quinta-feira

ERA UMA VEZ EM... HOLLYWOOD


ERA UMA VEZ EM... HOLLYWOOD (Once upon a time in... Hollywood, 2019, Sony Pictures, 161min) Direção e roteiro: Quentin Tarantino. Fotografia: Robert Richardson. Montagem: Fred Raskin. Figurino: Arianne Phillips. Direção de arte/cenários: Barbara Ling/Nancy Haigh. Produção executiva: Jeffrey Chan, Georgia Kacandes, Yu Dong. Produção: David Heyman, Shannon McIntosh, Quentin Tarantino. Elenco: Leonardo DiCaprio, Brad Pitt, Margot Robbie, Emile Hirsch, Margaret Qualley, Timothy Olyphant, Dakota Fanning, Bruce Dern, Al Pacino, Luke Perry, Costa Ronin, Lena Dunham, Kurt Russell, Rafal Zawierucha, Damon Herriman. Estreia: 21/5/2019 (Festival de Cannes)

10 indicações ao Oscar: Melhor Filme, Diretor (Quentin Tarantino), Ator (Leonardo DiCaprio), Ator Coadjuvante (Brad Pitt), Roteiro Original, Fotografia, Montagem, Direção de Arte/Cenários. Edição de Som, Mixagem de Som

Vencedor de 2 Oscar: Ator (Brad Pitt), Direção de Arte/Cenários

Vencedor de 3 Golden Globe Melhor Filme Comédia/Musical, Ator Coadjuvante (Brad Pitt), Roteiro

Foi na madrugada de 6 de agosto de 1969 que um crime - violento e chocante em sua gratuidade - acabou, segundo a escritora Joan Didion, com o movimento hippie, a era do amor livre e a atmosfera dos anos 60 como um todo. Um grupo de seguidores do messiânico Charles Manson invadiu a casa da atriz Sharon Tate, grávida de oito meses do cineasta Roman Polanski (em alta com o sucesso de seu "O bebê de Rosemary", lançado no ano anterior) e a assassinou, juntamente com um grupo de amigos, deixando no local uma série de detalhes macabros que alimentaram as manchetes dos jornais por meses a fio. A investigação do crime, a prisão dos responsáveis e o julgamento midiático ocuparam a mente do mundo - e em especial dos EUA - por anos a fio e ainda permanecem como uma lembrança trágica de uma época encerrada abruptamente com um banho de sangue. O trauma foi tanto que demorou meio século para que um grande estúdio de Hollywood finalmente rompesse o silêncio a respeito do assunto - e mesmo assim somente com o aval de um nome de prestígio, com coragem o suficiente para mexer em um vespeiro mantido sob uma redoma de respeito pelos envolvidos e pelo medo de um fracasso de bilheteria. Foi somente quando Quentin Tarantino anunciou que seu filme seguinte ao western "Os oito odiados" (2016) teria Sharon Tate como uma de suas personagens principais que a história (até então contada mal e porcamente em documentários e telefilmes de pouca repercussão) voltou a povoar o imaginário mundial - e despertar uma curiosidade que só fez aumentar conforme chegava a data de estreia.

Pensando em marcar a estreia de "Era uma vez em... Hollywood" para 6 de agosto de 2019, data em que o crime completaria 50 anos, Tarantino foi voto vencido quando a Sony Pictures - que ganhou os direitos de distribuição em uma disputa acirradíssima com a Warner, a Universal, a Paramount, a Lionsgate e Annapurna Pictures - preferiu adiantar a data para 26 de julho, pouco mais de dois meses depois do lançamento da produção no Festival de Cannes. Até que tal evento acontecesse, porém, muito foi dito, inventado, polemizado e misteriosamente escondido a respeito do filme. Com um roteiro secreto (lido apenas por parte da equipe de filmagem, como forma de evitar os dissabores que quase cancelaram "Os oito odiados" depois do vazamento de seu script) e notícias que chegavam aos poucos, "Era uma vez em... Hollywood" já era, muito antes de chegar às telas, uma das produções mais comentadas e esperadas da temporada - por inúmeras razões. Além do marketing espontâneo que qualquer trabalho de Tarantino gera, não era nada mal ter Brad Pitt e Leonardo DiCaprio nos papéis principais em uma trama que misturava, da forma como apenas o cineasta consegue fazer sem soar prolixo, a trajetória de Sharon Tate, a desilusão de um astro da antiga indústria com os novos tempos, a decadência de um gênero específico (o western), bastidores do cinema pelos olhos de um dublê e diálogos preciosos. Tido por Tarantino como seu filme mais pessoal - algo como "Roma" foi em relação a Alfonso Cuarón - e escrito em um período de cinco anos (nos quais o cineasta também o transformou em um romance, lançado em seguida à estreia), "Era uma vez em... Hollywood" provou que a espera valeu a pena, tanto em termos artísticos quanto comerciais. Com uma renda internacional que ultrapassou os 370 milhões de dólares, dez indicações ao Oscar (e duas categorias no bolso), o filme pode até não ter agradado a todo mundo - algo corriqueiro na filmografia de Tarantino -, mas é, inegavelmente, uma das obras cinematográficas mais importantes de seu tempo.


