sexta-feira

TODO PODEROSO

 


TODO PODEROSO (Bruce Almighty, 2003, Universal Pictures, 103min) Direção: Tom Shadyac. Roteiro: Steve Koren, Mark O'Keefe, Steve Oedekerk, estória de Steve Koren, Mark O'Keefe. Fotografia: Dean Semler. Montagem: Scott Hill. Música: John Debney. Figurino: Judy Ruskin Howell. Direção de arte/cenários: Linda DeScenna/Rick McElvin. Produção executiva: Gary Barber, Roger Birnbaum, Steve Oedekerk. Produção: Michael Bostik, James D. Brubaker, Jim Carrey, Steve Koren, Michael O'Keefe, Tom Shadyac. Elenco: Jim Carrey, Morgan Freeman, Jennifer Aniston, Philip Baker Hall, Steve Carell, Sally Kirkland. Estreia: 14/5/2003

Depois de provar-se como um ator capaz de alçar maiores voos dramáticos - em filmes como "O show de Truman: o show da vida" (1998), "O mundo de Andy" (1999) e "Cine Majestic" (2001) - o canadense Jim Carrey achou que já era hora de voltar à sua zona de conforto e abraçar o gênero que lhe deu fama, dinheiro e o amor de milhares de fãs. Ao reunir-se com o cineasta Tom Shadyac - que lhe deu seu primeiro grande sucesso de bilheteria, "Ace Ventura: um detetive diferente" (1994) e lhe confirmou o status de astro com "O mentiroso" (1997) - e assumir novamente seu talento em fazer rir com caras e bocas, Carrey tornou "Todo poderoso" a comédia de maior sucesso de sua carreira e, mais impressionante ainda, da história (batendo o recorde de "Esqueceram de mim", lançado em 1990). Contando com a luxuosa ajuda de Morgan Freeman e Jennifer Aniston - no auge do sucesso de "Friends" -, Carrey nem precisa se esforçar muito para arrancar gargalhadas das plateias, mesmo que nem sempre o roteiro atinja todas as suas possibilidades. Baseado livremente no romance "Almighty me", de Robert Bausch - que não é citado em nenhum momento como fonte oficial -, o filme de Shadyac brinca com a ideia universal de um ser humano adquirir poderes divinos, e aposta todas as suas fichas em seu astro. E ganha.

Criado como veículo para Kevin Hart, que abandonou o projeto por considerar o tema sacrílego, "Todo poderoso" apresenta Carrey como Bruce Nolan, um repórter televisivo infeliz com o rumo de sua carreira. Constantemente subestimado por seus superiores - que lhe escalam sempre para cobrir amenidades irrelevantes -, Nolan atinge o ápice de seu desgosto com a vida quando vê seu maior rival profissional, Evan Baxter (Steve Carrell), ficar com seu almejado posto de âncora do telejornal local. Frustrado e irado com a situação, ele acaba chamando a atenção de Deus, que ouve seus lamentos e lhe aparece (na figura de Morgan Freeman) para informar que, durante um período em que estará de férias, é o próprio Nolan quem irá ficar em seu lugar, tomando todas as decisões inerentes à função. Dotado de super poderes e com o dom de realizar milagres, conceder graças e - em pequenos atos de mesquinhez - prejudicar seu arquirrival no caminho do sucesso. Enquanto se diverte com a situação, porém, o aspirante a celebridade percebe que o Homem-aranha já sabe ("grandes poderes trazem grandes responsabilidades") e passa a negligenciar seu romance com a apaixonada Grace (Jennifer Aniston).

 


Se o roteiro escrito por Steve Koren, Mark O'Keefe e Steve Oedekerk não consegue escapar das armadilhas de uma trama quase moralista (com uma mensagem que não exatamente combina com o tom iconoclasta do humor praticado por seu ator central), Jim Carrey deita e rola em um papel que remete aos melhores momentos da comédia física que lhe consagrou. Quando o roteiro insiste em falar sério ou até mesmo apelar para o romantismo, o filme de Shadyac mostra que ambiciona mais do que simplesmente fazer rir descompromissadamente - como em seus outros trabalhos com o astro -, mas acaba por criar, involuntariamente, uma quebra de ritmo que compromete o resultado final. Os fãs de Carrey, logicamente, tem muito a aproveitar - o ator está em plena forma - e encontrarão diversos momentos hilariantes. De brinde, ainda há a participação de Steve Carell (ainda creditado como Steven) em uma sequência das mais engraçadas - não por acaso o próprio Carell assumiu a protagonização da continuação, lançada, sem o mesmo êxito, em 2007.

Banido no Egito devido a seu conteúdo considerado ofensivo, "Todo poderoso" é mais um sucesso incontestável na bem-sucedida carreira de Jim Carrey - que levou uma bolada de 25 milhões de dólares de cachê. Leve, despretensioso (ainda que levemente mais profundo do que boa parte de suas comédias) e solar, contrasta radicalmente de seu currículo até então - um currículo que seria enriquecido ainda mais no ano seguinte com o belo "Brilho eterno de uma mente sem lembranças", que ofereceria às plateias um novo lado do ator: o romântico. Antes de sua estreia, porém, o público pode divertir-se às pencas com uma trama que apostava em seu humor debochado e frequentemente exagerado - características que sempre fizeram dele uma aposta certeira quando se tratava de arrancar gargalhadas quase histéricas do espectador.

quinta-feira

ALIANÇA DO CRIME

 


ALIANÇA DO CRIME (Black Mass, 2015, Cross Creek Pictures, 123min) Direção: Scott Cooper. Roteiro: Mark Mallouk, Jez Butterworth, livro de Dick Lehr, Gerard O'Neill. Fotografia: Masanobu Takayanagi. Montagem: David Rosenbloom. Música: Tom Holkenborg. Figurino: Kasia Walicka Maimone. Direção de arte/cenários: Stefania Cella/Tracey Doyle. Produção executiva: Brett Granstaff, Gary Granstaff, Phil Hunt, Peter Mallouk, Ray Mallouk, Steven Mnuchin, James Packer, Brett Ratner, Compton Ross, Christopher Woodrow. Produção: Scott Cooper, John Lesher, Patrick McCormick, Brian Oliver, Tyler Thompson. Elenco: Johnny Depp, Joel Edgerton, Benedict Cumberbatch, Dakota Johnson, Kevin Bacon, Peter Sarsgaard, Jesse Plemons, Rory Cochrane, David Harbour, Adam Scott, Corey Stoll, Julianne Nicholson, Juno Temple. Estreia: 04/9/2015 (Festival de Veneza)

É difícil assistir a qualquer cena de "Aliança do crime" sem que o cinema de Martin Scorsese surja na memória do espectador. Não por sua qualidade (apenas razoável), mas porque, de uma forma ou outra, o cineasta nova-iorquino criou uma espécie de cânone em relação ao subgênero de filmes de gângster - ao menos aqueles menos épicos - do qual poucos diretores conseguem escapar. E, apesar da violência de sua trajetória e do número de vítimas que deixou em seu caminho, James "Whitey" Bulger - protagonista do filme de Scott Cooper - jamais poderia ser considerado um personagem glamoroso. Provavelmente o mais notável criminoso da história de South Boston (e irmão de um senador) foi beneficiado, durante anos, por um acordo com o FBI - que permitiu a ele expandir seus negócios escusos e aumentar sua lista de homicídios - e, em mãos ousadas como as de Scorsese poderia render uma pequena obra-prima (não por acaso há ecos de sua história em "Os infiltrados", vencedor do Oscar de 2007). Comandado por Scott Cooper, porém, o roteiro baseado no livro de Dick Lehr e Gerard O'Neill acabou esbarrando em uma direção quase apática - tão influenciada por outras produções semelhantes que acaba por tornar-se pouco memorável, apesar do caprichado trabalho de Johnny Depp no papel central.

Substituindo Guy Pearce - que abandonou o projeto - e dedicando a ele um cuidado que chegou a planejar um encontro (nunca realizado) com o verdadeiro Bulger, Depp impressionou os consultores do filme, antigos associados do criminoso, parte da imprensa especializada (que o indicou a um Critic's Choice Awards) e de seus colegas de ofício (que o fizeram concorrer a um prêmio do Sindicato de Atores). Seu desempenho é realmente potente, enfatizado por uma caracterização impecável, que inclui a maquiagem, o figurino e a expressão corporal que o afastam de boa parte dos personagens exóticos que marcam sua carreira: por incrível que pareça, apesar da monstruosidade de seus atos, Bugler encontra, no trabalho de seu protagonista, um tom que evita o maniqueísmo absoluto - algo que nem mesmo o roteiro morno consegue impedir. Em um elenco repleto de ótimos atores - dentre os quais Benedict Cumberbatch, Kevin Bacon, Jesse Plemons e Joel Edgerton - o normalmente exagerado Depp consegue destacar-se sem apelar para a caricatura e entrega sua melhor atuação desde "Donnie Brasco" (1997) - coincidentemente outro filme sobre um infiltrado na máfia. Desta vez do lado do crime, o ator preferido de Tim Burton deita e rola com seu personagem, mesmo que o ritmo imposto por Cooper - que dirigiu "Coração louco" (2009) e deu a Jeff Bridges seu merecido Oscar - seja contemplativo demais para uma produção do gênero.

