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DE OLHOS BEM FECHADOS


DE OLHOS BEM FECHADOS (Eyes wide shut, 1999, Warner Bros, 159min) Direção: Stanley Kubrick. Roteiro: Stanley Kubrick, Frederic Raphael, novela "Traumnovelle", de Arthur Schnitzler. Fotografia: Larry Smith. Montagem: Nigel Galt. Música: Jocelyn Pook. Figurino: Marit Allen. Direção de arte/cenários: Les Tomkins, Roy Walker/Lisa Leone, Terry Wells Sr.. Produção executiva: Jan Harlan. Produção: Stanley Kubrick. Elenco: Tom Cruise, Nicole Kidman, Sidney Pollack, Todd Field, Sky du Mont, Marie Richardson, Thomas Gibson, Julienne Davis, Vinessa Shaw, Leelee Sobieski, Rade Serbedzija. Estreia: 13/7/99

O tempo é um elemento do qual não se é possível fugir ao se falar sobre "De olhos bem fechados", o último filme do celebrado e mítico Stanley Kubrick. Foi em 1960 que o cineasta conheceu o livro "Traumnovelle", de Arthur Schnitzler - durante as sessões de terapia a que foi submetido em conjunto com Kirk Douglas para que resolvessem seus problemas de relacionamento nas filmagens de "Spartacus". Foi em 1971 que o presidente da Warner Bros, John Calley, anunciou que a adaptação da obra seria o próximo trabalho do diretor - uma informação que não revelou-se verdade, uma vez que a honra de suceder "Laranja mecânica" (1971) ficou com "Barry Lyndon" (1975). Foi no começo dos anos 1990 que o lendário homem por trás de "2001: uma odisseia no espaço" (1968) resolveu voltar a seu projeto de estimação quando Steven Spielberg anunciou "A lista de Schindler" (1993) - com tema bastante similar a "Aryan papers", cuja produção estava disposto a começar. Foi em novembro de 1996 que finalmente começaram as filmagens que se estenderiam por 400 dias - um recorde registrado no Guinnes Book, que nem considerou a pós-produção de quase um ano. E foi apenas quatro dias depois de mostrar sua versão do filme aos executivos do estúdio (ainda não completamente finalizada) que o mundo foi pego de surpresa com a notícia de sua inesperada morte - quatro meses antes da estreia oficial de uma mais esperadas produções cinematográficas da década.

Estrelado pelo então casal real de Hollywood - Tom Cruise e Nicole Kidman - e cercado por expectativas estratosféricas (assim como por um mistério que se estendeu até o lançamento), "De olhos bem fechados"se beneficiou do hype em torno do nome do diretor e do reencontro dos protagonistas sete anos depois do esquecível "Um sonho distante": mesmo sem muitas pistas a respeito da trama e das intenções comerciais do filme (nem mesmo o famoso trailer ao som de Chris Isaack entregava qualquer dica), o público correu às salas de exibição para conferir o resultado das cansativas e controversas filmagens que mantiveram Cruise e  Kidman presos na Inglaterra por mais de um ano - a ponto de atrasar outras produções da dupla, como "Da magia à sedução" e"Missão: impossível II" (finalmente lançado em 2000). Primeiro filme de Kubrick a estrear em primeiro lugar nas bilheterias dos EUA, "De olhos bem fechados" terminou sua carreira internacional com mais de 160 milhões de dólares em caixa - nada mal para uma produção adulta e com um tema tão controverso quanto... sexo.

Sim, sexo está na base e na origem de "De olhos bem fechados". Já adaptada anteriormente (para a televisão austríaca, em 1969, e em um filme italiano chamado "Ad un pas dall'aurora"), a novela de Schnitzler - discípulo de Freud - acompanha a obsessiva jornada de um médico, William Harford (Tom Cruise), por uma aventura sexual que o faça esquecer (ao menos momentaneamente) a confissão da bela esposa, Alice (Nicole Kidman), de que quase o traiu em uma viagem romântica. Cego de decepção - afinal sua vida matrimonial parecia sólida e imune a qualquer tipo de traição -, Harford busca um encontro casual, mas acaba envolvido (como penetra) em uma misteriosa orgia com participantes mascarados, senhas e uma atmosfera de perigo constante. Perseguido pela paranoia, ele refaz os passos da noite, o que inclui encontros com uma jovem prostituta e com uma adolescente envolvida com dois homens mais velhos. Nesse meio tempo, passa a desconfiar que está correndo o risco de ser vítima da violência dos organizadores da orgia - como aconteceu com um amigo músico e com uma bela mulher que tentou alertá-lo sobre os perigos da festa.


 A trama de Schnitzler, seguida com razoável fidelidade pelo roteiro do diretor e Frederic Raphael, não é das mais empolgantes em termos de ação. Porém, é fascinante como o cineasta é capaz de cobrir o enredo com uma atmosfera de pesadelo, sublinhada pela trilha sonora de Jocelyn Pook (indicada ao Globo de Ouro) e pela edição quase contemplativa de Nigel Galt. Se Tom Cruise não é um grande ator nem mesmo sob o comando de alguém exigente como Kubrick, o mesmo não pode ser dito de Nicole Kidman - em um de seus papéis mais importantes antes do divórcio do galã, a atriz mostra que beleza e talento podem tranquilamente caminhar juntos, e mesmo sem muita participação na segunda metade do filme, rouba a cena sem cerimônia na primeira parte (cujo desfecho é a cena em que confessa o adultério cogitado). Kubrick - que considerava "De olhos bem fechados" seu melhor filme - conduz seu último trabalho como um maestro, enfatizando aqui e acolá a complexidade de seus personagens com a sutileza de um veterano. É surpreendente que, antes que chegasse à conclusão sobre sua própria visão do enredo, tenha tido ideias tão excêntricas quanto a de tratá-lo como uma comédia.

A ideia de Kubrick de tratar o material de Schnitzler como uma comédia talvez tenha sido a mais inusitada de sua carreira - especialmente quando se pensa que o cineasta desejava ter Woody Allen no papel principal. Depois de Allen, Kubrick pensou em Steve Martin - até que deixou de lado a ousadia de brincar com o sisudo texto original e voltou a cogitar atores mais sérios, como Harrison Ford e Johnny Depp. Depois de conceber a ideia de ter um casal real na pela dos protagonistas, Kubrick chegou a Alec Baldwin e Kim Basinger - mas somente até que Tom Cruise e Nicole Kidman visitaram sua propriedade na Inglaterra (onde Kidman filmava "Retrato de uma mulher") e foram oficialmente convidados para tomar parte em seu ambicioso projeto. A opção por um dos casais mais famosos do mundo agradou aos executivos da Warner - que sugeriam ao diretor a escalação de nomes populares para agradar ao mercado - e deu início a uma série de fofocas de bastidores, que iam de especulações a respeito da trama (eles realmente seriam terapeutas que se envolviam com pacientes?) até substituições no meio das filmagens (Harvey Keitel e Jennifer Jason Leigh chegaram a filmar várias cenas, antes que compromissos os impedissem de voltar ao set para novas gravações e os fizessem perder os papéis para Sidney Pollack e Marie Richardson). O trabalho estendeu-se indefinidamente a ponto de dar uma úlcera a Tom Cruise - que, dizem, teve que fazer 95 takes de uma cena em que tinha que simplesmente atravessar o batente de uma porta -, mas valeu a pena. Com um roteiro que lança mais perguntas que respostas, "De olhos bem fechados" é a obra-prima imperfeita de Kubrick é seu belo canto do cisne - e uma produção digna de figurar em uma filmografia tão ímpar e cultuada.

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