INOCÊNCIA (Inocência, 1983, Embrafilme/Luis Carlos Barreto Produções Cinematográficas, 118min) Direção: Walter Lima Jr.. Roteiro: Walter Lima Jr., adaptação de Lima Barreto, romance de Visconde de Taunay. Fotografia: Pedro Farkas. Montagem: Raimundo Higino. Música: Wagner Tiso. Figurino: Diana Eichbauer. Direção de arte/cenários: Carlos Liuzzi. Produção: Lucy Barreto, Luiz Carlos Barreto. Elenco: Fernanda Torres, Edson Celulari, Sebastião Vasconcellos, Ricardo Zambelli, Fernando Torres, Rainer Rudolph, Chico Diaz, Chica Xavier, Jorge Fino. Estreia: 23/6/83
Publicado em 1872 como parte do Regionalismo brasileiro - uma escola literária posterior ao Romantismo e anterior ao Naturalismo -, o romance "Inocência" interessou ao cinema nacional desde o começo do século XX, com uma versão muda (dirigida pelo ítalo-brasileiro Vittorio Capellaro). Em 1949 ganhou uma nova adaptação, sob a direção de Luiz e Fernando de Barros (estrelada por Maria Della Costa e Sadi Cabral), mas foi somente em 1983 que o livro, escrito pelo Visconde de Taunay, parece ter encontrado sua forma cinematográfica definitiva. Com o lirismo do diretor Walter Lima Jr. a serviço de uma história de amor trágica e delicada, uma bela trilha sonora de Wagner Tiso e a escolha certeira de Fernanda Torres para o papel-título (em sua estreia no cinema), "Inocência" acabou por tornar-se uma das produções nacionais mais elogiadas dos anos 1980, saindo do Festival de Brasília com dois prêmios (direção e ator coadjuvante) e conquistando fãs por seu capricho técnico e artístico. Com base em uma adaptação feita pelo cineasta Lima Barreto, o roteiro de Lima Jr. encontra na fidelidade à obra original o caminho para o coração do espectador.
Em uma estrada do interior do Mato Grosso do século XIX, o jovem médico Cirino (Edson Celulari) se encontra com o fazendeiro Martinho Pereira (Sebastião Vasconcelos) e se oferece para, com seus conhecimentos profissionais, tratar da malária da filha do novo amigo. Inocência (Fernanda Torres) está há dias enferma, e assim que começa a melhorar - graças ao tratamento do desconhecido - chama a atenção do visitante, encantado por sua beleza e pela pureza de seus modos. Educada com rigidez pelo pai e prometida em casamento a Manecão (Ricardo Zambelli), amigo da família, Inocência é tida como uma princesa presa em uma redoma, a única mulher (além da empregada da casa) em um universo masculino e patriarcal, onde honra manchada se lava com sangue e as regras são todas ditadas pelos homens. O amor nascente entre ela e Cirino, portanto, surge como um potencial desafio ao status quo - já abalado por outra presença masculina, a do zoólogo alemão Meyer (Rainer Rudolph), deslumbrado pela adolescente.
Considerado um marco do Regionalismo, o livro de Taunay retrata com fidelidade os costumes típicos do mundo rural e as idiossincrasias de seu universo, apesar de contar com elementos também do Romantismo e do Realismo. O roteiro do diretor não abre mão de tais detalhes, utilizando-os como matéria-prima para uma trama que não se concentra apenas em uma história de amor proibido mas também como o desenho de uma época e de uma mentalidade próprias. Se Inocência parece servir apenas como um objeto - de desejo, de posse, de admiração platônica, de representação simbólica de um estado de coisas que não deve ser alterado -, a masculinidade tóxica a seu redor se desdobra em tentar, por quaisquer meios, impor sua pretensa superioridade. Não é surpresa que Inocência, criada em meio a um ambiente hostil no qual ela só tinha a opção de aceitar o que lhe era forçado, se apaixone por Cirino, um homem estudado, gentil e de modos delicados que contrastam com a bestialidade do pai, do noivo e até do anão mudo que lhe vigia dia e noite. Também não chega a surpreender que sua rebeldia romântica seja o gatilho de sua tragédia - filmada com a sutileza característica de Walter Lima Jr., sem pressa e repleta da poesia visual da câmera de Pedro Farkas, que explora a beleza juvenil e pálida de Fernanda Torres como se fosse uma estátua grega, inalcançável e fadada à desgraça.
E Fernanda, no auge da juventude - 17 anos à época da estreia do filme - já demonstra, em seu primeiro papel no cinema, a potência dramática que faria dela uma das maiores atrizes de sua geração. Ainda que quase silenciosa, sua Inocência é força motriz do filme, a catalisadora da trama - e seu trabalho encontra apoio no ótimo desempenho de Sebastião Vasconcelos e na elegância de Edson Celulari, dois extremos que sintetizam com eficiência a dicotomia crucial do romance de Taunay. Mesmo sem ousar na forma - a narrativa é simples e linear -, "Inocência" cumpre o que promete e entrega ao espectador uma história de amor à moda antiga, que respeita o material original e o engrandece com escolhas artísticas certeiras.
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