 

Assim como em seu "Tudo por justiça" (2013), em que a ação transcorria em um ritmo próprio, sem pressa e concentrado mais em seus personagens do que na narrativa propriamente dita, Scott Cooper imprime a "Aliança do crime" uma pegada menos ágil e mais dramática. Ainda há violência - é um filme sobre gângsters, afinal de contas -, mas ela não se restringe apenas a tiros, sangue e agressões físicas: interessa mais ao cineasta o turbilhão emocional de seus personagens, afetados (ou não) pela tensão constante à sua volta. Bulger não é uma ilha, e cercado por familiares e associados, enreda a todos em sua rotina de fora da lei, desde a mulher, Lindsey Cyr (Dakota Johnson) - um relacionamento fadado a uma tragédia que envolve o filho pequeno - até o irmão, Billy (Benedict Cumberbatch), senador que põe a própria carreira em risco devido a seus laços de sangue. É, aliás, o relacionamento de Bulger com o agente do FBI John Connolly (Joel Edgerton em papel herdado de Tom Hardy) que empurra a trama: amigo de infância do temido bandido, Connolly convence seus superiores a fazer um acordo com ele, dando-lhe relativa liberdade de ação em troca de informações sobre a máfia local (um inimigo em comum). Aos poucos Bulger vai se tornando mais e mais poderoso - mas as coisas mudam quando um novo procurador é designado para a área. Disposto a não mais fechar os olhos para os crimes do gângster, Fred Whysack (Corey Stoll) dá início à derrocada de um império.

Mesmo que o ritmo de "Aliança do crime" fuja da agilidade esperada de um filme do gênero - especialmente quando o público já está devidamente acostumado à adrenalina de obras como "Os bons companheiros" (1990) -, o filme de Scott Cooper cumpre boa parte do que promete. O roteiro por vezes confunde com seu excesso de personagens e a edição repleta de flashbacks do experiente David Rosenbloom nem sempre dá conta de lidar com tanta informação, mas é inegável que a atuação hipnotizante de Johnny Depp e a trama em si (inacreditável por natureza) são elementos fortes o bastante para sustentar uma produção que tem o cuidado de recriar a Boston dos anos 1970 com precisão - aplausos também para o figurino caprichado de Kasia Walicka Maimone (que depois faria parceria com Steven Spielberg em "Ponte dos espiões", de 2015) e a trilha sonora, que inclui Rolling Stones, Fletwood Mac, Blondie e Ella Fitzgerald. No saldo final, "Aliança do crime" pode não ser uma obra-prima, mas oferece ao espectador um conjunto suficiente de elementos para mantê-lo diante da tela e aproveitar suas inúmeras qualidades.

quarta-feira

LOBO

 


LOBO (Wolf, 1994, Columbia Pictures, 125min) Direção: Mike Nichols. Roteiro: Jim Harrison, Wesley Strick. Fotografia: Giuseppe Rotunno. Montagem: Sam O'Steen. Música: Ennio Morricone. Figurino: Ann Roth. Direção de arte/cenários: Jim Dultz, Juliet Taylor/Linda DeScenna. Produção executiva: Robert Greenhut, Neil Machlis. Produção: Douglas Wick. Elenco: Jack Nicholson, Michelle Pfeiffer, James Spader, Christopher Plummer, Kate Nelligan, Richard Jenkins, David Hyde Pierce, Eileen Atkins, Ron Rifkin. Estreia: 17/6/94

Quando o ator Jack Nicholson e seu amigo e parceiro profissional, o roteirista Jim Harrison, tiveram a ideia de fazer um filme sobre lobisomens, jamais imaginaram que, apesar do prestígio do astro, ainda demorariam mais de uma década para vê-lo nas telas. Com algumas pequenas alterações na trama originalmente imaginada - o protagonista deixou de ser um advogado para virar um editor literário, por exemplo - e mudanças no elenco durante a fase de pré-produção - até mesmo Marlon Brando esteve envolvido com o projeto em determinado momento -, "Lobo" estreou no verão norte-americano de 1994 com grandes expectativas por parte do público e da Columbia Pictures, ávida por um sucesso de bilheteria mas temerosa devido a fracas exibições-teste, que adiaram seu lançamento por quase um ano. Dirigido pelo experiente Mike Nichols e com o objetivo de conquistar um público adulto e mais exigente - em tese o oposto das plateias que lotavam as salas para testemunharem banhos de sangue adolescente -, o filme acabou por decepcionar a todos: não apenas teve uma bilheteria doméstica morna (que nem chegou a cobrir seu orçamento de aproximadamente 70 milhões de dólares) como ficou aquém, em termos artísticos, ao que se poderia esperar da reunião de Jack e Mike - que, juntos, já haviam realizado "Ânsia de amar" (1971), O golpe do baú" (1976) e "A difícil arte de amar" (1986).

Sugerido para a direção por Jack Nicholson - que tinha direito à palavra final na escolha do nome para a condução do projeto -, Mike Nichols oferece a "Lobo" uma visão elegante e madura, realçada por um elenco de primeira linha e uma equipe técnica brilhante. Da fotografia impressionante do italiano Giuseppe Rotunno (colaborador frequente de Fellini e Visconti) à trilha sonora quase minimalista de Ennio Morricone (que substituiu John Williams devido ao atraso do cronograma de produção), tudo no filme respira classe. Sem apelar para a violência extrema (o que de certa forma decepcionou parte do público), Nichols conduz seu filme com um tom de seriedade muito bem-vindo - não à toa alguns temas citados por ele a respeito da obra (a morte de Deus, o declínio da civilização ocidental e até a epidemia da AIDS) são bastante densos e contrastam radicalmente da falta de conteúdo da maioria das produções do gênero. Tanta preocupação com subtextos, no entanto, não conseguem esconder o fato de que, a despeito de suas qualidades de produção, o filme de Nichols falha em sua principal missão: contar sua história de forma marcante - ou a menos com a força que se espera de uma produção de seu nível. O público fã do gênero tem muito a gostar, mas o resultado final não deixa de ser um tanto frustrante.

 

A trama criada por Jim Harrison - e reescrita por Wesley Strick, para desgosto do autor original - já começa em plena ação: o editor literário Will Randall (Jack Nicholson), em uma viagem de volta ao lar, atropela e é mordido por um lobo em plena noite de lua cheia. Ao mesmo tempo em que começa a perceber estranhas mudanças em seu organismo - a audição fica apurada, sua força física aumenta e o faro torna-se mais potente -, Randall vê sua vida entrar em franca decadência. Demitido por seu chefe, Raymond Alden (Christopher Plummer), abandonado pela esposa, Charlotte (Kate Nelligan), e traído por seu homem de confiança, Stewart Swinton (James Spader), Randall encontra apenas um consolo: a atração recíproca que sente pela bela filha de Alden, a voluntariosa Lauren (Michelle Pfeiffer). Conforme vai percebendo que o ataque do lobo pode tê-lo transformado em um lobisomem, o executivo aproveita as vantagens da situação ao mesmo tempo em que se preocupa com a possibilidade de ver sua nova natureza assumir um tom violento e irracional.

Dotado de uma narrativa convencional - mas com uma edição ágil o bastante para não aborrecer às plateias mais jovens -, "Lobo" apresenta qualidades quase redentoras, como a atuação habitualmente caprichada de Jack Nicholson, a beleza estonteante de Michelle Pfeiffer (em papel recusado por Sharon Stone e Annette Bening e que quase ficou com Mia Farrow, em meio à sua polêmica confusão com Woody Allen) e o roteiro que enfatiza o tom de suspense que acompanha o folclore em torno dos lobisomens. Não deixa de ser atípico ver um cineasta como Mike Nichols (mais acostumado com relações pessoais e crises sentimentais do que com efeitos visuais) no comando de uma obra tão comercial, mas seria ainda mais surpreendente se a primeira escolha do estúdio tivesse se mantido: ninguém menos que Stanley Kubrick foi sondado para a tarefa - e recusou, para surpresa de ninguém. É de se imaginar o que o britânico poderia ter feito com o material (não se pode esquecer que já havia dirigido Jack Nicholson em outro filme de terror, o infame "O iluminado", de 1980), mas certamente teria sido menos esquecível - para o bem ou para o mal.

segunda-feira

JADE

 


JADE (Jade, 1995, Paramount Pictures, 95min) Direção: William Friedkin. Roteiro: Joe Eszterhas. Fotografia: Andrzej Bartkowiak. Montagem: Augie Hess. Música: James Horner. Figurino: Marilyn Vance. Direção de arte/cenários: Alex Tavoularis/Gary Fettis. Produção executiva: William J. MacDonald. Produção: Gary Adelson, Craig Baumgarten, Robert Evans, Christine Peters. Elenco: David Caruso, Linda Fiorentino, Chazz Palminteri, Richard Crenna, Michael Biehn, Donna Murphy, Angie Everhart. Estreia: 13/10/95

Vencedor do Oscar de melhor diretor por "Operação França" (1971) - que também levou a estatueta de melhor filme - e o nome por trás do estrondoso sucesso de "O exorcista" (1973), William Friedkin declarou, em uma entrevista, que dentre todos os seus trabalhos, o seu favorito era "Jade", lançado em 1995. Das duas uma: ou o veterano cineasta buscava reacender as polêmicas em torno do filme ou estava seriamente fora de seu juízo perfeito. Medíocre, quase amador e constrangedor em suas tentativas de soar sexy ou transgressor, a produção estrelada por David Caruso e Linda Fiorentino naufragou fragorosamente nas bilheterias - custou cerca de 50 milhões de dólares e rendeu menos de 10 - e praticamente enterrou a carreira de seu astro, vindo da bem-sucedida série de televisão "Nova York contra o crime" e que, com dois fracassos consecutivos (o outro foi "O beijo da morte", que estreou poucos meses antes), chegou a pensar em abandonar Hollywood. Parte de uma série de produções da primeira metade da década de 1990 que apostavam no erotismo para chamar a atenção das plateias, "Jade" demonstrou, sem espaço para dúvidas, o desgaste da fórmula - e o fato de ter um elenco sem carisma e uma história fraca ajudou (e muito) em sua pouca repercussão.

