sexta-feira

MEDIDA PROVISÓRIA


MEDIDA PROVISÓRIA (Medida provisória, 2020, Lereby, 103min) Direção: Lázaro Ramos. Roteiro: Lázaro Ramos, Lusa Silvestre, Aldri Anunciação, Elísio Lopes Jr., peça teatral "Namíbia, não", de Aldri Anunciação. Fotografia: Adrian Teijido. Montagem: Diana Vasconcellos. Música: Kiko de Souza, Plínio Profeta, Rincon Sapiência. Figurino: Alex Brollo. Direção de arte/cenários: Tiago Marques Teixeira. Produção executiva: Mariza Figueiredo. Produção: Daniel Filho, Tânia Rocha. Elenco: Alfred Enoch, Taís Araújo, Seu Jorge, Adriana Esteves, Renata Sorrah, Emicida, Mariana Xavier, Flávio Bauraqui. Estreia: 03/10/2020 (Festival de Moscou)

É bem provável que, no panorama cultural brasileiro do momento, não pudesse haver alguém mais apropriado do que Lázaro Ramos para assinar a direção do filme "Medida provisória": ativista dos mais incansáveis da luta contra o racismo e pela preservação da cultura negra, Ramos se aproveita inteligentemente de sua visibilidade como artista global para pautar temas que, em mãos menos sensíveis, poderiam facilmente descambar para a militância oca e/ou oportunista. Se na peça teatral “No topo da montanha”, de Katori Hall – que estreou em 2015 e lotou teatros pelo país todo desde então – ele vivia Martin Luther King em seus últimos momentos de vida, em seu primeiro trabalho como cineasta ele reafirma seu compromisso com a causa da negritude com ainda mais contundência – a ponto de ter incomodado o governo e seus pretensos representantes culturais e ter atrasado seu lançamento comercial. A boa notícia é que, além de ter dado voz a uma história de interesse humano raro, o ator/diretor não deixou de lado seu talento como narrador, construindo uma obra cinematográfica consistente e aterradora.

A peça teatral em que "Medida provisória" se baseia, "Namíbia, Não", de Aldri Anunciação, foi montada pela primeira vez em 2011 – e é chocante como, nos dez anos que separam sua encarnação dos palcos de sua versão para as telas, as coisas não apenas não evoluíram como sofreram um revés brutal. O que há alguns anos poderia soar como uma distopia um tanto distante, hoje em dia surpreende por retratar, sem muitos retoques, uma realidade violenta e atroz que persegue, acua e mata com o aval de parte da população autodescrita como “cidadãos de bem” – muito bem representada, no filme, por uma (mais uma vez) brilhante Renata Sorrah. Discriminação disfarçada de boas intenções é o que move a trama de Medida Provisória – que encontra na direção segura de Lázaro Ramos terreno fértil para discussões relevantes e questionamentos urgentes.

 

A trama do filme se passa em um futuro pouco distante, onde o governo, sob a falácia de reparação histórica – mas com objetivos claríssimos de limpeza étnica – inicia a deportação de todos os cidadãos negros do país para a África. A ideia, logicamente, por sua natureza autoritária e discriminatória, não é aceita passivamente por todos – enquanto alguns brasileiros embarcam de boa vontade e com esperanças de uma nova vida, outros, cientes de suas raízes nacionais e de seu direito à cidadania, batem de frente com o poder estabelecido. Dentre eles, está o jovem advogado Antonio (Alfred Enoch, conhecido pela série "How To Get Away With Murder") e sua esposa, a médica Capitu (Taís Araújo): separados pelas circunstâncias, cada um deles resiste como pode à novidade; ele se recusa a abandonar o apartamento onde mora e se transforma em símbolo de luta; ela, grávida de poucas semanas, se junta a um grupo de opositores à nova medida (uma espécie de quilombo, rebatizado de afrobunker) para organizar uma forma de defesa mais radical. Nesse meio-tempo, batalhas sangrentas ocupam as ruas e o racismo velado da sociedade vem à tona, forçando a uma ruptura de graves consequências.

Seria muito mais confortável ao espectador médio assistir a "Medida provisória" como um filme de ficção científica, como uma espécie de pesadelo cruel e impossível. No entanto, não deixa de ser extremamente incômodo perceber que o que está sendo transmitido na tela diante de nossos olhos é uma metáfora pouco disfarçada de uma situação cada vez menos distante. Felizmente Lázaro Ramos não apela para o sentimentalismo ou a violência gratuita, optando pelo tom de fábula (ainda que realista) e acreditando na potência da trama e de seus personagens – a ponto de ousar fazer um paralelo entre os diferentes tipos de intolerância racial e social. Amparado por um elenco de ouro – Adriana Esteves deita e rola como uma Damares tão cínica e cruel quanto a verdadeira e Seu Jorge quase rouba a cena como o primo do protagonista, dono de uma das cenas mais fortes da produção – e por uma edição ágil e sucinta, "Medida provisória" não funciona apenas como mensagem. É, também, cinema de primeira linha.

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