 Com um título inspirado em Sergio Leone e seus "Era uma vez no Oeste" (1968) e "Era uma vez na América" (1984), o nono filme de Tarantino - se as duas partes de "Kill Bill" forem consideradas apenas um único projeto - quase foi realizado em preto-e-branco e poderia ter estreado com uma duração de 4 horas e 20 minutos. Mas cinema é uma arte de concessões e do jeito que está, o filme é uma pequena obra-prima (mais uma na carreira do Tarantino diretor ). Tudo funciona perfeitamente - até mesmo o que parece gratuito tem ressonâncias bem mais profundas do que aparenta. Por trás dos longos diálogos (característica inconfundível do Tarantino roteirista) e das referências que podem soar como grego ao público médio, a trama é uma pérola de nostalgia, melancolia e pitadas generosas de uma ironia tão fina que pode até passar despercebida - ao menos até o clímax, tão inesperado e surpreendente que foi objeto de um pedido especial dos realizadores para que não fosse comentado pela imprensa ou pela plateia. Justificável: assim como em "Bastardos inglórios" (2009), Tarantino rege seu próprio universo, manda em seus próprios domínios, subverte as próprias regras e a história, se for preciso. Longe de desagradar aos puristas, encontra uma maneira de fazer com que a magia do cinema sempre se sobressaia - e sublinhe seu talento em encantar e decepcionar com a mesma intensidade.

O filme se passa em 1969, quando a Era de Ouro de Hollywood está em seus estertores. Longe de ainda ter a relevância que tinha na década de 1950, quando estrelava populares séries de western na televisão, Rick Dalton (vivido por Leonardo DiCaprio) paira sob uma Los Angeles a que mal reconhece, tentando encontrar uma maneira de manter uma carreira já tida como acabada. Vizinho do cineasta Roman Polanski (praticamente um símbolo de uma nova indústria, moderna e jovem), Dalton luta contra o próprio instinto de autodestruição enquanto relembra seus melhores momentos, ao lado de grandes atores e cercado de respeito e adulação. Invariavelmente acompanhado de seu dublê, Cliff Booth (Brad Pitt, vencedor do Oscar de ator coadjuvante) - bem mais confortável com as novas regras do jogo, a ponto de quase deixar-se envolver com um grupo de hippies bem mais jovens -, o ex-astro vê, aos poucos, uma nova Hollywood surgir diante de seus olhos. Enquanto isso, sua deslumbrante vizinha, Sharon Tate (Margot Robbie), começa a sentir o gostinho da fama e vislumbrar um brilhante futuro, tanto na carreira quanto na vida doméstica. Com visões distintas de sua época e de sua profissão, Dalton e Tate terão suas vidas cruzadas de forma totalmente inesperada e violenta.

Lançado no mesmo Festival de Cannes que 25 anos antes deu a Tarantino a Palma de Ouro e o aval necessário para que se tornasse um dos autores mais prestigiados do cinema norte-americano, "Era uma vez em... Hollywood" não saiu ileso a críticas e polêmicas. Se Debra Tate, irmã de Sharon, viu sua resistência ao projeto ruir ao encontrar Margot Robbie e reconhecer nela qualidades que a faziam lembrar da saudosa atriz, o mesmo não pode ser dito em relação às queixas de Shannon Lee, filha do ator Bruce Lee que não achou graça nenhuma na forma como o roteiro retratou seu pai - bastou uma única sequência para que Shannon considerasse tudo um insulto à memória do ator. Também foi alvo de críticas as liberdades artísticas tomadas pelo cineasta em relação à uma trama crucial para o roteiro: ao criar personagens novos na famigerada Família Manson (ou mesclar personagens reais com fictícios), Tarantino incomodou os puristas que esperavam uma descrição real dos crueis fatos de 6 de agosto de 1969 - que não tiveram interesse em perceber as reais intenções do diretor ao unir a realidade (ainda que alterada) com a fantasia: "Era uma vez em... Hollywood" não é um documentário sobre os assassinatos cometidos naquela fatídica noite - é uma comédia dramática sobre a união de dois mundos, sobre os meandros do destino e sobre a inexorabilidade do tempo até mesmo dentro de um universo que vende fantasia. É um filme com a cara de seu diretor - para o bem ou para o mal - e uma inteligente homenagem a uma atriz cujo futuro foi interrompido pela força do fanatismo. Como qualquer filme de Tarantino, não é para todos os públicos. Mas é sensacional!

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