Apesar de o roteirista de "Jade" ser o mesmo Joe Eszterhas de "Instinto selvagem" (1992) - o enorme sucesso popular que deu início ao boom do gênero - e de sua estrutura ter similaridades bastante óbvias, o filme de Friedkin sofre com a apatia de seu protagonista masculino (tanto o personagem quanto o ator, David Caruso), a sensualidade pouco atraente de sua estrela feminina (Linda Fiorentino sem repetir o êxito de sua performance avassaladora em "O poder da sedução") e a direção quase preguiçosa de William Friedkin - também responsável pelas constantes alterações no roteiro, provável motivo da fragilidade do produto final. Mesmo nas sequências de ação, o cineasta fica longe de demonstrar a segurança vista, por exemplo, em "Operação França" - as perseguições automobilísticas soam repetitivas e são incapazes de empolgar o público, além de parecerem completamente deslocadas da trama (confusa, desinteressante e, pior de tudo, totalmente artificial em suas tentativas de parecer sensual).

 

Assim como em "Instinto selvagem" e "Corpo em evidência" (1992) - estrelado por Madonna e igualmente amparado em sexo e violência -, "Jade" começa com um violento assassinato relacionado a aventuras eróticas. A vítima é um proeminente empresário, morto a golpes de machado. Durante a investigação, a equipe liderada pelo procurador assistente de São Francisco, David Corelli (David Caruso), encontra uma série de fotos do governador do estado, Lew Edwards (Richard Crenna), mantendo relações com uma prostituta chamada Patrice Jacinto (Angie Everhart). Interrogada pela polícia, Patrice revela que o morto mediava encontros de garotas de programa com homens ricos da região e que a mais desejada dentre todas era uma mulher com o nome de guerra de Jade - uma profissional conhecida por realizar todos os desejos de seus clientes, por mais bizarros que possam ser. Novas pistas, porém, levam a Katrina Gavin (Linda Fiorentino), respeitada psicóloga clínica casada com o advogado Matt Gavin (Chazz Palmiteri em papel oferecido a Kenneth Branagh) - Katrina é Jade, uma personalidade que lhe permite atingir o prazer sexual, e tal revelação leva o próprio Corelli a suspeitar de sua inocência, por mais que isso lhe incomode pessoalmente: ele não apenas é amigo íntimo de Gavin como também é completamente apaixonado pela principal suspeita do caso.

A trama pouco verossímil de "Jade" - assim como seu ritmo pouco convidativo e o desenvolvimento precário de seus personagens - colabora com a sensação de filme feito às pressas, sem cuidado com questões cruciais de roteiro e pós-produção. Além de esteticamente decepcionante - nem mesmo as cenas de sexo são minimamente excitantes - e transmitir uma aura de filme B, o trabalho de Friedkin sofre com um elenco fraquíssimo, incapaz das menores nuances de realismo. Caruso - inexpressivo como poucos -, ficou com o papel recusado por Warren Beatty (!!!) e Fiorentino, vinda dos elogios unânimes por "O poder da sedução" - onde pintava e bordava com sua sexualidade franca e amoral -, é subaproveitada, sem ter seu carisma explorado a contento. Escalada para um papel em que praticamente toda Hollywood foi considerada - das óbvias Sharon Stone, Madonna e Demi Moore às mais ousadas possibilidades Nicole Kidman, Jodie Foster e Julia Roberts -, ela acabou por sofrer as consequências do fracasso da produção: de estrela promissora, passou a figurar em uma lista de coadjuvantes pouco lembrados (apesar de ainda obter sucesso como o principal nome feminino de "Homens de preto", de 1997). Já o caso de David Caruso foi quase pior: depois de dois grandes fiascos seguidos, tomou parte de algumas produções obscuras e só retornou ao relativo prestígio em 2002, quando assumiu o papel principal de "CSI: Miami".

Esquecível e quase constrangedor, "Jade" é uma mancha na carreira de William Friedkin, apesar de sua opinião contrária. Talvez sirva para madrugadas insones - mas mesmo assim só se não houver mais nenhuma opção.

sexta-feira

MUITO GELO E DOIS DEDOS D'ÁGUA

 


MUITO GELO E DOIS DEDOS D'ÁGUA (Muito gelo e dois dedos d´água, 2006, Globo Filmes/Lereby Productions, 108min) Direção: Daniel Filho. Roteiro: Alexandre Machado, Fernanda Young. Fotografia: Nonato Estrela. Montagem: Felipe Lacerda. Figurino: Marília Carneiro. Direção de arte: Cláudio Amaral Peixoto. Produção executiva: Iafa Britz. Produção: Daniel Filho. Elenco: Mariana Ximenes, Paloma Duarte, Laura Cardoso, Angelo Paes Leme, Thiago Lacerda, Carla Daniel, Aílton Graça. Estreia: 04/10/2006 

Não há quem possa negar a importância de Daniel Filho na história da televisão brasileira - é ele o responsável por alguns dos programas de maior repercussão e prestígio da Rede Globo, a quem ajudou a modernizar-se e estabelecer-se como uma das maiores emissoras do mundo. Criou e dirigiu novelas, séries, programas musicais - e marcou presença como ator em várias dessas produções. Seu talento indiscutível como homem de televisão, porém, não se repetiu no cinema - para onde investiu seu tempo com afinco desde o começo do século XXI. Apesar do sucesso de bilheteria, filmes como "A partilha" (2001) e "Se eu fosse você" (2006) - assim como sua sequência, de 2008 - ficaram muito aquém de sua capacidade artística, jamais conseguindo escapar dos vícios de produções televisivas. "Muito gelo e dois dedos d'água", lançado em 2006, é uma confirmação da regra: apesar de alguns nomes promissores na equipe, é uma comédia quase constrangedora, repleta de piadas de mau gosto e - salvo raras exceções - atuações que surpreendem  pelo exagero (mesmo que dentro da proposta de excessos impressa em cada centímetro de celuloide).

Uma mistura pouco inspirada de Pedro Almodóvar (no visual de cores berrantes e personagens à beira de um ataque de nervos) e comédia pastelão, "Muito gelo e dois dedos d'água" conta a história de uma vingança familiar com todas as probabilidades de fracasso: praticamente torturadas pela avó desde a infância, quando eram obrigadas a passar os verões sendo humilhadas, duas irmãs resolvem dar o troco na vida adulta. Suzana (Paloma Duarte, a melhor em cena) tem uma vida estável com Francisco (Thiago Lacerda) - um médico certinho e pouco afeito a sair da rotina - e um filho pequeno. Por sua vez, Roberta (Mariana Ximenes) nunca conseguiu se acertar com nenhum namorado e leva a vida em uma constante festa regada a álcool e drogas. Traumatizadas pelos abusos psicológicos sofridos quando crianças - quando sua avó, Judite (Laura Cardoso) não media esforços para ensiná-las regras inalcançáveis de etiqueta e educação -, as duas irmãs traçam um plano de revanche e sequestram a idosa, com o objetivo de levá-la (no porta-malas do carro) até o litoral de Alagoas e repetir com ela todas as pequenas torturas sofridas. No caminho, elas encontram outro desajustado não-assumido, Renato (Angelo Paes Leme), e passam a ser perseguidas pela polícia e pelo inconsolável Francisco.

 

É inacreditável que o roteiro de "Muito gelo e dois dedos d'água" seja de Alexandre Machado e Fernanda Young, autores de pequenas obras-primas do humor televisivo, como "Os normais" e "Os aspones": mesmo que seu senso de humor seja reconhecido em um momento ou outro do filme (especialmente em alguns diálogos de duplo sentido), na maior parte da produção o que se vê é uma sequência de piadas visuais que raramente funcionam, uma trama que flerta descaradamente com a escatologia (outra característica da dupla de roteiristas) e uma tentativa pouco feliz de brincar com a linguagem de animação - como os créditos de abertura deixam bastante óbvio. Tal objetivo - o de abandonar o realismo e assumir um tom de farsa - é relativamente atingido, mas o problema é que em nenhum momento o filme de Daniel consegue deixar de parecer um especial de televisão (mais ousado, é verdade, recheado de palavrões e nudez, mas ainda assim limitado artisticamente).

