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1922


1922 (1922, 2017, Netflix, Lighthouse Pictures/Campfire, 102min) Direção: Zak Hilditch. Roteiro: Zak Hilditch, história de Stephen King. Fotografia: Ben Richardson. Montagem: Merlin Eden. Música: Mike Patton. Figurino: Claudia Da Ponte. Direção de arte/cenários: Page Buckner/Jacquelin Miller. Produção executiva: Ian Bricke, Jamie Goehring, Zak Hilditch, Samantha Housman, Liz Kearney, Kevin Leeson, Shawn Williamson. Produção: Ross M. Dinerstein. Elenco: Thomas Jane, Molly Parker, Dylan Schmid, Kaitlyn Bernard, Neal McDonough, Brian D'Arcy James. Estreia: 23/09/201 (Fantastic Fest)

Levando-se em consideração que seu primeiro romance, "Carrie: a estranha" foi publicado em 1974, é de se admirar a longevidade de Stephen King no imaginário popular - tanto em termos literários quanto cinematográficos. Somente em 2017, nada menos que seis obras de sua autoria foram adaptadas para as telas, em forma de série ou filme. Duas dessas adaptações chegaram ao público pela Netflix - e ao menos uma delas merecia ter tido mais reconhecimento. Baseado na novela de mesmo nome publicada em 2010 no livro "Full dark, no stars", o drama psicológico "1922" está mais perto de obras densas como "Louca obsessão" (1990) e "Eclipse total" (1995) do que para equívocos sanguinolentos como "O apanhador de sonhos" (2003) e "Sonâmbulos" (1992). Segundo filme de Zak Hilditch - que estreou em longa-metragens com "As horas finais" (2013) - e terceiro encontro do ator Thomas Jane com a obra de King, "1922" é um mergulho na culpa, e se não consegue atingir todo o seu potencial, ao menos é uma produção acima da média no gênero - e muito melhor do que se poderia esperar de algo vindo da Netflix.

Com um desenho de produção caprichado e extremo cuidado na direção de atores, Hilditch surpreende ao criar uma atmosfera de tensão desde as primeiras cenas de seu filme, narrado em flashback pelo protagonista, Wilfred James (interpretado com razoável competência por Jane, que ainda não é um grande ator mas ao menos não compromete o resultado final). Em 1930, James, consumido pela culpa e pela solidão, escreve uma carta aberta, onde confessa a morte da esposa e a responsabilidade pelas tragédias que vieram em sua consequência. O roteiro (escrito pelo diretor) volta, então, ao ano de 1922, quando o ambicioso fazendeiro começa sua escalada rumo à loucura e à paranoia. Sonhando em aumentar sua propriedade na área rural do Nebraska, James esbarra na recusa da esposa, Arlette (Molly Parker) em desistir da ideia de vender a terra que herdou da família e tentar a sorte na cidade grande. Ao contrário do marido, Arlette não é feliz com a vida no campo e tem planos de montar uma loja de roupas em Omaha. Inconsolável com tal atitude e tal (segundo seu ponto de vista) egoísmo, James consegue convencer até mesmo o próprio filho adolescente, Henry (Dylan Schmid), a resolver a situação da forma mais cruel e definitiva possível: juntos, os dois tramam e cometem um violento homicídio, e ocultam o corpo no poço da fazenda, declarando à vizinhança que foram abandonados. O que parecia caso resolvido, no entanto, logo se transforma em um problema ainda maior quando Henry, cada vez mais atormentado pelo remorso, descobre que a jovem namorada, Shannon (Kaitlyn Bernard), está grávida - uma situação que acelera uma série de acontecimentos que o colocam em rota de colisão com o pai.


Mesmo que não hesite em apostar no suspense em momentos cruciais, - a sequência do assassinato de Arlette é muito bem dirigida e algumas alucinações de James atingem o tom exato de desespero -, o roteiro de Zak Hilditch se concentra muito mais na introspecção do que no explícito. A música - a cargo de Mike Patton (ex-Faith No More) - sublinha com precisão o tom claustrofóbico imposto pelo diretor, que aposta na tensão crescente como forma de envolver o público. Conforme Wilfred James vai se deixando levar pela culpa - com ratos surgindo diante de seus olhos como forma de lembrá-lo de que seu ato jamais lhe fugirá da memória -, mais e mais a direção de Hilditch se torna opressiva. A forma como o destino de Henry e Shannon se desenrola diante do espectador é um acerto a mais - inspirado em "Bonnie & Clyde: uma rajada de balas" (1967), seu romance marginal/elegante/trágico talvez até merecesse um pouco mais de tempo na tela. E se Thomas Jane cumpre sua missão sem maiores tropeços, a atuação de Molly Parker é digna de figurar na galeria de seus melhores trabalhos - poucos minutos em cena são suficientes para que ela se torne, ao mesmo tempo, uma potencial vilã e uma vítima inocente da ganância do marido, incapaz de conceber o tamanho da violência que lhe aguarda.  Neste embate entre Parker e Jane, o desempenho do jovem Dylan Schmid (da série "Expresso do amanhã") consegue sobressair-se em um misto de ingenuidade e melancolia - é um rapaz com um belo futuro pela frente.

Mesmo que destoe do que se espera de uma obra baseada em Stephen King - leia-se muito mais cerebral que física e sem suas costumeiras características -, "1922" pode ser considerado um filme digno de figurar entre suas adaptações acertadas. O público menos afeito a sutilezas talvez torça o nariz, esperando mais violência e sustos constantes, mas aqueles que se aventurarem certamente estarão diante de uma produção caprichada e, melhor ainda, que se leva a sério. Não é uma das obras mais conhecidas de King - mas pode surpreender por sua inteligência e - por que não? - elegância ao contar uma história tão pesada.

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