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AS MÃOS DE ORLAC

AS MÃOS DE ORLAC (Orlacs hande, 1924, Berolina Film GmbH/Pan Films, 92min) Direção: Robert Weine. Roteiro: Louis Nerz, romance de Maurice Renard. Fotografia: Hans Androschin, Gunther Krampf. Direção de arte: Stefan Wessely. Elenco: Conrad Veidt, Alexandra Sorina, Fritz Strassny, Paul Askonas. Estreia: 24/9/24


O cineasta Robert Wiene teve a sorte e o azar de assinar, em 1919, um dos filmes seminais do chamado expressionismo alemão, o cultuado “O gabinete do Dr. Caligari”. Sorte porque a produção tornou-se pedra angular do cinema de horror e um dos mais estudados e influentes produtos cinematográficos da história. Azar porque, depois de ver seu nome associado ao filme, nunca mais conseguiu repetir a proeza, tornando-se um diretor cujo nome é virtualmente desconhecido pelo grande público – e até mesmo pela crítica, que praticamente ignorou seus trabalhos posteriores. Porém, apesar desse revés artístico, Wiene tem pelo menos outro filme digno de nota no currículo. No mínimo nos últimos oitenta anos pouca gente ouviu falar – e menos gente ainda assistiu – ao surpreendente “As mãos de Orlac”, uma mistura bastante interessante de drama romântico, policial e suspense que demonstra que Weine poderia muito bem conduzir um filme independentemente da mão firme do produtor E. Pommer (por muitos considerado o verdadeiro autor de “Caligari”).
            
Baseado em um romance de Maurice Renard, “As mãos de Orlac” possui elementos clássicos do suspense e brinca com as possibilidades do sobrenatural ao contar a trágica história de Paul Orlac (Conrad Veidt, o sonâmbulo assassino de “Caligari”): pianista internacionalmente famoso, Orlac está viajando de volta para casa e os braços da amorosa esposa Yvonne (Sorina) quando sofre um violento acidente de trem que o deixa à beira da morte. O médico que acompanha o caso, Dr. Serral (Homma), salva sua vida, mas para impedir que ele perca suas tão valiosas mãos, apela para uma experiência ainda em fase de testes: um transplante. É assim que Orlac passa a ter, depois de uma cirurgia, as mãos de Vasseur, um homicida executado com a pena capital. Traumatizado com a tragédia, Orlac passa a ter visões do assassino e sentir que ele está influenciando seus pensamentos. Com medo de transformar-se também em um criminoso, ele implora a seu médico que lhe arranque as mãos – mas o que ele nem sequer desconfia é que não passa da vítima inocente de uma trama muito bem urdida – que envolve outras pessoas próximas.

Apesar de um início que insinua que seu filme irá percorrer um caminho sobrenatural que flerta com sua obra mais famosa, Wiene surpreende a plateia com uma série de reviravoltas. Ao contrário do que se poderia imaginar, porém, tais artifícios não diluem a tensão da trama principal, apenas acrescentando a ela camadas dramáticas que sustentam a tensão até seus minutos finais. Desviando do caminho fácil da imitação do que já deu certo, o cineasta deixa de lado boa parte das características de “Caligari” e aposta em uma trama mais sólida: a fotografia ainda surge como fator de extrema importância na narrativa (enfatizando o tom de pesadelo kafkiano do roteiro) mas a história e os personagens acabam por mostrar-se tão essenciais quanto as imagens. Mesmo que algumas cenas impressionem pelo apuro visual – em especial o resgate dos feridos no desastre de trem nos primeiros minutos – o que mais chama a atenção em “As mãos de Orlac” é seu enredo, repleto de emoções as mais variadas, que percorrem desde o drama até o medo. E para isso, é claro, Wiene conta com um elenco mais do que adequado a suas intenções e um roteiro inspirado.
          
Conrad Veidt deixa de lado o marcante papel do assassino Cesar no filme mais conhecido do diretor para alcançar outro registro de interpretação na pele do atormentado Paul Orlac – seu desespero é palpável e sua relação com a sofrida esposa é mostrada com grande verdade pelas câmeras, que por sua vez passeiam pelos cenários sombrios não como agentes ativos, mas como testemunhas silenciosas dos fatos. Conforme a trama vai se desenrolando diante dos olhos do público – e novos fatos vão transformando a ideia inicial – Weine demonstra senso de ritmo e inteligência ao transformar um drama romântico em um filme de terror e, mais tarde, transmutá-lo em um policial sem que sua essência e seu nervosismo sejam diluídos. Quando toda a trama que cerca o protagonista, sua mulher, sua criada e seu pai (com quem mantém uma relação no mínimo conturbada) à plateia cabe apenas perceber que está diante de um desfecho dos mais originais, ainda que muito imitado posteriormente (como qualquer coisa realizada à época). É muito mais do que se poderia esperar de um filme assinado por alguém injustamente relegado a uma nota de rodapé na história do cinema como um cineasta menor de um dos movimentos mais influentes da trajetória da sétima arte. “As mãos de Orlac” é um filme que merece ser redescoberto.

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