O que deixa a produção razoavelmente suportável é o elenco, ainda que nem todo mundo esteja em seus melhores momentos da carreira. Se Paloma Duarte surpreende com um registro cômico raro em sua trajetória, o desempenho de Thiago Lacerda, por exemplo, estaria mais adequado em programas de humor popular. Se Angelo Paes Leme encontra um caminho inteligente de mostrar uma face nova de seu talento, Mariana Ximenes sofre com uma caracterização escorada em clichês - e que atrapalha seu trabalho, por melhor atriz que ela seja. E a veterana Laura Cardoso, coitada, fica perdida em meio a um turbilhão de gritos, personagens superficiais e uma direção caótica (no mau sentido). Um passo em falso no currículo invejável de Alexandre Machado e Fernanda Young, "Muito gelo e dois dedos d'água" promete muito mais do que entrega - é uma comédia que provoca mais sorrisos amarelos e constrangedores do que risadas orgânicas e sinceras.

quinta-feira

A SUPREMA FELICIDADE

 


A SUPREMA FELICIDADE (A suprema felicidade, 2010, Ramalho Filmes, 121min) Direção: Arnaldo Jabor. Roteiro: Arnaldo Jabor, Ananda Rubinstein. Fotografia: Lauro Escorel. Montagem: Leticia Giffoni. Figurino: Valeria Stefani. Produção executiva: Andréa Ramalho. Produção: Arnaldo Jabor, Francisco Ramalho Jr., Lucia Seabra. Elenco: Jayme Matarazzo, Michel Joelsas, Marco Nanini, Dan Stulbach, Mariana Lima, Caio Manhente, Maria Flor, Elke Maravilha, João Miguel, Ary Fontoura, Maria Luísa Mendonça, Tammy Di Calafiori, Emiliano Queiroz. Estreia: 29/10/2010

Quem conhece a filmografia de Arnaldo Jabor deve ter levado um susto ao assistir a seu "A suprema felicidade": até pouco mais da metade do filme, quase nada leva a crer que o homem por trás de obras como "Eu te amo" (1980) e "Eu sei que vou te amar" (1986) - trabalhos verborrágicos, cínicos e sarcásticos - também é o autor de um olhar tão carinhoso e nostálgico sobre um Rio de Janeiro que só existe na memória e no coração de quem o conheceu. Ao deixar de lado o tom neurótico de suas produções mais celebradas e abraçar o caminho da saudade (que remete a Federico Fellini e seus mergulhos na metalinguagem), o polêmico cineasta acabou por revelar uma insuspeita simpatia à humanidade - através de sequências oníricas, personagens maiores que a vida (e paradoxalmente dotadas de grande sinceridade) e diálogos que se equilibram entre o poético e o mundano. Intercalando épocas distintas da vida de seu protagonista, o roteiro de Jabor (co-escrito por Ananda Rubinstein) apresenta um rico panorama pessoal e social das décadas de 40, 50 e 60, com um viés emocional que encontra respaldo na produção caprichada e em um elenco totalmente entregue à proposta do cineasta.

Sem filmar desde "Eu sei que vou te amar" - que deu à Fernanda Torres a Palma de Ouro no Festival de Cannes 1986 -, Arnaldo Jabor voltou ao cinema com um discurso mais suave, mais terno, mais delicado, quase radicalmente oposto a seus trabalhos anteriores, calcados em personagens à beira de constantes ataques de nervos. Seu protagonista em "A suprema felicidade" - uma espécie de alter ego pouco disfarçado - é Paulo, que, conforme vai amadurecendo, vai encontrando diversas formas de amor, desejo e solidão, em uma cidade capaz de lhe oferecer tanto momentos líricos quanto a dureza de uma civilização recém saída de uma guerra mundial. Aos oito anos de idade, Paulo é interpretado pelo carismático Caio Manhente - é 1945, o Brasil comemora o fim do conflito na Europa e o menino testemunha a relação ainda calorosa entre os pais, Marcos (Dan Stulbach) e Sofia (Mariana Lima), cuja história de amor remete a um passado mais feliz e colorido. Cinco anos mais tarde, é Michel Joelsas quem assume o posto de ator central, em uma fase onde o jovem começa a descobrir o amor ao mesmo tempo em que percebe as rachaduras na harmonia conjugal familiar. Aos dezenove (e justamente na fase mais crucial) quem interpreta Paulo é o fraco Jayme Matarazzo - e é nesse momento que a trama trai a autoria do diretor/roteirista: ao encarar a boemia carioca e seus desdobramentos, Paulo toma contato com prostitutas arriscando a vida, bêbados contumazes, uma possível amante do pai e a torturada Deise (Maria Flor) - uma típica personagem jaboriana, com traumas e neuroses que remetem diretamente a suas obras anteriores. 

 

Ao optar por uma estrutura narrativa que privilegia episódios independentes ao invés de uma trama sólida, com começo, meio e fim bem definidos, o roteiro impede o espectador de construir a conexão necessária com seu protagonista. Sua colcha de retalhos - com idas e vindas no tempo - dá vazão também à interessante ideia de homenagear (visual e tematicamente) estéticas cinematográficas nacionais, como a chanchada, musicais da Atlântida e o Cinema Novo: estão em cena os personagens caricatos da primeira, as marchas de carnaval de rua da segunda e o tom seco que acompanha a boemia trágica e crua da noite carioca que remete diretamente à influência do neorrealismo. Nem sempre todos esses elementos dialogam a contento, mas Jabor parece menos amargo do que em boa parte de sua filmografia, sendo capaz inclusive de lampejos de um otimismo quase piegas - uma sensação que só é eliminada graças à atuação impecável de Marco Nanini, que na pele do avô de Paulo, o idiossincrático Noel, rouba a cena com uma construção de personagem lúdica e comovente, capaz de minimizar os problemas do produto final.

E há problemas: o terço final de "A suprema felicidade" deixa claro a fragilidade do roteiro de Jabor e sua estrutura episódica. Paulo, seu protagonista, não tem a força necessária para angariar a simpatia incondicional do espectador, se comportando como a testemunha ocular de uma série aparentemente desconexa de acontecimentos e personagens soltos e rasos. A bem da verdade, não há uma história no filme, apenas situações que, juntas, compõem um álbum de recordações ora doces ora indigestos. Para sorte de todos - diretor e público - há um elenco que, apesar de tudo, alcança momentos de pura graça: Dan Stulbach e Mariana Lima estão soberbos como o casal que atravessa todas as fases de um casamento, e Maria Flor brilha como a neurótica Deise (talvez a única personagem que combina com o universo do cineasta). São eles (e de certa forma o acertado tom de leveza da fotografia e da edição) que impedem o último filme de Jabor (morto em 2022) de parecer anacrônico e superficial. Não deixa de ser irônico que um artista que deu ao mundo petardos como "Toda nudez será castigada" (1973) e "O casamento" (1975) - ambos baseados em obras de Nelson Rodrigues - tenha se despedido com um filme tão delicado e de bem com a vida.

quarta-feira

REVELAÇÃO

 


REVELAÇÃO (What lies beneath, 2000, 20th Century Fox/DreamWorks Pictures, 130min) Direção: Robert Zemeckis. Roteiro: Clark Gregg, história de Clark Gregg, Sarah Kernochan. Fotografia: Don Burgess. Montagem: Arthur Schmidt. Música: Alan Silvestri. Figurino: Susie DeSanto. Direção de arte/cenários: Rick Carter, Jim Teegarden/Karen O'Hara. Produção executiva: Joan Bradshaw, Mark Johnson. Produção: Jack Rapke, Steve Starkey, Robert Zemeckis. Elenco: Harrison Ford, Michelle Pfeiffer, Miranda Otto, James Remar, Diana Scarwid, Katharine Towne. Estreia: 18/7/2000

Em 2000, quando dirigiu "Revelação", o cineasta Robert Zemeckis já tinha no currículo uma comédia adolescente ("Febre de juventude"), um clássico da ficção científica juvenil ("De volta para o futuro" e suas continuações), um marco na interação entre live action e animação ("Uma cilada para Roger Rabbit"), um vencedor de múltiplos Oscar ("Forrest Gump: o contador de histórias") e uma adaptação de Carl Sagan ("Contato"). Faltava ainda exercitar seu músculo hitchcockiano e a oportunidade chegou na pausa das filmagens de "Náufrago" - enquanto Tom Hanks sofria para emagrecer o necessário para a segunda etapa dos trabalhos do filme que lhe daria mais uma indicação à estatueta, Zemeckis mergulhou em seu desejo de assustar os espectadores com uma trama que mistura fantasmas, assassinatos... e um Harrison Ford deixando de lado a persona heroica para dar vida a um personagem no mínimo dúbio. 

A um custo estimado de cem milhões de dólares - recuperado facilmente nas bilheterias ao redor do mundo, seduzido pela presença de Ford e da estrela Michelle Pfeiffer -, "Revelação" é uma exibição das técnicas de Zemeckis como diretor, um filme repleto de jogos de câmera, cortes rápidos, uso generoso da trilha sonora e exploração inteligente do som e da fotografia. Mas é, também, um filme com sérios problemas de roteiro e um desfecho atolado em clichês - problemas disfarçados por uma embalagem luxuosa proporcionada pelo orçamento milionário e por seus astros fotogênicos. Pfeiffer, linda e exuberante, brilha a maior parte do tempo - mesmo quando o roteiro apela para explicações sobrenaturais pouco críveis para uma trama que se propõe séria. Ford, por sua vez, só é devidamente aproveitado na segunda metade da história - mas não consegue fugir do tom monocórdio da maioria de seus trabalhos que não Indiana Jones. A dupla de atores - escolhas únicas do cineasta desde a concepção do projeto - apresenta uma química interessante que vai crescendo a cada sequência, mas ambos esbarram na preferência de Zemeckis em abusar de seus virtuosismos visuais em detrimento da consistência da história que deseja contar.

