quarta-feira

NISE: O CORAÇÃO DA LOUCURA


NISE: O CORAÇÃO DA LOUCURA (Nise: o coração da loucura, 2015, TV Zero, 106min) Direção: Roberto Berliner. Roteiro: Flávia Castro, Maurício  Lissovky, Maria Camargo, Chris Alcazar, roteiro final de Patrícia Andrade, Leonardo Rocha, Roberto Berliner. Fotografia: Andre Horta. Montagem: Pedro Bronz, Leonardo Domingues. Música: Jaques Morelenbaum. Figurino: Cristina Kangussu. Direção de arte/cenários: Daniel Flaksman. Produção executiva: Lorena Bondarovsky. Produção: Lorena Bondarovsky, Rodrigo Letier. Elenco: Glória Pires, Roberta Rodrigues,Augusto Madeira, Tadeu Aguiar, Fernando Eiras, Zecarlos Machado, Georgiana Góes, Felipe Rocha, Flávio Bauraqui, Fabrício Boliveira, Bernardo Marinho, Cláudio Jaborandy. Estreia: 25/10/2015 (Festival Internacional de Tóquio)

Nise Magalhães da Silveira pode não ser um nome facilmente reconhecível a todos, mas sua importância para o de doenças mentais e a forma como revolucionou a psiquiatria - no Brasil e no mundo - faz dela uma personalidade crucial da história da medicina. Inspirada pelos estudos do suíço Carl Gustav Jung, com quem se correspondia, e contrária à corrente mais agressiva de tratamentos à base de eletrochoques e lobotomia, Nise foi a responsável por incentivar nos pacientes uma nova forma de lidar com suas crises de esquizofrenia: através da arte, muitos de seus pacientes começaram a reatar seus vínculos com a realidade e saíram da catatonia em que viviam. Desafiando o preconceito, o machismo e a descrença em seus métodos, a médica alagoana, formada em 1926 e presa por 18 meses durante o Estado Novo de Vargas, acusada de comunismo, é a personagem central (e força motriz) de "Nise: o coração da loucura", filme dirigido por Roberto Berliner que rendeu à Glória Pires o prêmio de melhor atriz no Festival Internacional de Tóquio, em 2015.

A vida de Nise é um material e tanto a ser explorado, mas Berliner acerta em optar por um recorte específico de tempo, para melhor desenvolver os métodos da protagonista e apresentar seus coadjuvantes sem a pressa e a superficialidade nas quais uma cinebiografia convencional fatalmente sucumbiria. A prisão de Nise - que a fez ter contato com Olga Benário e Graciliano Ramos, personalidades já retratadas pelo cinema nacional - é praticamente ignorada pelo roteiro, que começa justamente quando a médica retoma seu trabalho junto a pacientes, no Centro Psiquiátrico Nacional Pedro II, do Rio de Janeiro. O ano é 1944, e Nise imediatamente compra briga com os médicos locais, adeptos de força bruta como tratamento alternativo. Transferida para a seção de Terapia Ocupacional - leia-se limpeza e manutenção do hospital -, ela surpreende aos funcionários, acostumados à violência e ao descaso das autoridades locais, ao oferecer um ambiente menos opressivo e mais lúdico aos pacientes. Por sugestão de um dos enfermeiros, incentiva os internos (até então tratados como animais) a utilizar-se de pincéis e tintas para conversar com o mundo. Surge, então, diante de seus olhos, uma admirável coleção de obras de arte - que transmitem, através da cor e das formas, imagens do inconsciente (nome, inclusive, do museu criado para exibir os trabalhos e que hoje conta com mais de 360 mil obras).

 


A escolha de Glória Pires para o papel central do filme é um acerto gigantesco. Não apenas Glória tem um apelo comercial substancial - como bem demonstram as bilheterias dos filmes "Se eu fosse você", de 2006 e 2009 - como é uma atriz maiúscula, capaz de transmitir uma vasta gama de emoções de forma econômica e precisa. Em um filme no qual o silêncio fala tanto quanto longos diálogos, a presença de Glória é o leme que conduz a narrativa e rege a orquestra de coadjuvantes, todos tão convincentes que é difícil lembrar que são apenas atores interpretando doentes mentais - embora alguns rostos sejam conhecidos do público, como Fabrício Boliveira e Flávio Bauraqui. As faíscas produzidas entre o elenco confirmam o talento de seu diretor, Roberto Berliner, cineasta com larga experiência em documentários - "A pessoa é para o que nasce (2003) e "Herbert de perto" (2009) são os mais conhecidos - que se mostra igualmente dotado em sua segunda incursão na ficção. Seu olhar de documentarista evita o sentimentalismo e imprime uma narrativa sóbria, condizente com o tema e a personalidade de sua protagonista. Também ganha pontos em manter o foco, ainda que tal opção impeça o espectador de conhecer ainda mais sua personagem principal - ou seja, seu período como simpatizante do comunismo em um período pouco propício para tal, e sua consagração junto à comunidade psiquiátrica mundial.

"Nise: o coração da loucura" é um filme adulto, sério, relevante. Busca a empatia do espectador sem apelar para a condescendência e, ainda que retrate sua protagonista como uma heroína solitária lutando contra um sistema irascível - um clichê que não chega a atrapalhar o resultado final -, procura o máximo de realismo possível. Alguns momentos bastante comoventes - o desfecho de sua tentativa de aproximar os pacientes (a quem chama de clientes) a animais de estimação e a surpreendente história de amor e ciúme nascida dentro do hospital - valorizam a trama central e lembram o público de que estão diante de seres humanos e não apenas estatísticas. Emociona e faz pensar. E principalmente faz a devida homenagem a uma das mais ricas e importantes personalidades nacionais. Se hoje a psiquiatria já conseguiu abandonar seus traços mais sinistros, boa parte disso é consequência da sensibilidade de Nise, cujas imagens reais nos últimos minutos de filme apenas reiteram sua força e determinação. Imperdível!


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