SILÊNCIO
(Silence, 2016, Cappa Defina Productions/CatchPlay, 161min) Direção:
Martin Scorsese. Roteiro: Jay Cocks, Martin Scorsese, romance de Shusaku
Endô. Fotografia: Rodrigo Prieto. Montagem: Thelma Schoonmaker. Música:
Kathryn Kluge, Kim Allen Kluge. Figurino: Dante Ferretti. Direção de
arte/cenários: Dante Ferretti/Francesca LoSchiavo. Produção executiva:
Brandt Andersen, Michael Barnes, Paul Breuls, Dale A. Brown, Manu Gargi,
Wayne Marc Godfrey, Niels Juul, Nicholas Kazan, Matthew J. Malek,
Gianni Nunnari, Chad A. Verdi, Michelle Verdi, Tyler Zacharia. Produção:
Vittorio Cecchi Gori, Barbara de Fina, Randall Emmett, David Lee,
Gaston Pavlovich, Martin Scorsese, Emma Tillinger Koskoff, Irwin
Winkler. Elenco: Andrew Garfield, Adam Driver, Liam Neeson, Ciàran
Hinds, Tadanobu Asano, Issei Ogata. Estreia: 29/11/16 (Vaticano)
Indicado ao Oscar de Fotografia
Foi
em 1988 que Martin Scorsese ganhou de presente de um padre de Nova York
o romance "Silêncio", do escritor japonês Shusaku Endô, sobre dois
jovens sacerdotes portugueses que partem para o Japão do século
XVII em busca de seu mentor, que evidências apontam ter se tornado um
apóstata - ou seja, renegado o cristianismo por medo de ser torturado e
morto. Como um católico fervoroso que é, Scorsese ficou profundamente
tocado com a história e pensou imediatamente em transformá-la em filme.
No entanto, as reações raivosas a seu "A última tentação de Cristo",
baseado no romance do grego Nikos Kazantzakis e também com alto teor de
questionamento religioso, o levaram a deixar o projeto de lado. Demorou
mais de uma década até que, ao lado do amigo Jay Cocks, retomasse a
ideia de uma adaptação: de acordo com seus planos, "Silêncio" seria seu
filme seguinte ao igualmente complicado (e igualmente projeto de
estimação) "Gangues de Nova York" (2002). Mas as coisas, para variar,
não correram conforme o esperado e, sem financiamento para uma produção
cara e ambiciosa (além de potencialmente fadada a um fracasso
comercial), Scorsese tratou de seguir a vida - e levar seu tão merecido
Oscar, em 2007, por "Os infiltrados".
Quando finalmente
conseguiu dinheiro suficiente para o início das filmagens, marcado para
janeiro de 2015, porém, uma outra questão surgiu no caminho do diretor:
a impossibilidade de contar com o elenco escalado na ocasião em que o
projeto havia sido anunciado. Com a saída de Daniel Day-Lewis, Gael
García Bernal e Benicio Del Toro, envolvidos em outros compromissos
profissionais, Scorsese se viu obrigado a alterar a idade dos
personagens e algumas de suas características para que melhor coubessem
em suas novas escolhas. Assim, Day-Lewis foi substituído por Liam Neeson
- invertendo a troca de papéis ocorrida em "Lincoln" (2012), de Steven
Spielberg - e Gael García Bernal pelo promissor Andrew Garfield. No
lugar de Benicio Del Toro - a mudança mais significativa em termos
dramáticos - o escolhido foi Adam Driver, que, apesar da participação em
"Star Wars: o despertar da força" (2015), dificilmente pode ser
considerado um chamariz de bilheteria. Com um elenco talentoso e 40
milhões de dólares nas mãos, Scorsese viajou para Taiwan - maquiada como
o Japão do século XVII pela direção de arte caprichada de Dante
Ferretti e pela fotografia impressionante de Rodrigo Prieto - e deu
início a 73 exaustivos dias de filmagens que finalmente proporcionaram
ao diretor a chance de traduzir em imagens as palavras do escritor
japonês. Infelizmente, porém, nem tudo mundo se entusiasmou com o
resultado final de tanto esforço. Apesar de muitas críticas favoráveis, o
filme acabou se tornando uma decepção tanto nas bilheterias (o que era
relativamente esperado) quanto nas cerimônias de premiação (onde foi
solenemente ignorado, salvo uma indicação ao Oscar de melhor
fotografia).
Sem
medo de chocar a audiência com sequências bastante explícitas - mas
nunca apelativas - de tortura e violência cometidas contra aqueles que
tentavam difundir o cristianismo no Japão do século XVII, Scorsese
convida o espectador a uma narrativa de ritmo quase contemplativo, que
contrasta vivamente com a constante tensão em que vivem os
protagonistas, sempre a um passo de mergulharem em um pesadelo de
intolerância e crueldade. As poderosas imagens de Rodrigo Prieto -
sempre envoltas em brumas e luzes de velas - enfatizam com inteligência o
turbilhão emocional de seus personagens, atormentados não apenas pelos
perigos que enfrentam dia-a-dia, mas também por suas próprias
consciências. A atuação extraordinária de Andrew Garfield - que no mesmo
ano foi indicado ao Oscar de melhor ator por outro poderoso desempenho,
em "Até o último homem", dirigido por Mel Gibson - encontra apoio no
roteiro corajoso de Scorsese e Jay Cocks, que não hesita em intercalar
longos diálogos teológicos com sequências inteiras dotadas de um
significativo silêncio. A edição suave de Thelma Schoonmaker rompe
radicalmente com sua tradição de agilidade e nervosismo, entregando ao
público uma narrativa linear e delicada que equilibra a força da
história com a suavidade de seus protagonistas, lutando por um ideal de
paz e tolerância em um mundo pouco disposto a lhes dar ouvidos. Scorsese
passeia com sua câmera por um Japão medieval povoado por pessoas com
medo de suas crenças e buscando apoio espiritual diante das atrocidades
cometidas em nome de Deus, mas nunca deixa de dar espaço a
questionamentos, evitando apontar heróis ou vilões - ainda que,
logicamente, o ponto de vista cristão sobreponha-se a qualquer outro no
decorrer da trama. Dono de uma fé inabalável mas jamais fechado a
discussões a respeito de sua religião, Scorsese mais uma vez levanta
questionamentos relevantes na tela de cinema - mas, mais uma vez, parece
pregar no deserto.
O fracasso de bilheteria de
"Silêncio" não diz respeito à sua qualidade como cinema - Scorsese dá
mostras, mais uma vez, do brilhante artista que é em diversos momentos
da projeção - mas sim a seu tema. Controvérsia nunca foi algo estranho
ao diretor nova-iorquino, que não tem medo de arriscar seu prestígio em
projetos potencialmente inflamáveis, mas falar de intolerância religiosa
em uma época em que o terrorismo parece uma ameaça indissolúvel apenas
afastou ainda mais as plateias que lotam as salas atrás de escapismo.
Seu filme é violento - não ao estilo "Os mercenários", mas dotado de uma
violência real e sufocante - e inteligente demais para o público médio,
mal-acostumado e fútil. Não é uma obra-prima, se estande em demais e
por vezes parece um tanto redundante. Mas é visceral, sensível e de
extrema relevância, além de apresentar algumas cenas plasticamente
deslumbrantes e atuações intensas e apaixonadas - e um final devastador.
O tempo fará justiça à "Silêncio", mais um grande filme a figurar no
currículo impecável de Martin Scorsese.
Filmes, filmes e mais filmes. De todos os gêneros, países, épocas e níveis de qualidade. Afinal, a sétima arte não tem esse nome à toa.
sexta-feira
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