segunda-feira

FUGA À MEIA-NOITE

 


FUGA À MEIA-NOITE (Midnight run, 1988, Universal Pictures, 126min) Direção: Martin Brest.Roteiro: George Gallo. Fotografia: Donald E. Thorin. Montagem: Chris Lebenzon, Michael Tronick, Billy Weber. Música: Danny Elfman. Figurino: Gloria Gresham. Direção de arte/cenários: Angelo Graham/George R. Nelson. Produção executiva: William S. Gilmore. Produção: Martin Brest. Elenco: Robert DeNiro, Charles Grodin, Joe Pantoliano, Yaphet Kotto, Dennis Farina, John Ashton. Estreia: 20/7/88
 
Jack Nicholson, Al Pacino, John Travolta, Michael Douglas. Mel Gibson, Sylvester Stallone, Arnold Schwarzenegger. Charles Bronson, Clint Eastwood, Gene Hackman. Burt Reynolds, Richard Gere, Mickey Rourke, Jeff Bridges. Dustin Hoffman, Jon Voight, Harrison Ford. Em determinado período da segunda metade da década de 1980, praticamente todo ator de razoável visibilidade em Hollywood foi cogitado, sondado ou meramente imaginado no papel principal de "Fuga à meia-noite", uma comédia de ação que, explorando o velho clichê das duplas improváveis - que havia sido o motor do megasucesso "Máquina mortífera" (1987) -, era a principal aposta da Paramount Pictures para a temporada 1988. Com um roteiro leve, ágil e engraçado e a direção de Martin Brest - vindo da consagração de "Um tira da pesada" (1984) -, o projeto surpreendeu ao mudar de mãos antes do começo das filmagens: por tais famosas "diferenças criativas", os executivos do estúdio passaram a ideia adiante e, em sua nova casa, a Universal Pictures, o filme tornou-se um dos maiores êxitos comerciais do ano, com uma renda superior a 80 milhões de dólares - e agradou em cheio também à crítica, com duas indicações ao Golden Globe (ator e filme/comédia ou musical) e a inclusão na lista dos dez melhores do National Board of Review. E se o perfeito equilíbrio entre os gêneros e a direção precisa de Brest são ingredientes cruciais ao sucesso da produção, é inegável que seu maior trunfo é a presença irresistível de Robert DeNiro - no final das contas a escolha mais acertada para liderar o elenco, a despeito de sua imagem de ator dramático.

E foi justamente a vontade de DeNiro em explorar um lado novo de seu talento que o aproximou do projeto de "Fuga à meia-noite": depois de perder o papel principal de "Quero ser grande" (1988) para Tom Hanks, o ator agarrou com unhas e dentes a oportunidade de viver Jack Walsh, um ex-policial tornado caçador de recompensas envolvido em um jogo de gato e rato que lembra os melhores momentos do clássico "Acorrentados", que em 1958 uniu Tony Curtis e Sidney Poitier em um road movie dos mais movimentados e empolgantes. Ao lado de um inspirado Charles Grodin, DeNiro não abdica de seus trejeitos mais conhecidos, mas os usa de forma inteligente, como ferramentas para fazer rir como nunca antes em sua carreira: calcado em diálogos espirituosos e na brincadeira com a percepção do público a seu respeito, ele prescinde de caretas ou exageros para alcançar o tom ideal - e quando necessita oferecer emoção, o faz com a sutileza de que só os grandes são capazes. Mesmo que seja uma comédia - um gênero tradicionalmente menosprezado pela crítica considerada séria - o filme de Brest não descuida da direção de atores, e no fim é isso que faz toda a diferença.
 
 
O roteiro, repleto de reviravoltas e sequências que capricham na ação e no humor, conta a história da conturbada relação entre Jack Walsh e Jonathan Mardukas. Walsh saiu da polícia depois de acontecimentos mal expliados envolvendo criminosos da pesada e seu casamento fracassado. Mardukas é um contador foragido que deu um golpe em seu patrão mafioso, Jimmy Serrano (Dennis Farina), distribuiu 15 milhões de dólares a instituições de caridade e se encontra escondido da polícia. Seus caminhos se cruzam quando o agente de fianças Eddie Moscone (Joe Pantoliano) contrata Walsh para localizar Mardukas em Nova York e entregá-lo em Los Angeles no prazo de quatro dias. O experiente caçador de recompensas aceita o desafio e tudo parece correr dentro do previsto apesar da personalidade irritante do contador. Porém, o que Walsh não sabe é que há mais gente disposta a qualquer coisa para colocar as mãos em seu companheiro de viagem: a polícia, na figura do agente do FBI Alonso Mosely (Yaphet Kotto); o competitivo rival de Walsh, Marvin Dorfler (John Ashton em papel considerado para John Goodman e John Candy); e o próprio Jimmy Serrano, em busca de vingança por seu dinheiro roubado. No caminho até Los Angeles - e até o pouco confiável Moscone, os dois novos parceiros começam a desenvolver uma relação de amizade (atípica) e respeito (ainda que velado).

Brilhante em sua forma de equilibrar humor e ação, "Fuga à meia-noite" é um produto típico de sua época, apresentando uma série de clichês e explorando-os da maneira mais inteligente possível. A dupla formada por DeNiro e Charles Grodin - no melhor desempenho de sua carreira - pode facilmente fazer parte de uma linhagem de parceiros antológicos do cinema hollywoodiano (uma lista da qual fazem parte Butch Cassidy & Sundance Kid e Riggs & Murtaugh), e é dela os melhores momentos do longa, principalmente quando acontecem os divertidos embates de personalidade, capazes de fazer gargalhar o mais mau-humorado espectador. E destacar-se em um universo de produções que parecem seguir sempre a mesma fórmula (ainda que nem sempre de maneira memorável) não deixa de ser um feito e tanto!

P.S.: E quanto às "diferenças criativas" que fizeram a Paramount entregar o filme de bandeja à Universal? Basta dizer que, para aumentar as chances de sucesso da produção, o estúdio queria alterar o gênero de Mardukas para criar uma tensão sexual entre os protagonistas - e tinha até o nome de Cher como possibilidade de estrela. Depois da rejeição peremptória de Martin Brest, houve a sugestão de Robin Williams - vindo do sucesso de "Bom dia, Vietnã" (1987) -, mas a insistência do cineasta em manter Charles Grodin como coprotagonista (a despeito de não ser um grande nome) acabou por desagradar os engravatados, que acharam por bem abandonar o barco e deixar o projeto para outros. O tempo mostrou quem estava enganado...

sábado

COCKTAIL

 


COCKTAIL (Cocktail, 1988, Touchstone Pictures, 104min) Direção: Roger Donaldson. Roteiro: Heywood Gould, romance de sua autoria. Fotografia: Dean Semler. Montagem: Neil Travis. Música: J. Peter Robinson. Figurino: Ellen Mirojnick. Direção de arte/cenários: Mel Bourne/Hilton Rosemarin. Produção: Robert W. Cort, Ted Field. Elenco: Tom Cruise, Bryan Brown, Elisabeth Shue, Gina Gershon, Kelly Lynch. Estreia: 29/7/88

Em 1989, Tom Cruise já havia começado sua transição de galã juvenil para ator respeitado pela crítica e pela indústria - o que confirmou-se com sua indicação ao Oscar por "Nascido em 4 de julho", dirigido por Oliver Stone. Antes de abandonar seu status de símbolo sexual, porém, deu de presente a seus fãs um último trabalho capaz de explorar seu sorriso e seu carisma. Baseado no romance homônimo de Heywood Gould, também autor do roteiro pouco inventivo - e que foi premiado com o Framboesa de Ouro da categoria -, "Cocktail"se enquadra nos tradicionais dramas românticos de fundo moralista que tanto fizeram sucesso na década de 1980, mas que, valorizado por uma embalagem atraente (belas locações na Jamaica, trilha sonora de hits, elenco de jovens astros em ascensão) o levou a arrecadar polpudos 170 milhões de dólares ao redor do mundo. Uma prova inconteste do apelo de Cruise junto ao público, o filme do neozelandês Roger Donaldson - vindo do ótimo "Sem saída" (1987), que deu a Kevin Costner um de seus melhores papéis no cinema - o coloca novamente ao lado de um ator veterano como forma de contraste entre duas gerações. Se em "A cor do dinheiro" (1986) a dupla era com Paul Newman (que ganhou o Oscar por seu desempenho), e em "Rain Man" (lançado pouco meses depois de "Cocktail") o encontro foi com Dustin Hoffman (igualmente oscarizado por seu trabalho), o filme de Donaldson promove o encontro de Cruise com o australiano Bryan Brown - que pouco tem a fazer com um personagem atolado em clichês.

A trama é simples e inspirada na própria experiência do roteirista por trás dos balcões de bares: Brian Flanagan (interpretado por Cruise) é um jovem ambicioso que abandona sua pequena cidade natal com o objetivo de vencer no mercado financeiro de Nova York. Seus planos logo se mostram mais complicados do que pareciam, e ele se vê trabalhando como bartender ao lado do experiente Douglas Coughlin (Bryan Brown), que lhe serve como mentor e melhor amigo. Aos poucos, esbanjando carisma e dedicação, Brian se torna um dos mais conhecidos profissionais do ramo e, mudando o rumo de seus desejos de sucesso, se une a Douglas no objetivo de abrir um negócio próprio. As coisas não saem como planejado e, depois de abandonar Manhattan - culpa de uma briga com seu futuro sócio -, o rapaz começa uma vida nova na Jamaica, onde novamente se destaca com suas coreografias elaboradas e seu sorriso cativante. É lá que ele conhece a jovem Jordan (Elisabeth Shue), com quem inicia um apaixonado romance. Mais uma vez, no entanto, tudo vira do avesso em sua vida quando Douglas reaparece, rico, bem casado e disposto a apagar as rusgas do passado - o que pode ameaçar o nascente relacionamento com a doce Jordan.

 

Apesar de depender quase unicamente do sorriso e do carisma de Cruise - algo que o então jovem galã não economizava, para alegria dos fãs -, "Cocktail" nem sempre teve tal trunfo em mãos. Antes que Cruise acertasse sua participação no filme, atores de vários tipos físicos, idades e perfis foram cotados para liderar o elenco - um forte indício da falta de personalidade de um projeto que, segundo o próprio Heywood Gould, deu origem a 40 diferentes versões do roteiro. Dessa forma, nomes como Robin Williams, Charlie Sheen, John Travolta, Rob Lowe, Jeff Bridges, