quarta-feira

BRINCANDO NOS CAMPOS DO SENHOR

 


BRINCANDO NOS CAMPOS DO SENHOR (At play in the fields of the Lord, 1991, The Saul Zaentz Company, 189min) Direção: Hector Babenco. Roteiro: Jean-Claude Carrière, Hector Babenco, Vincent Patrick, romance de Peter Mathiessen. Fotografia: Lauro Escorel. Montagem: William M. Anderson, Armen Minasian. Música: Zbiniew Preisner. Figurino: Aggie Guerard-Rodgers, Rita Murtinho. Direção de arte/cenários: Clovis Bueno/Dagoberto Assis. Produção executiva: David Nichols, Francisco Ramalho Jr.. Produção: Saul Zaentz. Elenco: Tom Berenger, John Lithgow, Daryl Hannah, Aidan Quinn, Tom Waits, Kathy Bates, Stênio Garcia, Nelson Xavier, José Dumont. Estreia: 06/12/91

Desde que foi publicado, em 1965, o romance "Brincando nos campos do Senhor" esteve na mira do cinema. Fascinado com o belo livro de Peter Mathiessen, que discutia temas relevantes e que estariam em voga no final do milênio, como ecologia, tolerância religiosa e racismo, o produtor Saul Zaentz imediatamente pensou em transportá-lo para as telas - mas chegou tarde demais em sua tentativa de adquirir os direitos de adaptação, comprados pela MGM. Persistente, ele viu o projeto nascer e morrer em diversas ocasiões - sob o comando de nomes fortes, como John Huston e Milos Forman e com estrelas do porte de Marlon Brando, Paul Newman e Richard Gere no elenco - sem nunca desistir de seus planos. Foi somente em 1989, porém, que o sonho se tornou realidade: mediante o pagamento de 1,4 milhão de dólares, Zaentz tinha, em mãos, a possibilidade de apresentar ao público de cinema uma história poderosa, intensa e emocionante como só os maiores épicos conseguem ser. Mal poderia imaginar, no entanto, que apesar das imensas qualidades que seu filme viria a ter, ele não conquistaria a audiência da maneira imaginada: com um custo estimado de 36 milhões de dólares e uma renda mundial de pouco mais de 1 milhão, a versão cinematográfica de "Brincando nos campos do Senhor" foi um dos mais retumbantes fracassos da década de 1990 e colocou a carreira do diretor Hector Babenco - vindo do prestígio de "O beijo da mulher-aranha" (1985) e "Ironweed" (1987) - em um hiato do qual só saiu sete anos mais tarde com "Coração iluminado" (1998).

Filmado inteiramente na Amazônia, entre junho e dezembro de 1990, o filme tomou quase dois anos da vida de Babenco antes mesmo do começo das filmagens. Ocupado em escolher locações e escrever o roteiro ao lado do experiente Jean-Claude Carrière - colaborador habitual de Buñuel -, o cineasta argentino/brasileiro ainda teria maus momentos pela frente. Da desistência de Laura Dern - que recusou-se a mergulhar em um rio com águas não exatamente limpas - às reclamações de parte da equipe, trabalhando em situação quase insalubre, a produção enfrentou problemas constantes que em nada ajudavam a amenizar o clima de constante insatisfação. Babenco, tenso e ciente da responsabilidade de comandar um projeto tão ambicioso e arriscado, orquestrava uma sinfonia das mais complicadas, com astros hollywoodianos misturados a atores brasileiros, extras locais e condições climáticas que impediam qualquer planejamento a longo prazo. Diante de tantos percalços, portanto, não apenas é notável que o filme tenha sido lançado, como que tenha resultado em um produto tão bom. A despeito de seu fiasco comercial - talvez explicável pelo teor controverso da trama -, "Brincando nos campos do Senhor" é o melhor filme da carreira do cineasta, e uma das produções mais subestimadas da década de 1990.


Em um breve resumo - que apenas dá as coordenadas para uma trama com desdobramentos complexos e surpreendentes -, o filme de Babenco conta a história de dois casais de missionários evangélicos que chegam à Amazônia com o objetivo de converter os índios locais, depois do violento fracasso de seus predecessores católicos. O líder do grupo é o ambicioso Leslie Huben (John Lithgow), que se preocupa mais em disputar os nativos com os rivais católicos do que exatamente salvar suas almas, e é ele quem recebe a família Quarrier, formada pelo idealista Martin (Aidan Quinn), pela fanática Hazel (Kathy Bates) e pelo pequeno Billy (Niilo Kivirinta) - que não demora a encantar-se com a liberdade dos indígenas, para desespero de sua mãe. O embate entre missionários e nativos deixa claro o choque entre culturas quase irreconciliáveis, especialmente quando fica claro que interesses financeiros estão por trás da chegada dos religiosos, que sem o saber, estão colaborando com empresários dispostos a dizimar tribos inteiras para ter acesso a minerais valiosos. Complicando ainda mais a situação, o piloto americano Lewis Moon (Tom Berenger) resolve se deixar seduzir por suas origens indígenas e se junta a seus ancestrais - o que não o impede de ser irremediavelmente atraído pela bela Andy (Daryl Hannah), esposa de Leslie.

A princípio a longa duração do filme - mais de três horas - pode assustar ao espectador menos paciente. Porém, tão logo as belas imagens de Lauro Escorel surjam na tela, fica claro que uma metragem menor prejudicaria consideravelmente a coerência interna e a solidez da história. Não há nenhuma cena desnecessária no filme de Babenco, e cada sequência empurra a trama em direção ao clímax - triste, chocante, infelizmente realista. Cuidadosamente produzido - seja em termos de composição visual, sonora e de construção de personagens -, o filme envolve justamente por não se deixar seduzir pelos caminhos narrativos mais fáceis. O roteiro, fluido, dá o tempo necessário a cada um de seus vários personagens, deixando claro ao espectador cada motivação e sentimento - o que, em muitos casos no cinemão hollywoodiano, é algo raro. E se em "O beijo da mulher-aranha" a mescla de atores brasileiros e estrangeiros deixava tudo um tanto caótico, o mesmo não se repete aqui: todos os atores estão em excelente momento, especialmente Kathy Bates (dona de alguns dos momentos mais catárticos) e Tom Berenger (cuja atuação é, sem favor, uma das melhores de sua carreira, apesar da opinião contrária do próprio Babenco). As caracterizações - outro ponto sensível em produções do gênero - são fascinantes e verossímeis (responsabilidade de especialistas no assunto), e a opção de colocar a Amazônia como um personagem a mais e não apenas um cenário passivo é um golpe de mestre - talvez pressionado pela própria natureza do local, mas mesmo assim brilhante.

Por fim, não é difícil entender os motivos que levaram "Brincando nos campos do Senhor" ao fracasso comercial. Não apenas o filme de Babenco foi lançado em um período complicado - final do ano, quando os estúdios mostram suas maiores armas para a temporada de premiações - como apresenta um tema bastante indigesto para o público médio frequentador de salas de exibição. É difícil imaginar famílias indo ao cinema assistir a uma produção que bate tão violentamente contra a colonização anglo-saxã e que discute com seriedade assuntos que só viriam a se tornar prementes algum tempo mais tarde. "Brincando" é um filme sério demais, feito com respeito demais para plateias acostumadas a blockbusters - ironia das ironias, o filme de Babenco é uma das maiores inspirações de James Cameron na sua concepção de "Avatar" (2010), o suprassumo do cinemão comercial feito em Hollywood. Que um dia a obra-prima do cineasta seja descoberta e avaliada como merece!

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