 

"Revelação" gira em torno do casal Spencer. Ele, Norman, é um cientista respeitado que tenta desesperadamente fugir da sombra do pai, igualmente prestigiado pela comunidade. Ela, Claire, é uma violoncelista que abandonou a carreira para cuidar do marido e da filha e que, um ano depois de um violento acidente de carro, se vê diante da solidão causada pela viagem de sua filha adolescente à universidade. Sozinha e entediada, Claire começa a acreditar que seu vizinho (James Remar) assassinou a esposa (Miranda Otto), a quem testemunhou chorando através da cerca de sua propriedade. Tal certeza coloca seu casamento em crise - agravada ainda mais quando a bela dona-de-casa passa também a ouvir vozes misteriosas e sentir presenças ameaçadoras em sua bela casa à beira de um lago de Vermont. Norman tem certeza de que sua esposa está passando por uma séria crise de nervos, mas a situação muda completamente quando tais eventos começam a remeter à identidade de uma jovem estudante desaparecida - cujo destino parece intimamente ligado à mansão dos Spencer.

A história concebida pelo também ator Clark Gregg - que coescreveu o roteiro com Sarah Kernochan - apresenta várias possibilidades para o espectador, mas infelizmente não consegue equilibrá-las a contento. Ao mesclar uma narrativa policial tradicional com elementos do mais puro terror sobrenatural, o filme parece derrapar em dois gêneros que, em mãos mais seguras, podem ser complementares - mas que sob o comando de Zemeckis nem sempre conseguem dialogar entre si. De talento mais que comprovado, o cineasta perde a mão ao enfatizar o suspense visual e deixar de lado o desenvolvimento de seus personagens - talvez mais uma homenagem a Hitchcock, que privilegiava a manipulação dos nervos do público através de artifícios narrativos visuais e sonoros. Em especial no ato final, a tensão assume um protagonismo tal que a trama em si soa ainda mais insignificante, como se servisse unicamente como vitrine das peripécias estilísticas de seu diretor. No final das contas, "Revelação" se mostra um filme de suspense acima da média, mas que fica aquém do talento de seu time - ao menos em termos de roteiro e consistência.

terça-feira

MEU PAI


MEU PAI (The father, 2020, Sony Pictures/Les Films du Cru/Film4/Orange Studio, 97min) Direção: Florian Zeller. Roteiro: Christopher Hampton, Florian Zeller, peça teatral de Florian Zeller. Fotografia: Ben Smithard. Montagem: Yorgos Lamprinos. Música: Ludovico Eunadi. Figurino: Anna Mary Scott Robins. Direção de arte/cenários: P
eeter Francis/Cathy Featherstone. Produção executiva: Daniel Battsek, Lauren Dark, Paul Grindey, Hugo Grumbar, Tim Haslam, Ollie Madden. Produção: Philippe Carcassone, Simon Friend, Jean-Louis Livi, David Parfitt, Christophe Spadone. Elenco: Anthony Hopkins, Olivia Colman, Olivia Williams, Rufus Sewell, Imogene Poots, Mark Gatiss, Ayesha Dharker. Estreia: 27/01/2020 (Sundance Film Festival)

6 indicações ao Oscar: Melhor Filme, Ator (Anthony Hopkins), Atriz Coadjuvante (Olivia Colman), Roteiro Adaptado, Montagem, Direção de Arte/Cenários

Vencedor de 2 Oscar: Ator (Anthony Hopkins), Roteiro Adaptado

A cerimônia do Oscar 2021 - dirigida por Steven Soderbergh e realizada em plena pandemia de Covid-19 - estava programada e organizada para acabar com a vitória de Chadwick Boseman na categoria de melhor ator, por "A voz suprema do blues". Até mesmo a regra já consagrada de deixar o anúncio de melhor filme para o final do evento havia sido alterada para que Boseman - morto precocemente poucos meses antes, aos 43 anos - fosse homenageado com um prêmio póstumo. Para surpresa geral, no entanto - de Soderbergh, dos convidados e dos telespectadores ao redor do mundo -, os membros da Academia preferiram oferecer sua cobiçada estatueta a um antigo vencedor. Por seu desempenho avassalador em "Meu pai", o galês Anthony Hopkins saiu da temporada seu segundo e inesperado Oscar - que foi fazer companhia ao prêmio dos críticos de Boston e ao BAFTA. E até mesmo os fãs do protagonista de "Pantera Negra" foram obrigados a reconhecer que, apesar de seu bom trabalho, sua derrota para Hopkins foi absolutamente justa. Assim como já havia acontecido em 1992, com "O silêncio dos inocentes", basta alguns momentos para que se perceba que premiar outro intérprete seria algo inconcebível.

Um dos mais devastadores retratos do mal de Alzheimer registrados no cinema, "Meu pai" é o filme de estreia do francês Florian Zeller, também autor da peça teatral que lhe deu origem e corroteirista da adaptação - pela qual levou um Oscar, que dividiu com Christopher Hampton. Seu trabalho é minucioso e sensível: sem abandonar a origem de seu texto, Zeller se utiliza de todos os recursos cênicos do cinema como forma de potencializar a sensação de desorientação do protagonista. Não à toa seus principais destaques além do elenco - a edição e o desenho de produção - foram igualmente lembrados pela Academia, rendida à inteligência do autor em contar sua história de forma a mergulhar o espectador na mente confusa de seu personagem central: ao invés de simplesmente mostrar a fragmentação de suas memórias e pensamentos, o filme perturba a zona de conforto do público ao fazê-lo questionar, desde suas primeiras cenas, o que é realidade e o que é parte do transtorno mental de Anthony, um inglês octogenário que se vê sucumbindo rapidamente à demência que borra radicalmente as linhas divisórias entre os fatos e as armadilhas de sua mente.

 

Assistir a "Meu pai" é adentrar em um universo que impede qualquer tipo de certezas factuais. Logo na primeira cena, Anthony (em uma atuação nunca aquém de magistral de Hopkins) se vê encostado na parede por sua filha, Anne (Olivia Colman, indicada ao Oscar de atriz coadjuvante), que tenta convencê-lo a aceitar os cuidados de uma enfermeira: ciente de que o pai está a cada dia mais confuso e perdendo a noção do que é real, ela também lhe informa que está em vias de sair de Londres e se mudar para Paris com o novo namorado. A partir daí, no entanto, o estado mental do octogenário entra em colapso absoluto, confundido nomes, datas, cenários, conversas e cronologias. O filme de Zeller, então, trabalha com a inconstância psicológica de seu protagonista através de uma edição primorosa, que embaralha as cenas e as situações decorrentes da premissa inicial. Em seus delírios (devidamente testemunhados por um atarantado espectador), Anthony confunde rostos e nomes, datas e situações, aposentos domésticos e até mesmo mantém como viva a memória de uma filha morta precocemente. Sua angústia atinge principalmente Anne, cuja vida não consegue progredir enquanto não resolver o problema de conviver com o mal de seu pai - uma questão que prejudica seu relacionamento com Paul (Rufus Sewell), pouco paciente com a falta de perspectivas em relação ao futuro.

"Meu pai" é uma obra-prima em todos os aspectos. Anthony Hopkins oferece ao público o maior desempenho de sua carreira - o que, se tratando do homem que legou ao cinema o apavorante Hannibal Lecter de "O silêncio dos inocentes" (1991) - e a direção segura de Florian Zeller nem de longe dá pistas de que este é seu trabalho de estreia. Sofisticado e inteligente ao mesmo tempo em que não foge da emoção mais primordial - uma das cenas finais arrancou lágrimas até mesmo da equipe, no momento da filmagem -, fica na memória do público graças à feliz confluência de elementos essenciais para um resultado dos mais sólidos do cinema recente. Uma pena que o filme seguinte do diretor, "Um filho" (2022) - que acompanha a relação entre um pai e seu filho com problemas com drogas - ficou muito abaixo das expectativas apesar da presença do esforçado Hugh Jackman.

 

segunda-feira

CORPO EM EVIDÊNCIA

 


CORPO EM EVIDÊNCIA (Body of evidence, 1992, Constantin Film/Dino De Laurentiis Company, 99min) Direção: Uli Edel. Roteiro: Brad Mirman. Fotografia: Douglas Milsome. Montagem: Thom Noble. Música: Graeme Revell. Figurino: Susan Becker. Direção de arte/cenários: Victoria Paul/Jerie Kelter. Produção executiva: Stephen Deutsch, Melinda Jason. Produção: Dino De Laurentiis, Martin Moscowicz. Elenco: Madonna, Willem Dafoe, Joe Mantegna, Jurgen Prochnow, Frank Langella, Anne Archer, Julianne Moore. Estreia: 15/01/93

Apenas noventa dias separam o lançamento do livro "Sex", do álbum "Erotica" e do filme "Corpo em evidência" e este fato não é mera coincidência. Além de girarem em torno de sexo (em suas mais complexas variações), os três produtos tem algo mais em comum: a cantora/atriz Madonna, então no auge de sua cruzada contra o conservadorismo e a hipocrisia vigente no mundo em geral e nos EUA em particular. Dirigido pelo alemão Uli Edel e produzido pelo veterano Dino De Laurentiis (que escolheu a estrela pop pessoalmente para o projeto), "Corpo em evidência" serviu como uma luva para os interesses messiânicos da artista, mas acabou se espatifando nas bilheterias. Com uma renda mundial de apenas 13 milhões de dólares - nem metade de seu custo - e críticas nem um pouco alvissareiras (em especial relacionadas ao fraco desempenho de sua atriz central), o filme acabou se tornando um dos maiores fiascos da década de 1990 e provou que, apesar do descomunal talento de Madonna em provocar e despertar polêmicas (além de suas óbvias qualidades musicais), sua trajetória no cinema ainda era um desafio a ser vencido. E nem mesmo a presença de atores respeitados como Willem Dafoe e Frank Langella conseguiu salvar o filme do desastre.

