sexta-feira

ESTRADA PERDIDA


ESTRADA PERDIDA (Lost highway, 1997, CiBy 2000, 134min) Direção: David Lynch. Roteiro: David Lynch, Barry Gifford. Fotografia: Peter Deming. Montagem: Mary Sweeney. Música: Angelo Badalamenti. Figurino: Patricia Norris. Direção de arte/cenários: Patricia Norris/Leslie Morales. Produção: Deepak Nayar, Tom Sternberg, Mary Sweeney. Elenco: Bill Pullman, Balthazar Getty, Patricia Arquette, Robert Blake, Louis Eppolito, Gary Busey, Natasha Gregson-Wagner. Estreia: 15/01/97 (França) 

A maneira com que ideias surgem na mente de criadores é sempre uma incógnita. Autores costumam ser inspirados por canções, acontecimentos reais, pessoas que conhecem, livros ou até mesmo por sonhos - e nenhum deles se arriscaria a afirmar sua receita como a melhor ou mais acertada. Que o diga David Lynch, que viu o roteiro de seu "Estrada perdida" surgir de dois acontecimentos completamente aleatórios. Segundo o cineasta, tudo começou com um incidente estranho ocorrido em sua própria casa, quando uma voz desconhecida declarou, através do interfone, que uma pessoa que ele não conhecia estava morta - para simplesmente desaparecer depois da notícia. Além disso, durante o processo de escrita, Lynch teve (segundo ele mesmo, de forma inconsciente) a influência de um dos julgamentos mais rumorosos dos EUA na década de 1990: o caso O.J. Simpson, levado aos tribunais pelo duplo homicídio de sua ex-mulher e um amigo. De posse desses dois elementos díspares, um dos mais íntegros e fascinantes realizadores de Hollywood surgiu com seu oitavo longa-metragem, aquele que foi definido pela revista Entertainment Weekly como um dos mais assustadores filmes de todos os tempos. Cruel e angustiante na mesma medida, "Estrada perdida" é, também, um exercício de estilo dos mais impressionantes.

Enigmático como boa parte da filmografia de David Lynch, "Estrada perdida" já desnorteia o espectador de cara, assim como o faz com seus protagonistas, o saxofonista Fred Madison (Bill Pullman, colhendo os louros do sucesso de bilheteria de "Independence Day" (1996) e sua bela esposa, Renee (Patricia Arquette, morena): passando por uma série crise em seu casamento, enfatizada pelo constante ciúme de Fred, o casal ainda precisa lidar com a chegada constante de fitas de vídeo deixadas à sua porta, que mostram cenas do interior de sua casa. Nem mesmo a polícia é capaz de fazer algo para resolver a situação - que pode ou não estar relacionada ao violento assassinato de Renee, pelo qual seu marido acaba por ser responsabilizado e condenado. Se até então Lynch brincava com a percepção do público a respeito de seu par central de personagens - cujas personalidades não são aprofundadas propositalmente -, o segundo ato embaralha as cartas de forma radical: do nada, de dentro de sua cela, Fred se transforma em outra pessoa, mais jovem, com outro nome, outro rosto e outra profissão. A partir de então ele é Pete Dayton (Balthazar Getty), mecânico preso por crimes menores e que, fora da cadeia, irá se envolver em um romance arriscado com Alice (Patricia Arquette, dessa vez loura), amante de um perigoso gângster. Mas afinal de contas, qual a relação entre Fred Madison e Pete Dayton? Ou mais importante ainda: há alguma relação entre eles? E quem mandava as fitas para Madison e Renee? E quem é Dick Laurant - cujo anúncio de morte feito via interfone para o saxofonista dá início ao jogo?

Quem conhece a obra de David Lynch sabe que nem todas as perguntas criadas em suas tramas tem respostas óbvias - frequentemente cada espectador tem uma resposta própria e razoavelmente coerente com suas percepções. Em "Estrada perdida" não é diferente: amparado pela trilha sonora hipnótica de Angelo Badalamenti - em sua quarta colaboração juntos - e pela edição claustrofóbica de Mary Sweeney, o cineasta conduz a plateia por uma jornada aflitiva e aparentemente caótica cujos elementos só fazem sentido quando unidos em um panorama maior. Assim como faria em seus filmes seguintes, "Cidade dos sonhos" (2002) e "Império dos sonhos" (2006), o diretor apresenta suas armas gradativamente, jogando luz sobre detalhes que se repetem em circunstâncias contraditórias e/ou complementares. Um filme de Lynch não é apenas um passatempo esquecível: reafirmando seu modo peculiar de enxergar o mundo, o homem que fez o planeta se perguntar quem matou Laura Palmer - na antológica série "Twin Peaks" - faz de uma sessão de pouco mais de duas horas se transformar em uma experiência sensorial completa, em que nada é o que parece ser, personagens desafiam a lógica pré-estabelecida pelas regras narrativas e atores mostram lados até então novos de suas personas artísticas. É assim que Bill Pullman se transforma em um Fred Madison angustiado, paranoico e torturado e Patricia Arquette abandona suas personagens maluquetes - de filmes como "Amor à queima-roupa" (1993), "Ed Wood" (1994) e "Procurando encrenca" (1996) - para entregar não apenas uma, mas duas atuações densas, que chegam ao limite entre o sensual e o macabro.

Chegar a uma conclusão definitiva sobre qualquer trabalho de David Lynch é tarefa inglória. Por mais que sempre exista um caminho para decifrar seus enigmas - montados como um pesadelo pictório - e no final das contas as coisas possam fazer sentido dentro de um quadro maior, quebrar a cabeça com mil teorias faz parte da viagem que é assistir a filmes como "Estrada perdida". Toda imagem, todo diálogo, todo personagem, são peças essenciais para que o conjunto se torne, no final da sessão, uma espécie de experiência única e avassaladora. Em "Estrada perdida" há uma explicação lógica e simples por trás da profusão de problemas apresentados - mas a forma como se chegar a essa explicação é que faz disso tudo um momento único. Embalado por uma trilha sonora jazzística que mistura David Bowie, Lou Reed, Marilyn Manson, Trent Reznor e Tom Jobim - uma miscelânea que já dá pistas sobre o estilo iconoclasta do currículo do cineasta - e por um tom aterrador de suspense que jamais permite ao público antecipar o que virá pela frente, "Estrada perdida" é mais um ponto alto da carreira de seu realizador, ainda que apeteça muito mais a seu público cativo do que eventuais neófitos.

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