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O ESTRANHO QUE NÓS AMAMOS



O ESTRANHO QUE NÓS AMAMOS (The beguiled, 1971, Universal Pictures/The Malpaso Company, 105min) Direção: Donald Siegel. Roteiro: John B. Sherry, Grimes Grice, romance de Thomas Cullinan. Fotografia: Bruce Surtees. Montagem: Carl Pingitore. Música: Lalo Schifrin. Figurino: Helen Colvig. Direção de arte/cenários: Ted Haworth/John Austin. Produção executiva: Jenninge Lang. Produção: Donald Siegel. Elenco: Clint Eastwood, Geraldine Page, Elizabeth Hartman, Jo Ann Harris, Darleen Carr, Mae Mercer, Pamelyn Ferdin, Melody Thomas. Estreia: 23/01/71 (Itália)

Quando "O estranho que nós amamos" estreou, em 1971, o nome de Clint Eastwood nos cartazes já era o suficiente para atrair multidões às salas de exibição: já fazia alguns anos que os filmes que havia feito com Sergio Leone na Itália haviam chegado aos EUA e o transformado em ídolo, frequentemente fazendo papéis de durão misterioso e monossilábico em produções repletas de testosterona, como "Meu nome é Coogan" (1968) e "Os abutres tem fome" (1970). Daí o choque diante do filme de Donald Siegel: de narrativa lenta e psicológica, com personagens complexos e um protagonista dúbio, a adaptação do romance de Thomas Cullinan, publicado em 1966, desagradou profundamente aos fãs mais ardorosos do ator e deu à Universal Pictures um inesperado fracasso de bilheteria. A culpa, no entanto, não foi nem de Eastwood nem de Siegel - ambos em excelentes momentos da carreira -, e sim do próprio estúdio, que vendeu a produção como mais um filme de ação típico do astro. Porém, se em seu lançamento "O estranho que nós amamos" decepcionou em termos financeiros, o tempo lhe fez justiça: aclamado pela crítica e tornado cult por excelência, o filme é hoje reconhecido como uma pequena obra-prima - e permaneceu na mente de seus fãs a tal ponto de render um remake, realizado por Sofia Coppola em 2017. Tocante, forte e ousado, é também um dos pontos altos da filmografia de um ator cuja trajetória é das mais respeitáveis de Hollywood.

Assim como "...E o vento levou", a trama de Cullinan se passa durante a Guerra de Secessão norte-americana, e também como no livro de Margareth Mitchell, é um tanto problemático que a ação retrate o norte abolicionista como vilão e o sul escravagista como vítima. No entanto, esta é a menor das questões, diante de um enredo que não tem medo em flertar com temas pesados, como pedofilia, incesto e estupro - e de certa forma envernizando-os com uma dose generosa de poesia. Pontuada pela bela trilha sonora de Lalo Schifrin, a história de "O estranho que nós amamos" é narrada com insuspeita elegância por Siegel - cujo currículo apontava mais para filmes policiais bem pouco sutis: em rápidos flashbacks ou pensamentos em off, o cineasta expõe seus personagens em todas as suas idiossincrasias, traumas e desejos mais profundos sem nunca deixar de prestar atenção no ritmo e no clima de tensão sexual constante. Envolvente e claustrofóbico, o roteiro foge dos clichês e do previsível - e surpreende ainda mais no clímax, violento e que obrigou diretor e ator principal a baterem de frente com os todo-poderosos do estúdio, pouco confortáveis em dar sinal verde para um desfecho tão radical (ainda que coerente e dramaticamente satisfatório).

 

O protagonista do filme é o soldado ianque John McBurney (Clint Eastwood), que, encontrado ferido em uma floresta da Louisiana, é levado por uma curiosa pré-adolescente até a escola de moças onde ela estuda. A escola, comandada com rigidez pela proprietária, Martha Farnsworth (Geraldine Page), é isolada e apenas ocasionalmente é visitada por tropas amigas, e a chegada de um inimigo, ainda que em péssimas condições de saúde, deixa todas as alunas, a professora Edwina (Elizabeth Hartman) e a escrava Hallie (Mae Mercer) em estado de permanente tensão. Sedutor, McBurney logo descobre que a única forma de sair ileso da situação é usar de seu charme e inteligência, manipulando as moradoras do local através de suas carências físicas e emocionais. Assim, envolve Martha em sua lábia, seduz uma aluna mais velha, Carol (Jo Ann Harris), faz promessas românticas a Edwina e mantém todas ignorando sua estratégia. Não demora, no entanto, para que o ambiente carregado de tensão sexual exploda de forma inesperada e violenta.

A atmosfera encharcada de tesão é, talvez, o principal elemento narrativo de "O estranho que nós amamos": Siegel não tem medo de fazer de McBurney uma espécie de anjo exterminador, capaz de destruir a aparente tranquilidade da escola feminina sem que seja preciso muito esforço. Sua presença, quase sempre silenciosa mas dotada de grande força, é o catalisador de um furacão de ressentimentos, inveja, ciúmes e mentiras, das quais ninguém (ou quase) sai impune. O roteiro não se furta a fazer de cada um de seus personagens peças fundamentais em explorar os desejos mais recônditos do ser humano - a severa diretora, por exemplo, esconde um proibido romance do passado e não demora em se render aos mais desvairados pensamentos em relação ao (a princípio) indesejado hóspede e não hesita em ser a mão vingadora do grupo, em uma sequência que certamente deve ter deixado os executivos da Universal Pictures de cabelo em pé. Em uma grande atuação de Geraldine Page - em um papel pensado para a musa francesa Jeanne Moureau (ideia vetada pelo presidente do estúdio, Lew Wasserman) -, Martha Farnsworth é o leme de um navio aparentemente sólido que escapa por pouco de um trágico naufrágio. Corajoso, poético e surpreendente, "O estranho que nós amamos" não é o filme preferido de Don Siegel dentre todos os seus trabalhos à toa. É uma produção de orgulhar qualquer cineasta e um dos clássicos do cinema hollywoodiano da década de 1970 e de quebra pode ser considerado o responsável pela estreia de Clint Eastwood como diretor - além de protagonista, Eastwood realizou um documentário sobre as filmagens, chamado "The beguiled: the storyteller", o começo de sua vitoriosa carreira também atrás das câmeras.

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