Assim como em "Instinto selvagem" - grande sucesso lançado meses antes e que também se utilizava do erotismo como chamariz de bilheteria -, "Corpo em evidência" lança mão de elementos policiais para contar uma história repleta de reviravoltas e com uma protagonista feminina de comportamento dúbio e sexualmente agressivo. Aqui a personagem central é Rebecca Carlson, a dona de uma galeria de arte que é acusada de provocar a morte de seu amante mais velho, Andrew Marsh (Michael Foster), vítima de um ataque cardíaco fulminante depois de uma agitada noite de sexo. O fato de cocaína ser encontrada no organismo da vítima - o que apressou a tragédia - e a notícia de que Rebecca é a maior beneficiária de seu testamento bastam para que a polícia a indicie e a leve a julgamento. Para defendê-la, Rebecca contrata os serviços do conservador Frank Dulaney (Willem Dafoe), que acaba sendo enredado em uma teia de sedução engendrada por sua cliente: os dois iniciam uma relação baseada em dominação e sexo violento, situação que o faz questionar a inocência de sua cliente. Conforme o relacionamento vai avançando, Dulaney parte em busca da verdade, que pode estar ligada à secretária de Marsh, a bela e discreta Joanne Braslow (Anne Archer).

 

Centrado em sequências que usam e abusam do corpo de Madonna e de sua falta de pudor em testar os limites da censura - o filme teve cenas cortadas em sua exibição nos EUA -, "Corpo em evidência" peca, no entanto, em desenvolver a contento os conflitos paralelos de sua trama. Não há profundidade alguma no roteiro de Brad Mirman, que perde preciosas oportunidades de explorar a tensa relação entre seus protagonistas - tanto em termos sexuais quanto éticos - e seus desdobramentos dramáticos (Julianne Moore interpreta a esposa de Dulaney, mas é subaproveitada em cenas quase constrangedoras). A trama policial tampouco é empolgante, caminhando em um ritmo que impede a conexão do espectador - e portanto seu interesse. Edel não consegue nem mesmo transformar as cenas eróticas em algo sexy, com uma fotografia escura que esconde os corpos de Madonna e Defoe mesmo em seus momentos mais quentes. Também não ajuda em nada o texto repleto de clichês e a atuação quase mecânica de seus atores - a começar por Madonna, incapaz de convencer como mulher fatal apesar de seus nítidos esforços. Nem particularmente bonita ela está, prejudicada por um figurino sóbrio em excesso, que apaga seu carisma de estrela - algo que ela recuperaria poucos anos depois, quando assumiu o papel-título do musical "Evita" (1996) e chegou a ganhar um Golden Globe de melhor atriz.

Para quem não exige muito de um filme policial com pitadas de erotismo, "Corpo em evidência" pode agradar, justamente por não tentar fugir dos elementos clássicos do gênero e tentar surpreender com um final tirado da manga. Como cinema é bastante problemático - desde o roteiro morno até a direção apática - e nem mesmo a oportunidade de discutir a polêmica prática do sadomasoquismo é aproveitada de forma inteligente. Não fosse a ousadia de apresentar cenas mais adultas do que a maioria das produções hollywoodianas, seria uma produção bastante esquecível - se não absolutamente medíocre. E não deixa de ser sintomático que um filme policial seja mais lembrado por uma sequência específica - Madonna queimando o peito de Willem Dafoe com cera quente - do que por sua trama.

sexta-feira

HELENO: O PRÍNCIPE MALDITO

 


HELENO: O PRÍNCIPE MALDITO (Heleno: O príncipe maldito, 2012, Downtown Filmes, 116min) Direção: José Henrique Fonseca. Roteiro: Felipe Bragança, Fernando Castets, José Henrique Fonseca, colaboração de L.G. Bayão, Roberto Ceuninck. Fotografia: Walter Carvalho. Montagem: Sérgio Mekler. Música: Berna Ceppas. Figurino: Rita Murtinho, Valeria Stefani. Direção de arte: Marlise Storchi. Produção executiva: Beto Bruno, Eliane Ferreira. Produção: José Henrique Fonseca, Eduardo Pop, Rodrigo Santoro, Rodrigo Teixeira. Elenco: Rodrigo Santoro, Alinne Moraes, Angie Cepeda, Othon Bastos, Erom Cordeiro, Herson Capri. Estreia: 30/3/2012

Décadas antes que jogadores de futebol se tornassem notícia mais por seus escândalos fora de campo do que por seu desempenho profissional - o que de certa forma já faz parte do cotidiano de quem acompanha o esporte -, um atleta talentoso e ídolo absoluto da torcida ilustrava páginas de jornais por seus ataques de estrelismo, suas rumorosas noitadas regadas a mulheres, álcool e drogas... e, nas horas vagas, por jogadas geniais que o marcaram indelevelmente no imaginário dos fãs. Heleno de Freitas, nascido em 1920 e morto em 1959 - com apenas 39 anos de idade - foi o maior ídolo alvinegro antes de Garrincha e um dos maiores artilheiros da história do Botafogo, além de formar, em 1945, junto com Zizinho, Jair da Rosa Pinto Tesourinha e Ademir de Menezes, um quinteto de ataque considerado como o melhor jamais escalado para a Seleção Brasileira. Suas façanhas profissionais, no entanto, por mais importantes, foram ofuscadas por seu comportamento errante nos bastidores - e sua luta contra os próprios demônios é o foco de "Heleno: o príncipe maldito", estupendo retrato de sua glória e decadência, sob a lente do cineasta José Henrique Fonseca e com a presença hipnotizante de Rodrigo Santoro no papel-título.

Heleno de Freitas não era um jogador de futebol comum. Filho do dono de um cafezal que também tinha negócios com papel e chapéus, tinha amigos na alta sociedade carioca, além de conviver com juristas, diplomatas e empresários. Formado em Direito pela UFRJ, foi descoberto quando jogava futebol na praia e tornou-se ídolo do Botafogo assim que chegou ao time, em 1940. Objeto de uma das maiores transações financeiras do futebol da época, chegou a jogar na Argentina antes de retornar ao Brasil - pelo Vasco da Gama - e dedicar seus últimos anos de carreira pulando de time em time (e arrumando problemas em todos eles). Casado com a bela Ilma (que no filme foi rebatizada como Sílvia e encontrou uma intérprete fabulosa em Alinne Moraes), Heleno nunca abandonou a boemia, as mulheres e os vícios em álcool e drogas como éter e lança-perfume - uma vida desregrada que cobrou um preço alto: internado em um sanatório nos últimos anos de sua vida, o ex-jogador viu a sífilis destruir completamente sua saúde física e mental, sofrendo de alucinações até seus momentos finais. 

Um dos produtores do filme, Santoro mais uma vez se entrega de corpo e alma, construindo um Heleno de Freitas sedutor e autodestrutivo na mesma medida, um homem capaz de encantar torcedores com a mesma desenvoltura com que passava as noites envolvido com todo tipo de excessos. Indo além da mera transformação física - que enfatiza o contraste entre seu auge como atleta e seu declínio como vítima de sífilis -, o ator busca a empatia do público através de uma atuação que evita ao máximo os clichês e encontra brechas emocionas mesmo tendo em mãos um personagem facilmente detestável. Poucos atores conseguiriam angariar simpatia para alguém tão arrogante e autocentrado, mas Santoro se aproveita de seu carisma e experiência para amenizar as características negativas de um anti-herói que era a cara de seu tempo. Sua química com Alinne Moraes (belíssima e sempre ótima atriz) amplia ainda mais o alcance catártico proposto pelo roteiro, que se sobressai como uma das mais dignas e bem cuidadas cinebiografias nacionais, enquanto foge da armadilha de um tema ainda pouco explorado a contento no cinema brasileiro, o futebol. E mesmo quando se propõe a investigar a maior paixão nacional, o filme de Fonseca não faz feio: graças à espetacular fotografia em preto-e-branco de Walter Carvalho e à edição precisa de Sérgio Mekler, "Heleno" é praticamente uma experiência imersiva, que simplesmente coloca o espectador no meio do gramado, acompanhando seu protagonista em decisivos momentos da carreira. São momentos em que a técnica se sobrepõe à emoção - e é impossível não se deixar conquistar pelo talento do cineasta em unir os dois extremos, especialmente quando são contrapostos de forma inteligente e elegante, com o auxílio luxuoso da maquiagem do mexicano Martin Macias Trujillo.

