entre o filme estrelado por Al Pacino - que narrava as desventuras de um detetive inserido no submundo gay nova-iorquino para encontrar um serial killer - e "Um estranho casal", protagonizado por Jack Lemmon e Walter Matthau em 1968, "Dois tias meio suspeitos" é um típico exemplar dos chamados buddy movies, mas acrescido de uma temática gay que o coloca em uma seleta lista de produções que ousaram desafiar o conservadorismo que ditava as regras do cinema norte-americano na virada da década de 1980. É possível inclusive afirmar que seu pífio desempenho comercial tem mais a ver com a mentalidade das plateias do que por sua falta de qualidade. Mesmo que não seja uma comédia memorável, a única incursão de James Burrows no cinema merece créditos por, de uma forma ou outra, colocar nas telas um protagonista gay simpático que não sofre de problemas familiares ou morre vitimado pela AIDS.

Kerwin (John Hurt) é um sargento da polícia de Los Angeles que não consegue disfarçar sua orientação sexual - o que lhe dá enorme dificuldade em encontrar um parceiro profissional. Para sua surpresa, no entanto, ele é chamado por seus superiores e descobre que foi escalado para investigar uma série de assassinatos de homossexuais, aparentemente pelo mesmo criminoso. Se a missão não é exatamente novidade, a forma encontrada pelo departamento para atingir seu objetivo é bastante peculiar: infiltrar dois policiais na comunidade gay local e, apresentando-os como um casal, fazê-los chegar à identidade do serial killer. Rejeitado por seus colegas no dia-a-dia, Kerwin vê no caso a possibilidade de adquirir respeito e prestígio com a solução dos crimes, mas não poderia imaginar a dificuldade que surge da ideia. Seu novo parceiro, o sargento Benson (Ryan O'Neal), além de heterossexual convicto, é mulherengo, pouco afeito a sutilezas e não exatamente fã das consequências que podem advir desse capítulo de sua carreira. Missão dada e missão aceita: Kerwin e Benson precisam não apenas investigar mortes violentas, mas aprender a conviver com suas diferenças - especialmente Benson, cujo medo de ser realmente confundido com um homem gay é tão grande quanto o de ser morto no cumprimento do dever.

 

James Burrows, o diretor de "Dois tiras meio suspeitos", tornou-se, décadas depois do lançamento do filme, o responsável pela condução de mais de 240 episódios da série "Will & Grace" - além de ter, no currículo, trabalhos em "Friends", "Mike & Molly", "Cheers", "Frasier" e da série que originou-se de seu único trabalho no cinema (apresentada entre 2012 e 2013). Seu timing para comédia é inegável, buscando sempre o melhor efeito para arrancar gargalhadas do público - algo não muito difícil com a presença sempre certeira de John Hurt, capaz de fazer rir com o mínimo gesto ou entonação. Voltando ao universo gay que já havia lhe rendido um Emmy e outros prêmios por sua atuação como Quentin Crisp em "Vida nua" (1975) - papel ao qual retornou em "An Englishman in New York" (2009) -, Hurt se destaca principalmente em comparação com Ryan O'Neal: depois de uma década de 1970 repleta de êxitos (e uma festejada colaboração artística com Stanley Kubrick), O'Neal entrava em um período problemático na carreira, enfileirando um fracasso atrás do outro e colecionando críticas negativas. Em "Dois tiras meio suspeitos" ele desfila seu charme quase ingênuo em situações constrangedoras das quais se desincumbe com relativa eficácia. Sua dupla com Hurt funciona essencialmente graças ao contraste avassalador não apenas em termos visuais, mas também - e principalmente - em estilos de vida. Mais do que uma trama policial razoavelmente interessante, o roteiro de Francis Veber trata da relação conflituosa entre seus personagens centrais - e do poder miraculoso da tolerância.

Apesar de apelar para algumas sequências que podem incomodar ao público mais suscetível ao politicamente correto, "Dois tiras meio suspeitos" cumpre o que promete desde seu cartaz: fazer rir. Não atinge os níveis de sofisticação de "A gaiola das loucas" - cuja ironia enfatizava a hipocrisia da sociedade francesa -, mas brinca com os elementos típicos da comédia com o objetivo de atingir plateias pouco afeitas ao universo gay. Não deu muito certo em termos financeiros - apesar do orçamento modesto a produção entrou para a lista dos fracassos comerciais da Paramount na década de 1980 -, mas é divertido o bastante para que seus problemas sejam relevados pelo espectador menos exigente. Em um mundo mais atento às diferenças e à tolerância pode soar quase ofensivo. Mas, diante do conservadorismo norte-americano de sua época, não deixa de ser um filme bastante ousado.

segunda-feira

O PODER DO AMOR

 


