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ASSASSINATO NO EXPRESSO DO ORIENTE (2017)


ASSASSINATO NO EXPRESSO DO ORIENTE (Murder on the Orient Express, 2017, 20th Century Fox, 114min) Direção: Kenneth Branagh. Roteiro: Michael Green, romance de Agatha Christie. Fotografia: Haris Zambarloukos. Montagem: Mick Audsley. Música: Patrick Doyle. Figurino: Alexandra Byrne. Direção de arte/cenários: Jim Clay/Rebecca Alleway, Caroline Smith. Produção executiva: Matthew Jenkins, Dillon Kilvo, James Prichard, Aditya Sood, Hilary Strong. Produção: Kenneth Branagh, Mark Gordon, Judy Hofflund, Simon Kinberg, Michael Schaefer, Ridley Scott. Elenco: Kenneth Branagh, Judi Dench, Michelle Pfeiffer, Penelope Cruz, Johnny Depp, Leslie Odom Jr., Derek Jacobi, Josh Gad, Olivia Colman, Willem Dafoe. Estreia: 03/11/2017

Publicado em 1934 e considerado por leitores e críticos como um dos maiores romances policiais de todos os tempos, "Assassinato no Expresso do Oriente" não apenas consagrou definitivamente a inglesa Agatha Christie como "a rainha do crime" como também se mantém no inconsciente coletivo há quase um século. Sua trama, repleta de pistas falsas, ritmo ágil e um desenvolvimento intrigante, mostra o detetive Hercule Poirot no auge de sua perspicácia e apresenta um desfecho antológico - dos mais surpreendentes da prolífica carreira da escritora. Clássico absoluto do gênero, o livro ganhou uma adaptação caprichada em 1974 - quarenta anos após seu lançamento -, sob a direção de Sidney Lumet e um elenco internacional recheado de astros - de Albert Finney como Poirot a uma verdadeira constelação que incluía Lauren Bacall, Sean Connery, Jacqueline Bissett, Anthony Perkins, Maggie Smith e Ingrid Bergman, premiada com um Oscar de atriz coadjuvante. Em 2010, chegou à televisão em um episódio da série britânica "Poirot" - com o famoso investigador interpretado por David Suchet e nomes como Jessica Chastain, Barbara Hershey e Toby Jones emprestando credibilidade ao resultado final. E é de se perguntar por que, mesmo diante de duas versões aplaudidas e fiéis à fonte original, o irlandês Kenneth Branagh considerou necessária uma nova releitura. Pior ainda: em que momento o outrora celebrado cineasta achou cabíveis as alterações criminosas que seu filme - lançado no final de 2017 - fez na história concebida pela mente genial de Christie?

Os (inúmeros) fãs da escritora ficaram revoltados com as liberdades que o roteiro de Michael Green tomou em relação à obra original - tanto em termos da história em si (com personagens amalgamados) quanto pela descaracterização radical do protagonista Hercule Poirot. Retratado nos romances como um senhor de idade avançada, de modos finos e radicalmente contra qualquer tipo de violência - além de privilegiar o cérebro em detrimento de embates físicos -, Poirot viu sua versão cinematográfica rejuvenescer, emagrecer, ter um amor do passado (mostrado apenas em fotografia) e, pior do que tudo, se envolver em lutas, tiroteios e perseguições. É de lamentar que Kenneth Branagh - um ator de talento e sensibilidade o suficientes para que fosse uma espécie de embaixador de Shakespeare na Hollywood dos anos 1990 - tenha se deixado levar pelo ego, a ponto de fazer de seu detetive um super-herói que muito pouco lembra o ídolo dos leitores do gênero. Enquanto no livro Poirot ia aos poucos desvendando todos os meandros que levaram a um misterioso homicídio ocorrido em um dos meios de transporte mais sofisticados do mundo, no filme as conclusões são jogadas, quase como se o personagem tivesse dons paranormais. E se Poirot era, antes de qualquer coisa, um cavalheiro, no filme de Branagh ele não hesita em levantar a voz quando necessário - mesmo que isso destoe radicalmente de sua real personalidade. Não é preciso dizer que, mesmo sendo um bom ator, o ex-marido de Emma Thompson erra violentamente em sua composição.

E não é apenas isso. Como forma de agradar à patrulha do politicamente correto de Hollywood, o roteiro consegue a proeza (negativa) de transformar o coronel Arbuthnot em um médico negro (em uma fusão com outro personagem do livro, Constantine): por mais que se saiba a necessidade atual de inserir representatividade na mídia, é no mínimo equivocada a ideia de que um homem negro pudesse ser o passageiro do Expresso do Oriente em 1934. A inclusão de Leslie Odom Jr. no elenco pode ter tido boas intenções, mas o tiro acabou saindo pela culatra: a novidade soa deslocada, inverossímil e, pior ainda, constrangedora em sua tentativa de soar atual. Também não deu certo substituir as nacionalidades de outros personagens cruciais: a sueca Greta Ohlsson (vivida por Ingrid Bergman em 1974) virou Pilar Estravados na nova adaptação (e ficou com o rosto de Penélope Cruz, subaproveitada como todo o elenco), e o italiano Hardman transmutou-se no espanhol Biniamino Marquez (para ser interpretado por Manuel Garcia-Rulfo). São diferenças que em nada acrescentam ao material original e apenas enfatizam a vontade quase imatura de forçar uma identidade - um desejo que se estende também ao visual estilizado, que compreende a fotografia cinza-azulada de Haris Zambarloukos (que funciona apenas em parte) e os ângulos inusitados de câmera (que evitam o convencional a todo custo e cansam em diversos momentos). A direção de arte e o figurinos são deslumbrantes, mas é pouco diante de tantos erros - que enfraquecem as boas ideias de Branagh, como utilizar-se de espelhos para ilustrar a dubiedade dos personagens/suspeitos.

A trama em si é conhecida por quase todo mundo (ao menos os fãs do gênero a conhecem de longa data): durante uma viagem no tradicional Expresso do Oriente, o misterioso e pouco simpático Edward Ratchett (Johnny Depp forçado como sempre) é violentamente assassinado a facadas. O crime é ainda mais intrigante quando se descobre que as facadas são de tamanhos e intensidades diferentes, e outras pistas incoerentes deixam o trabalho do famoso detetive particular Hercule Poirot (um passageiro de última hora) ainda mais complicado. Os suspeitos - um grupo variado de passageiros em determinado vagão - parecem não ter nada em comum e aparentemente todos tem álibis indestrutíveis. A ideia inicial - de que o homicídio foi resultado de uma vingança relacionada à máfia - é deixada de lado, no entanto, quando Poirot descobre que Ratchett é, na verdade, o responsável pelo sequestro e assassinato de um bebê, alguns anos antes: resta, então, descobrir quem, dentre os passageiros, também está mentindo quanto à sua identidade.

Desperdiçando um elenco excepcional - que inclui os veteranos Judi Dench e Derek Jacobi, os consagrados Willem Dafoe, Penélope Cruz e Michelle Pfeiffer - e apostando na modernização de uma trama que já nasceu clássica, Kenneth Branagh simplesmente destruiu a obra original, destroçando inclusive a revelação sobre o nome do assassino em uma sequência morna e com um desfecho sofrível. Em pensar que ele continuará sua missão em estragar outras obras de Christie - "Morte sobre o Nilo" é o próximo da lista e sua menção nos últimos minutos do primeiro filme já aponta para mais distorções imperdoáveis - chega a dar calafrios. Matar uma obra dessa forma deveria ser crime!

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