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O MISTÉRIO DE CANDYMAN


O MISTÉRIO DE CANDYMAN (Candyman, 1992, TriStar Pictures, 99min) Direção: Bernard Rose. Roteiro: Bernard Rose, conto "The forbidden", de Clive Barker. Fotografia: Anthony B. Richmond. Montagem: Dan Rae. Música: Philip Glass. Figurino: Leonard Pollack. Direção de arte/cenários: Jane Ann Stewart/Kathryn Peters. Produção executiva: Clive Barker. Produção: Steve Golin, Alan Poul, Sigurjon Sighvatsson. Elenco: Virginia Madsen, Tony Todd, Xander Berkeley, Vanessa Williams, Kasi Lemmons, DeJuan Guy. Estreia: 11/9/92 (Festival de Toronto)

Quando surgiu, no conto "The forbidden", do britânico Clive Barker, o personagem Candyman tinha características físicas bastante específicas: tinha uma cor amarela sobrenatural e uma barba ruiva. Quando chegou às telas de cinema, em 1992, pelas mãos do cineasta Bernard Rose, porém, não apenas a localização de sua lenda era distinta do original, mas também seu visual: transferido de Liverpool, na Inglaterra, para uma Chicago distante dos pontos turísticos, Candyman transmutou-se em um homem negro, alto e com um passado trágico que afetava diretamente sua mitologia. Com um aspecto quase romântico que remetia a vilões sedutores como Drácula, o protagonista de "O mistério de Candyman" acabou por fazer história também por motivos polêmicos: enquanto muitos louvavam o fato de um ator negro (Tony Todd) assumir um papel até então inédito para afrodescendentes (o protagonista de um slasher movie), muitos outros reclamavam da possibilidade da ideia reforçar estereótipos negativos a respeito de uma minoria frequentemente vista como ameaça. Controvérsias à parte - algumas até mesmo risíveis -, o filme de Rose não fez feio: rendeu quatro vezes o seu custo, entrou na invejada relação de cult movies, rendeu duas continuações (e um reboot lançado em 2021) e aferrou-se no inconsciente coletivo dos fãs do gênero.

Tratado com uma seriedade rara de se encontrar nos filmes de terror dos anos 1990, "O mistério de Candyman" é, na verdade, o encontro de duas ideias que, juntas, acabaram por ser a base de um roteiro que consegue, ao mesmo tempo, fortalecer os cânones do gênero e despertar discussões sociais - bem mais aprofundadas no filme de 2021 mas já com suas sementes lançadas no primeiro capítulo. Ao enredo de Barker, que versava sobre a luta de classes na Inglaterra da década de 1970 por trás de uma história de horror, foram acrescentados, com a mudança geográfica, elementos que davam foco a questões raciais e violência urbana, temas prementes nos EUA à época: vale lembrar que o espancamento de Rodney King, em Los Angeles - o estopim de uma série de distúrbios que sacudiram o país - aconteceu apenas um ano e meio antes da estreia do filme de Rose. Ao transferir a ação da narrativa de Liverpool para um conjunto habitacional nos subúrbios de Chicago, o roteiro não apenas optou por aproximá-la de um cenário mais familiar a este tipo de tensão como também utilizou-se da locação real de um homicídio que abalou a cidade em 1987: uma mulher chamada Ruthie Mae McCoy foi violentamente assassinada em seu apartamento por um homem que entrou em seu banheiro por um buraco atrás do espelho - um crime verdadeiro que não apenas serviu de inspiração como foi incorporado à trama de forma orgânica.

 

Apesar de Candyman ser o protagonista do filme de Rose, ele não aparece em cena antes de 40 minutos de projeção. Quem assume o posto de personagem central até então é Helen Lyle (Virginia Madsen no papel mais popular de sua carreira), uma estudante que, debruçada em suas pesquisas sobre folclore urbano, passa a dedicar-se a investigar a lenda de um homem que, tendo seu nome citado cinco vezes diante do espelho, o atravessa e mata suas vítimas com um gancho que tem no lugar de uma das mãos. A origem de Candyman vem da época da escravidão - mas Helen quer provar, sem espaço para dúvidas, de que tudo não passa mesmo de uma história para ser contada em rodas de acampamento. Com a ajuda de sua amiga, Bernardette (Kasi Lemmons), ela chega até Cabrini-Green, o conjunto habitacional que foi local de um suposto ataque da violenta entidade mística. Ao penetrar em um universo onde a violência e o descaso das autoridades são moedas correntes, Helen se vê envolvida em uma série de assassinatos que aparentemente tem ligação com a lenda que ela pretende desacreditar.

A maior qualidade do filme de Bernard Rose - um cineasta britânico que poucos anos depois assinaria uma biografia romanceada de Beethoven, chamada "Minha amada imortal" (1995) - é se levar a sério. Em uma época em que o cinema de terror frequentemente apostava no humor como elemento indispensável para conquistar plateias cada vez mais jovens, "O mistério de Candyman" aposta em um tom sóbrio, valorizado pela trilha sonora de Philip Glass e pela fotografia de Anthony B. Richmond. A escolha de Tony Todd para viver o personagem central - que quase ficou nas mãos de Eddie Murphy - é outro acerto admirável, a ponto de tornar o ator um dos rostos mais conhecidos do gênero. Também é louvável a intenção do roteiro em discutir (ainda que timidamente) questões raciais - a própria Helen se revolta ao perceber que somente o ataque a uma mulher branca que obriga a polícia a agir positivamente no gueto. Violento e tenso - com sequências bastante sangrentas e um final surpreendente -, "O mistério de Candyman" é uma produção rara, feita com capricho e com intenções de afirmar seu anti-herói no rol dos maiores vilões do gênero. Mesmo sofrendo críticas pesadas à sua opção de transformá-lo em negro - o cineasta Carl Franklin chegou a afirmar que o filme "joga com o medo que a classe média branca sente dos negros" -, Bernard Rose tem o mérito nada desprezível de fazer de um filme de terror um motivo de discussão. Poucos filmes - de quaisquer gêneros - podem se gabar disso.

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