quinta-feira

O ÓDIO


O ÓDIO (La haine, 1995, Canal +/Cofinergie 6/Egg Pictures, 98min) Direção e roteiro: Mathieu Kassovitz. Fotografia: Pierre Aim. Montagem: Mathieu Kassovitz, Scott Stevenson. Música: Assassin. Figurino: Virginie Montel. Direção de arte/cenários: Giuseppe Ponturo. Produção: Cristophe Rossignon. Elenco: Vincent Cassel, Hubert Koundé, Said Taghmaoui, Abdel Ahmed Gili. Estreia: 27/5/95 (Festival de Cannes)

Vencedor do Prêmio de Melhor Diretor (Mathieu Kassovitz) no Festival de Cannes

Nas ruas, a violência cometida pelos policiais que abusam de sua autoridade para massacrar minorias. Em conjuntos habitacionais, o consumo de drogas e a tensão constante a respeito de possíveis e constantes embates entre jovens e policiais. No dia-a-dia, a falta de perspectivas e a tentação de cair na criminalidade. Poderia ser o cenário de uma produção brasileira, mas "O ódio" surgiu da França, da observação dura e sem floreios da realidade social de um país cuja imagem romântica e civilizada foi forjada no inconsciente de plateias do mundo inteiro através de histórias de amor bucólicas e sofisticadas. O choque de perceber que por trás de pontos turísticos consagrados há um universo de conflitos dolorosos e sangrentos é o primeiro golpe desferido pelo filme de Mathieu Kassovitz, sucesso de crítica e premiado no Festival de Cannes 1995 com a Palma de melhor diretor. Os golpes seguintes se sucedem graças ao roteiro seco, à edição ágil e a um elenco irretocável - até o tiro de misericórdia, capaz de deixar no espectador a mesma sensação de angústia de filmes como "A outra história americana" (1998) e "Meninos não choram" (1999).

Conhecido pelo público por seu trabalho como a personalíssima alma gêmea da protagonista da comédia romântica "O fabuloso destino de Amélie Poulain" (2001) - um dos maiores sucessos de bilheteria do cinema francês -, o ator Mathieu Kassovitz concebeu seu filme como um pesadelo realista dos mais cruéis, sem pausa para respiros ou alívios imediatos. Inspirado na história de dois jovens afro-franceses que morreram em custódia da polícia, o ator/roteirista/cineasta não precisou ir buscar muito longe os protagonistas de sua trama: mesmo não tendo sido criado em projetos habitacionais que servem como cenário da produção, Kassovitz sentiu-se abismado com a simples possibilidade de que tal situação pudesse ocorrer em uma sociedade dita moderna. De posse da informação de que, desde 1981 mais de 300 pessoas morreram enquanto estavam nas mãos da polícia, o jovem diretor (28 anos de idade à época da estreia do filme) construiu seu enredo como um castelo de cartas prestes a desabar - a história de um grupo cuja estabilidade emocional pode ser derrubada com um mero peteleco. 

 

O roteiro acompanha 24 horas na vida de três jovens amigos que vivem em um conjunto habitacional nos arredores de Paris. Vinz (Vicent Cassel extremamente convincente como adolescente mesmo aos 28 anos) é judeu, Said (Said Taghmaoui) é árabe, e Hubert (Hubert Koundé) é um lutador amador de boxe negro, e todos eles estão acostumados a conviver com as mais variadas manifestações de preconceito racial, étnico e social. Tal proximidade com o perigo, porém, não os deixa indiferentes, e, no dia seguinte a uma série de distúrbios em sua comunidade, todos estão com os nervos à flor da pele. Enquanto um jovem agoniza no hospital depois de ter sido espancado pela polícia, Vinz encontra a arma perdida por um dos agentes da lei - e promete equilibrar a balança caso a vítima se torne fatal. No decorrer do dia, os três amigos são expostos a inúmeros momentos capazes de detonar a bomba de violência - mas até quando conseguirão evitar um confronto definitivo?

É impressionante como Kassovitz faz de "O ódio" um dos mais contundentes e importantes filmes europeus da década de 1990. Fortemente influenciada pelo cinema de Martin Scorsese - citado claramente em uma cena onde Vincent Cassel imita Robert de Niro em "Taxi driver" (1976) - e Spike Lee - mais precisamente o explosivo "Faça a coisa certa" (1989) -, a narrativa do filme de Kassovitz é valorizada pela fotografia em preto-e-branco, pela montagem de tom urgente e pela sensação de perigo que ronda cada sequência. A crítica bastante radical às autoridades chegou a incomodar a força policial do país, que chegou ao extremo de literalmente virar as costas ao elenco do filme na ocasião de sua chegada ao tapete vermelho do Festival de Cannes. Ainda impactante mesmo depois de tanto tempo de sua estreia, "O ódio" é uma prova cabal de que mesmo as culturas mais civilizadas podem esconder mazelas pouco admiráveis em seu âmago. É uma produção admirável e forte, com uma sequência final capaz de permanecer na memória da audiência por um longo período de tempo - como apenas os melhores filmes conseguem fazer.

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