"Heleno" é um filme repleto de qualidades - técnicas e dramáticas. Isso não significa, porém, que não tem pequenos defeitos - que não comprometem o resultado final, mas o impedem de ser uma obra-prima. O excesso de vai-e-voltas do roteiro, por exemplo, atrapalha o ritmo - mas, ao mesmo tempo, sublinha a diferença entre o apogeu e a queda do jogador. A linha do tempo também não chega a ser exatamente clara, e quem não conhece detalhes e cronologia da história do atleta corre o risco de ficar perdido - mesmo que o roteiro tente ser o mais didático possível sem interromper o fluxo narrativo. Apesar disso, o visual deslumbrante e o elenco impecável - até mesmo nos menores papéis - comprovam o apurado senso estético e artístico de José Henrique Fonseca - filho do escritor Rubem Fonseca e com os ótimos "Traição" (1998) e "O homem do ano" (2003) no currículo. Um exemplo inequívoco das potencialidades do cinema brasileiro, "Heleno: o príncipe maldito" é também um ponto alto na carreira de Rodrigo Santoro.

quinta-feira

A FOGUEIRA DAS VAIDADES

 


A FOGUEIRA DAS VAIDADES (The bonfire of the vanities, 1990, Warner Bros, 125min) Direção: Brian DePalma. Roteiro: Michael Cristofer, romance de Tom Wolfe. Fotografia: Vilmos Zsigmond. Montagem: Bill Pankow, David Ray. Música: Dave Grusin. Figurino: Ann Roth. Direção de arte/cenários: Richard Sylbert/Joe Mitchell, Justin Scoppa. Produção executiva: Peter Guber, Christine Peters, Jon Peters. Produção: Brian DePalma. Elenco: Tom Hanks, Bruce Willis, Melanie Griffith, Morgan Freeman, Kim Catrall, Saul Rubinek, John Hancock, Rita Wilson, Kirsten Dunst. Estreia: 21/12/90

Sherman McCoy é um bem-sucedido magnata de Wall Street, bem casado e em franca ascensão profissional e financeira. Peter Fallow é um jornalista quase decadente, quase alcóolatra e quase em vias de abandonar a carreira. Uma noite, depois de um encontro, McCoy vê a amante atropelar um jovem negro em um bairro barra-pesada de Nova York e a incentiva a fugir do local, certo de que jamais serão descobertos. Por acaso, Fallow descobre a identidade do dono do veículo e, com a atenção da imprensa, não hesita em divulgá-lo e contar sua história. Exposto na mídia, McCoy se vê perdendo a a família, o respeito, a posição social e até mesmo a liberdade: bode expiatório de uma série de interesses políticos e advogados corruptos, ele se vê diante da ambição de gente como o demagogo reverendo de uma comunidade negra e um promotor público com ambições pouco louváveis. Enquanto sua descida é cada vez mais veloz, o caminho de Fallow rumo ao topo parece inevitável - e ele parece bastante disposto a pagar o preço do sucesso.

As expectativas a respeito da adaptação cinematográficas do best-seller "A fogueira das vaidades" - primeiro livro de ficção de Tom Wolfe - eram altas. Aplaudido pela imprensa e presença constante nas listas dos mais vendidos por meses, o romance de Wolfe - uma obra repleta de ironia e sarcasmo, sem herois e recheado de personagens dúbios e pouco agradáveis - soava como um desafio a quem quer que assumisse a responsabilidade de levá-lo às telas sem perder sua essência amoral. No entanto, desde sua gênese tudo apontava para um potencial desastre, justamente por seu tom pouco disposto a corroborar  a ideia do american way of life. Entre seguir a trama à risca - apostando na capacidade das plateias de abraçar ousadias temáticas e narrativas - e desfigurar a obra original como forma de alcançar uma bilheteria expressiva, a Warner Bros acabou por decidir-se pela segunda opção - o que resultou em críticas violentas e uma resposta ensurdecedora por parte do público: com pouco mais de 15 milhões de dólares de arrecadação mundial (contra um orçamento estimado em 47 milhões), a obra dirigida por Brian De Palma entrou para a história como um dos maiores fracassos de Hollywood, além de ser considerado um dos piores filmes das carreiras de todos os envolvidos - um grupo que conta com nomes poderosos da indústria, como Tom Hanks e Bruce Willis.

 


Antes de iniciar o processo de tornar-se um dos intérpretes mais respeitados de sua geração - com dois Oscar consecutivos de melhor ator -, Tom Hanks foi uma escolha inusitada e corajosa para viver o protagonista, Sherman McCoy, um bem-sucedido magnata de Wall Street, e só entrou em cena depois que Mike Nichols abandonou o barco e, com ele, levou Steve Martin, cujo perfil combinava bem mais com o personagem - antes ainda de Hanks outros nomes importantes chegaram a ser cotados, como Jon Voigt, Kevin Costner, Christopher Reeve e até John Lithgow (o preferido do diretor Brian De Palma) e Chevy Chase (que teria sido a escolha do próprio Tom Wolfe). A entrada de Hanks - assim como a de outros nomes chave do projeto, cortesia do então produtor Peter Guber  - acabou sendo um fator decisivo para o rumo da produção em direção a uma atmosfera bastante distinta do livro original, enfatizada pelo roteiro de Michael Cristofer (outro contratado por Guber): com sua aura de bom moço, Hanks suavizava a personalidade arrogante e amoral de McCoy e de certo modo equilibrava o cinismo do jornalista Peter Fallow, o segundo personagem central da trama - inglês no romance (assim como John  Cleese, que recusou o papel) e americano no cinema (o que não foi o suficiente para convencer Jack Nicholson a entrar no jogo). Em mais uma cartada para chamar a atenção do público, o estúdio ousou novamente e chamou Bruce Willis (em alta pelo sucesso de "Duro de matar", de 1988, mas sem maiores êxitos fora do cinema de ação). A surpreendente dupla formada por Hanks e Willis (mais o tititi em torno do livro de Wolfe) já seria o bastante para garantir notas de jornais, mas as esperadas filas nos cinemas ficaram apenas na vontade: o fiasco de bilheteria e as críticas impiedosas (cinco indicações ao Framboesa de Ouro, incluindo pior filme, atriz, roteiro e diretor) mostraram que nem grandes cineastas e atores de prestígio são imunes a erros gigantescos. Mas afinal de contas, passadas décadas de sua estreia, fica a pergunta crucial: "A fogueira das vaidades" é assim tão ruim?

Apesar de algumas ideias visuais interessantes - o plano-sequência de abertura, a fotografia pouco convencional - e do esforço de Brian De Palma em traduzir o tom artificial do romance através de atuações não naturalistas do elenco (que beira a histeria), o resultado final é decididamente frustrante. O roteiro de Michael Cristofer jamais consegue seduzir o público - talvez pela falta de um personagem com quem haja qualquer identificação, talvez por sua indecisão entre o drama e a comédia - e a escalação do elenco é flagrante ao menos exigente espectador. Tom Hanks é um ator excelente (como seria provado poucos anos depois), mas não acerta o tom de seu Sherman McCoy - não à toa o próprio ator o considera seu pior filme. Bruce Willis tem pouco a fazer com seu Peter Fallow - e quando o faz parece repetir os mesmos trejeitos de um de seus mais famosos personagens até então, na série de TV "A gata e o rato". E Melanie Griffith - escolha de De Palma, com quem havia trabalhado em "Dublê de corpo" (1984) - até tenta ser mais do que apenas uma mulher sensual, mas não alcança todas as nuances que lhe são exigidas - qualquer uma atriz considerada para o papel (Uma Thurman, Robin Wright, Kyra Sedwick) provavelmente teria se saído melhor. Juntos (ao lado de Morgan Freeman e F. Murray Abraham, também subaproveitados), eles parecem perdidos em cena, soterrados pelos artifícios técnicos do diretor e por suas tentativas infrutíferas de imprimir o tom de farsa da trama de Wolfe - deliciosa no papel, bastante problemática na tela.

Uma comédia farsesca que não atinge nem perto de seu potencial crítico, "A fogueira das vaidades" sofreu também com o erro primário de não ser direcionado para uma plateia mais sofisticada - os leitores da obra original - e tentar atingir um público médio que, via de regra, rejeita produções com conceitos menos maniqueístas. Ao deformar o romance de Wolfe para que coubesse em suas ambições comerciais, a Warner acabou com o que de havia de melhor no livro (a perspicaz leitura das ironias da sociedade) e o transformou em um produto mais "palatável" (leia-se superficial e sem nenhuma personalidade). O pífio resultado financeiro e o massacre da crítica apenas refletiram a profusão de equívocos acumulados desde sua concepção. Uma pena!

quarta-feira

AS BARREIRAS DO AMOR

 


AS BARREIRAS DO AMOR (Love field, 1992, Orion Pictures, 105min) Direção: Jonathan Kaplan. Roteiro: Don Roos. Fotografia: Ralf D. Bode. Montagem: Jane Kurson. Música: Jerry Goldsmith. Figurino: Collen Atwood, Peter Mitchell. Direção de arte/cenários: Mark Freeborn/Jim Erickson. Produção executiva: George Goodman, Kate Guinzburg. Produção: Sarah Pillsbury, Midge Sanford. Elenco: Michelle Pfeiffer, Dennis Haysbert, Stephanie McFadden, Brian Kerwin, Louise Latham, Beth Grant. Estreia: 11/12/92

Indicado ao Oscar de Melhor Atriz (Michelle Pfeiffer)

Vencedor do Urso de Prata (Melhor Atriz) no Festival de Berlim (Michelle Pfeiffer) 

Coisas de Hollywood: pronto para ser lançado em 1990, o drama "As barreiras do amor" - primeiro filme da produtor da atriz Michelle Pfeiffer, a Via Rosa - acabou sendo guardado em uma gaveta da Orion Pictures enquanto o estúdio enfrentava uma série de dificuldades financeiras que quase o levaram à falência. Sua demora em estrear, no entanto, mostrou-se providencial: o desempenho de Pfeiffer acabou por dar a ela o prêmio de melhor atriz no Festival de Berlim e indicações ao Golden Globe e ao Oscar - um currículo que destaca o que a produção tem de melhor. Apesar de suas boas intenções, o filme de Jonathan Kaplan não consegue deixar de dar a impressão de ser um telefilme de luxo, com ritmo irregular e situações repletas de clichês. 