O PODER DO AMOR (Something to talk about, 1995, Warner Bros, 106min) Direção: Lasse Hallstrom. Roteiro: Callie Khouri. Fotografia: Sven Kykvist. Montagem: Mia Goldman. Música: Graham Preskett, Hans Zimmer. Figurino: Aggie Guerard Rodgers. Direção de arte/cenários: Mel Bourne/Roberta J. Holinko. Produção executiva: Goldie Hawn. Produção: Anthea Sylbert, Paula Weinstein. Elenco: Julia Roberts, Dennis Quaid, Robert Duvall, Kyra Sedgwick, Gena Rowlands, Brett Cullen. Estreia: 20/7/95

Nem sempre o encontro de talento, prestígio e popularidade resulta em um grande sucesso. "O poder do amor" é um exemplo claro dessa afirmação: mesmo com a união do celebrado diretor Lasse Hallstrom (então já indicado ao Oscar por "Minha vida de cachorro", de 1987), da roteirista Callie Khouri (oscarizada por "Thelma & Louise", de 1991) e da atriz Julia Roberts, o filme ficou muito aquém do esperado nas bilheterias e tampouco entusiasmou a crítica. Vendida como uma comédia romântica quando na verdade é um drama familiar quase sonolento, e lançado em um período de crise na carreira de Roberts - que vinha acumulando fracassos comerciais que ameaçavam seu status de grande estrela - a produção da Warner decepcionou tanto o estúdio (que esperava um estouro financeiro) quanto seus fãs, ansiosos por rever seu belo sorriso e seu carisma milionário, o que só voltaria a acontecer com "O casamento do meu melhor amigo", lançado dois anos mais tarde.

Além da direção burocrática de Hallstrom, "O poder do amor" sofre, basicamente, pela absoluta falta de humor de seu roteiro - uma surpresa quando se trata de Khouri - e por personagens que falham em despertar a simpatia do espectador. Até mesmo a protagonista, uma mulher traída e tentando refazer a vida, sofre com um desenvolvimento pouco interessante. Grace Bichon (interpretada no piloto automático por Julia Roberts) administra o haras de seu pai, Wyly King (Robert Duvall), e vive um casamento aparentemente perfeito com o sedutor Eddie (Dennis Quaid). Sua frágil felicidade sofre um baque, no entanto, quando ela descobre que seu marido tem um romance com uma colega de trabalho. Humilhada e ressentida, Grace vai morar com a irmã caçula, Emma Rae (Kyra Sedgwick) e, se recusando a qualquer contato com o ex-marido, passa a questionar o sistema de quase submissão a que as mulheres de sua família se sujeitam em relação aos homens que a cercam. Tal comportamento chega até sua mãe, Georgia (Gena Rowlands), que até então jamais havia percebido tal situação em seu relacionamento.

 

O roteiro de Callie Khouri, como não poderia ser diferente, oferece às personagens femininas um destaque maior do que aos homens da história. Isso não significa, no entanto, que elas sejam capazes de conquistar a plateia. Com diálogos frequentemente enfadonhos e que soam artificiais até mesmo recitados por atrizes do porte de Roberts, Rowlands e Sedgwick, a trama anda em círculos, dá espaço para histórias paralelas pouco atraentes - que envolvem o haras da família e um novo relacionamento pouco crível à protagonista - e sofre com uma indesculpável falta de charme. Nem mesmo os belos cenários, os imponentes cavalos e o elenco carismático são suficientes para disfarçar o ritmo claudicante imposto pela direção - uma surpresa, uma vez que o sueco Hallstrom tem enorme talento para sublinhar as características mais emocionais de seus filmes, como mostrou em "Regras da vida" (1999), que lhe rendeu uma segunda indicação ao Oscar. E se não bastasse o fato do desperdício de suas atrizes, o filme oferece oportunidades ainda menores a seus atores, relegados a segundo plano e com personagens quase patéticos - se tal opção é proposital para enfatizar a força das mulheres há formas menos simplórias de atingir seu objetivo do que fazer dos maridos da família King/Bichon dois babacas machistas e unidimensionais.

É uma pena que "O poder do amor" fique tão aquém das possibilidades de sua equipe de talentos. Seu marketing desastroso - certamente o público esperava uma comédia romântica leve e agradável e encontrou um pretensioso drama com ambições de emular o cinema europeu - foi apenas um dos culpados por fazer dele um dos trabalhos menos marcantes de Julia Roberts. Sem nenhuma cena marcante, uma trama pouco inventiva e uma narrativa cujo ritmo jamais permite o envolvimento do espectador, o filme só não é um desastre completo porque, apesar de tudo, seu elenco esforçado faz valer seus longos 106 minutos de duração - mesmo que a história seja esquecida pouco tempo depois do final da sessão.

A FOGUEIRA DAS VAIDADES

  A FOGUEIRA DAS VAIDADES (The bonfire of the vanities, 1990, Warner Bros, 125min) Direção: Brian DePalma. Roteiro: Michael Cristofer, roman...