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O CAÇADOR DE PIPAS


O CAÇADOR DE PIPAS (The kite runner, 2007, DreamWorks Pictures, 128min) Direção: Marc Forster. Roteiro: David Benioff, romance de Khaled Hosseini. Fotografia: Robert Schaefer. Montagem: Matt Chessé. Música: Alberto Iglesias. Figurino: Frank Fleming. Direção de arte/cenários: Carlos Conti/Maria Nay, Caroline Smith. Produção executiva: Sidney Kimmel, Laurie MacDonald, Sam Mendes, Jeff Skoll. Produção: William Horberg, Walter Parkes, E. Bennett Walsh, Rebecca Yeldham. Elenco: Khalid Abdalla, Zekeria Ebrahimini, Ahmad Khan Mahmoodzada, Homayoun Ershadi, Atossa Leoni, Elham Ehsas, Shaun Toub, Nabi Tanha. Estreia: 05/10/07

Indicado ao Oscar de Trilha Sonora Original

Quatro anos e oito milhões de exemplares vendidos separam o lançamento do livro "O caçador de pipas", de Khaled Hosseini, e sua adaptação para o cinema, dirigida pelo alemão Marc Forster. Neste meio-tempo, a história de amizade e reparação entre dois afegãos - da infância aparentemente inocente às trágicas consequências impostas pelo regime talibã no país - ganhou o mundo e emocionou milhares de leitores, comovidos com sua estrutura de melodrama e personagens bem construídos e complexos. Seu êxito incontestável, porém, mostrou-se uma faca de dois gumes quando seus direitos foram comprados pela DreamWorks: assim como a versão cinematográfica já teria um amplo público-alvo embutido, havia a (enorme) possibilidade de que as mudanças necessárias à transição entre mídias desagradasse justamente a quem poderia fazer do filme um sucesso comercial. Além disso, havia o problema do idioma: até que ponto uma produção hollywoodiana poderia se arriscar e rodar um filme em língua não-inglesa em um mercado tão hermético (para não dizer preguiçoso) a legendas? E quais as probabilidades de um filme com tema tão pesado alcançar um público propenso a blockbusters escapistas? Tais questões - somados a dificuldades logísticas como encontrar locações que fizessem as vezes do Afeganistão, uma vez que, por motivos óbvios, a produção teria problemas em filmar in loco - deixaram as expectativas em torno do resultado final nas alturas. Quando enfim aconteceu a estreia - em outubro de 2017, em festivais de cinema antes do lançamento em larga escala - muitos respiraram aliviados: por mais que a adaptação tenha feito suas previsíveis alterações ao material original, a essência do romance estava intacta nas telas (em especial em seu primeiro e mais controverso ato), a escolha do elenco havia sido certeira e, mais importante ainda, a opção em evitar um filme falado em inglês não parecia afastar a plateia. Com uma renda mundial de aproximadamente 75 milhões de dólares (um sucesso, levando-se em conta sua falta de astros internacionais e sua temática), "O caçador de pipas" repetiu no cinema o sucesso das livrarias.

Talvez o maior acerto de Marc Forster, um cineasta eficiente que consegue transitar entre gêneros e extrair de seus elencos atuações superlativas - foi por suas mãos que Halle Berry levou um Oscar por "A última ceia", de 2001, e Johnny Depp concorreu à estatueta por "Em busca da Terra do Nunca", de 2004 -, foi a escolha dos atores juvenis de sua produção. Elementos cruciais para envolver emocionalmente o espectador, os meninos afegãos selecionados por Forster (sem experiência alguma em cinema) não precisam mais do que alguns minutos em cena para transportar a plateia para o Afeganistão do final dos anos 1970: é lá que moram as memórias mais profundas da vida do escritor Amin (Khalid Abdalla), que, no momento do lançamento de seu primeiro livro nos EUA, se vê obrigado a resgatar lembranças pouco agradáveis de sua infância. Um telefonema o remete imediatamente à época em que, ainda criança (e na pele do sutil Zekeria Ebrahimi) e dando os primeiros passos em sua paixão pelas letras, ele passeava pelas ruas de Cabul sem maiores preocupações na vida a não ser estudar e brincar com o melhor amigo, Hassan (o expressivo Ahmad Khan Mahmoodzada). Filho de um empregado de seu pai e de uma etnia considerada inferior na sociedade afegã, Hassan não é apenas amigo de Amir, mas sim um companheiro de fidelidade que chega às raias da submissão. Depois de um trágico incidente envolvendo Hassan - e que poderia ter sido evitado por Amir, paralisado pela covardia -, a dinâmica de sua relação se transforma, e não demora para que outras situações acabem os separando definitivamente. Em 1979, a URSS invade o Afeganistão, e o pai de Amir (Homayoun Ershadi) - um crítico feroz do comunismo - se vê obrigado a emigrar para os EUA junto com o filho e tentar uma nova vida.

 

Em outro país, Amir insiste em tentar uma carreira de escritor, contando com o apoio do pai (sua única família desde a morte da mãe, em seu nascimento). Casado com Soraya (Atossa Leoni), filha de um general também exilado, Amir parece ter deixado para trás sua vida antiga - ao menos até o telefonema que lhe permite resgatar os erros de seu passado. De volta à sua terra natal - irreconhecível depois de tantos anos e tantas guerras -, o escritor toma conhecimento dos horrores que levaram a família de Hassan a mais uma tragédia - mas dessa vez, dotado de uma coragem surpreendente, ele parte em busca de reparar as atitudes que o empurraram para longe de seu fiel amigo de infância (que ele descobre ser mais do que apenas um amigo). Enfrentando perigos inimagináveis em sua vida ocidental, Amir não apenas busca limpar a consciência, mas também se vê diante de uma nação sufocada por um regime autoritário e triste que não poupa nem mesmo suas crianças.

Criticado por alguns como uma espécie de exaltação da intervenção norte-americana no Oriente Médio, "O caçador de pipas" deve ser visto apenas como um (bom) filme, contado de forma correta e adequadamente comovente. Dirigida com sobriedade por Forster - que também tem no currículo a comédia "Mais estranho que a ficção" (2007), "Guerra Mundial Z" (2013) e "007: Quantum of solace" (2008) - e adaptada com respeito pelo escritor David Benioff, a produção sofre com algumas pequenas quedas de ritmo (em especial na transição entre o segundo e o terceiro atos), mas desafia os perigos de tornar-se sentimental em excesso e desvia com elegância de sequências controversas (que levaram os produtores a transferir os atores mirins para fora do Afeganistão). É um filme que comove por tratar de questões humanas em sua essência, como lealdade, amor, amizade, perdão e remorso. É um filme que envolve por contar com precisão uma história com personagens que são gente de carne e osso, com falhas flagrantes e qualidades redentoras. E é um filme que permanece na memória por jamais subestimar a inteligência e a sensibilidade de seu público. Em comparação com tantas adaptações literárias anêmicas e desrespeitosas, "O caçador de pipas" é uma pérola.

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