A trama se passa em 1963, durante um conturbado período, repleto de revoltas por direitos civis e por manifestações contrárias à Guerra do Vietnã. Praticamente alheia aos problemas do país, a cabeleireira Lurene Hallett (Michelle Pfeiffer) vive uma rotina centrada no trabalho, na vida conjugal ao lado do marido, Ray (Brian Kerwin), e principalmente em sua dedicação quase doente por Jackie Kennedy - a quem admira por, entre outras razões, ter sobrevivido dignamente a um aborto espontâneo, como ela. A chance de ver de perto a mulher por quem é quase obcecada acontece com a visita do presidente e da primeira-dama à sua cidade, Dallas - uma visita que acaba tragicamente, com o assassinato de JFK. Arrasada, Lurenne resolve comparecer ao funeral, em Washington, apesar da proibição do marido. No ônibus que a leva até a capital do país ela conhece Paul Cater (Dennis Haysbert), um rapaz negro que está viajando ao lado da filha pequena, Jonell (Stephanie McFadden), uma criança calada e estranhamente nervosa. Sentindo que há algo de errado na relação entre os dois, a jovem acaba por envolvê-los em um mal-entendido que os leva a virar alvo da polícia - pouco afeita a respeitar cidadãos a quem considera inferiores.

 

Ao relembrar ao público norte-americano um de seus maiores traumas - vale lembrar que foi realizado antes do estupendo "JFK: a pergunta que não quer calar" (1991), de Oliver Stone - e tocar em uma de suas feridas mais profundas (o racismo), "As barreiras do amor" acrescenta um elemento novo a um subgênero dos mais queridos do cinema - o road movie -, convidando o público a acompanhar personagens que vão revelando aos poucos camadas que fazem deles seres bem mais complexos do que em uma primeira constatação. Pfeiffer consegue sair facilmente do tipo femme fatale que a acompanhava até então ao imprimir em sua Lurenne um tom de futilidade e ingenuidade que vai sendo substituída gradualmente pela sensação de desamparo e percepção de um mundo que foge de seu dia-a-dia açucarado: seu trabalho é primoroso, especialmente na transição entre dona-de-casa deslumbrada para uma mulher que encara o próprio sofrimento e vê diante de si um mundo de injustiças e violência. Dennis Haysbert - substituindo Denzel Washington, que abandonou o projeto pelas famosas "divergências artísticas" - não fica atrás, com uma interpretação silenciosa e discreta, em que comunica mais com o olhar do que com longos diálogos (ainda que, quando necessário, também saiba demonstrar a dimensão de seu talento). Completando o trio de protagonistas, a pequena Stephanie McFadden não se deixa intimidar por seus colegas veteranos, transmitindo em suas feições delicadas um mundo de medo e traumas que vão se revelando conforme a estrada vai ficando para trás.

Uma pena, porém, que a direção de Jonathan Kaplan seja tão quadrada. Não é preciso que haja grandes ousadias em um filme cujo roteiro (escrito por Don Roos, que mais tarde assinaria a direção de "O oposto do sexo", de 1998, e "Finais felizes", de 2005) segue todas as regras já conhecidas pelo grande público, mas Kaplan simplesmente evita qualquer desvio no que se poderia esperar do percurso dos personagens - e uma edição mais enxuta talvez resolvesse parte do problema de ritmo que acomete a produção em seu segundo ato. Comentado por uma trilha sonora atípica de Jerry Goldsmith, "As barreiras do amor" é um filme agradável e bem realizado, mas que não atinge todo o seu potencial e não consegue escapar de seu destino de ser um trabalho pouco memorável na carreira dos envolvidos.

terça-feira

ACONTECEU EM WOODSTOCK

 


ACONTECEU EM WOODSTOCK (Taking Woodstock, 2009, Focus Features, 120min) Direção: Ang Lee. Roteiro: James Schamus, livro de Elliot Tiber, Tom Monte. Fotografia: Eric Gautier. Montagem: Tim Squyres. Música: Danny Elfman. Figurino: Joseph G. Aulisi. Direção de arte/cenários: David Gropman/Ellen Christiansen De Jonge. Produção executiva: Michael Hausman. Produção: Celia Costas, Ang Lee, James Schamus. Elenco: Demetri Martin, Emile Hirsch, Imelda Staunton, Henry Goodman, Jonathan Groff, Jeffrey Dean Morgan, Mamie Gummer, Eugene Levy, Dan Fogler, Andy Prosky, Skylar Astin, Paul Dano. Estreia: 16/5/2009 (Festival de Cannes)

As lendas e fatos a respeito do Festival de Woodstock todo mundo já conhece - seus números, seus artistas, seus imprevistos e principalmente seu legado à história da música e da cultura popular (sem falar nos desdobramentos sociais e políticos). O que, então, poderia haver de novo a ser explorado em um filme quarenta anos depois do evento? A resposta surgiu quando o diretor Ang Lee foi interpelado por Elliot Tiber durante a divulgação de seu "Desejo e perigo" (2007): autor de um livro sobre os bastidores da organização do festival, do qual foi parte crucial, Tiber ofereceu ao cineasta a chance de contar a história sob um novo ponto de vista - e com um viés mais humano, comum em sua obra. Com seus colaboradores de confiança (James Schamus no roteiro, Eric Gautier na direção de fotografia e Tim Squyres na edição), o já vencedor de um Oscar (por "O segredo de Brokeback Mountain") lançou, no Festival de Cannes de 2009 o esperado "Aconteceu em Woodstock". O resultado, porém, ficou aquém das expectativas - tanto em termos financeiros quanto artísticos - e acabou se tornando um dos trabalhos menos memoráveis de Lee, a despeito de suas notáveis qualidades

Elliot Tiber, o autor do livro que deu origem ao filme, é interpretado por Demetri Martin, comediante em seu primeiro trabalho no cinema - uma falta de experiência e carisma que atrapalha muito as possibilidades de conexão com o espectador. Em 1969, Tiber abandona uma carreira pouco feliz de design de interiores em Nova York e retorna para a pequena cidade de White Lake com o objetivo de ajudar seus pais (Henry Goodman e Imelda Staunton) a manter vivo seu pequeno e nada convidativo hotel. A missão é complicada, já que nenhum dos dois é exatamente competente nos negócios e nada no lugar chama a atenção dos turistas ocasionais. A salvação da lavoura surge, no entanto, quanto ele menos espera: ao saber que uma cidade vizinha voltou atrás ao permitir a realização de um festival de música para o público hippie, o jovem toma as rédeas da situação e, depois de fazer contato com os produtores, transforma seu pacato lugarejo no cenário de um dos mais importantes acontecimentos culturais da história. Para isso, porém, ele precisa lutar contra o preconceito local, os problemas logísticos que envolvem a realização de algo inesperadamente gigantesco e encarar sua própria sexualidade conflituosa.

 

Fugindo da tentação de fazer do festival seu protagonista, Ang Lee segue mantendo-se fiel à sua marcante característica de priorizar os sentimentos humanos e, com eles, criar um amplo mosaico de personagens interessantes, como a travesti interpretada por Liev Schreiber (que assume o posto de segurança informal do evento), o jovem veterano do Vietnã vivido por Emile Hirsch e a idiossincrática mãe do protagonista (em um show particular de Imelda Staunton). Woodstock, na visão do cineasta, é apenas o pano de fundo (forte) para uma jornada de autodescobrimento, pincelada de momentos clássicos reproduzidos sutilmente pelo desenho de produção caprichado e pelo figurino, que dialogam com o tom onírico impresso pelo roteiro. A opção do filme em não mostrar absolutamente nenhum número musical - o que provavelmente é motivo de frustração para os fãs mais obcecados do festival - é surpreendente, mas condiz com o tom menos documental e mais emotivo da produção, que apesar disso falha em não aprofundar a contento todas as possibilidades que apresenta ao espectador. Tal problema impede que uma de suas maiores qualidades - o belo elenco - seja aproveitado em todo o seu potencial.

Quem começar uma sessão de "Aconteceu em Woodstock" com a intenção de ver Janis Joplin, Joe Cocker ou Jimi Hendrix certamente irá se decepcionar. O filme de Ang Lee é para um público que procura obras sobre pessoas em busca de si mesmas - mesmo que para isso seja preciso fazer parte de um evento de proporções gigantescas que mudou o mundo (ou ao menos a concepção de muita gente sobre ele). Pode não ser uma obra-prima como alguns dos melhores trabalhos do cineasta, mas é simpático e honesto o bastante para não fazer feio em uma filmografia marcada pela sensibilidade e pelo carinho por seus personagens.

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