terça-feira

BERENICE PROCURA

 


BERENICE PROCURA (Berenice procura, 2017, EH Filmes, 90min) Direção: Allan Fiterman. Roteiro: Flávia Guimarães, romance de Luiz Alfredo Garcia-Roza. Fotografia: Azul Serra. Montagem: Fábio Jordão. Música: João Paulo Mendonça. Figurino: Tatiana Rodrigues. Produção: Elisa Tolomelli. Elenco: Cláudia Abreu, Eduardo Moscovis, Emílio Dantas, Vera Holtz, Caio Manhente, Valentina Sampaio. Estreia: 07/10/2017

O psicanalista Luiz Alfredo Garcia-Roza só estreou na literatura aos 60 anos de idade, quando seu "O silêncio da chuva" foi lançado, em 2006. A partir de então, tornou-se um dos nomes mais populares entre os leitores de romances policiais - um gênero que, no Brasil, consagrou Rubem Fonseca e Patrícia Melo. Dez anos depois, outro livro seu, "Achados e perdidos", foi adaptado para o cinema por José Joffily, com Antonio Fagundes no papel principal - e encontrou outro público, disposto a acompanhar audiovisualmente um gênero clássico da sétima arte mesclado com elementos de identidade nacional. Tal característica da obra do escritor - utilizar os cânones das histórias policiais em um universo tipicamente brasileiro (carioca, mais exatamente) - está nítida e assumida em "Berenice procura", segundo livro seu a fazer a transposição das páginas para as telas. Assinado por Allan Fiterman - conhecido diretor de telenovelas globais fazendo sua estreia como cineasta - e estrelado pela sempre competente Cláudia Abreu, o filme acerta em cheio ao jogar luz em um tema controverso e relevante (a violência contra os LGBTQ+) mas escorrega em um quesito que volta e meia atormenta o cinema nacional: o roteiro.

A trama criada por Garcia-Roza é repleta de personagens dúbios, pistas falsas, hipocrisias morais e meandros da vida noturna de Copacabana. São elementos que, em um romance, podem ser desenvolvidos sem pressa. Em um roteiro cinematográfico, porém, é crucial que tais ingredientes sejam inseridos de maneira orgânica, como forma de envolver o espectador sem que as engrenagens da trama soem óbvias. Não é o que acontece em "Berenice procura": a roteirista Flávia Guimarães peca em simplesmente jogar as informações diante do público, sem aprofundá-las ou dar a elas a devida importância. É preciso fazer um exercício mental para descobrir as relações entre alguns personagens - e até mesmo para compreender algumas subtramas de extrema importância para o desenvolvimento da história. A intenção pode até ser confundir (afinal, trata-se de um jogo de detetive), mas somado à edição irregular de Fábio Jordão, o roteiro peca por não oferecer à plateia (e até mesmo aos atores envolvidos no projeto) uma base mais sólida: cenas fortes são diluídas em um excesso de cortes e um distanciamento estilístico que impede uma maior empatia pelos personagens - um erro fatal em um enredo cuja maior força é justamente a emoção primordial.

O filme começa muito bem, com uma sequência belamente fotografada e que emula os melhores momentos do cinema de David Lynch: a câmera passeia pelo amanhecer na praia de Copacabana até dar de cara com o cadáver de uma bela mulher, encostado em uma árvore. Quem descobre o corpo é um menino acompanhado da babá, e logo o crime é notícia nacional - a cobertura local é feita pelo repórter Domingos (Eduardo Moscovis), misógino, preconceituoso e casado com Berenice (Cláudia Abreu), que dirige um táxi para ganhar o próprio dinheiro e não depender do marido, com quem vive uma relação apenas formal. O casal tem um filho adolescente, Thiago (Caio Manhente), que vive em seu mundo particular, longe dos olhos dos pais - e perto demais do universo da vítima do crime, a transexual Isabelle (a bela Valentina Sampaio, atriz trans que demonstra grande potencial). Em flashback, o filme mostra os últimos dias de Isabelle, desejada pelos clientes da boate dirigida pela rígida Greta (Vera Holtz), e que sonha em abandonar a prostituição - no que é apoiada pela mãe adotiva, Brigitte (Brigitte de Búzios) e pelo irmão, Russo (Emílio Dantas), um contraventor envolvido em uma série de pequenos roubos e que passa a ser acusado pelo homicídio. Através de Thiago, inconsolável pela morte da amiga, Berenice acaba se envolvendo na investigação do crime - uma decisão que a conduz a um mundo diametralmente oposto à sua rotina doméstica de classe média.

Muita coisa em "Berenice procura" parece capenga: o envolvimento da protagonista na investigação soa gratuito demais, a relação entre Thiago e Isabelle nunca fica exatamente clara, o desfecho é abrupto e anticlimático, alguns personagens coadjuvantes são simplesmente subaproveitados e o romance entre Berenice e Russo não convence (mais por problemas de roteiro do que pelo talento de Cláudia Abreu e Emílio Dantas). Porém, esses equívocos - que comprometem bastante a narrativa - são amenizados por algumas qualidades redentoras. Allan Fiterman acerta em boa parte das sequências na boate, com shows produzidos com bom gosto e com uma atmosfera bastante realista; o tratamento dado à transexualidade é respeitoso (todo preconceito vem de personagens de caráter duvidoso) e o elenco é um espetáculo à parte - principalmente Vera Holtz (tirando o máximo de uma personagem unidimensional) e Eduardo Moscovis (sempre ótimo em papéis duros). Mas o destaque é mesmo a bela Valentina Sampaio, que estreia no cinema com o pé direito - a cena com a avassaladora "Amor marginal", de Johnny Hooker, é deslumbrante e coloca o filme definitivamente no rol das mais importantes produções LGBTQ+ da história do cinema nacional. É um marco - mas que poderia estar em um filme menos apressado e genérico.

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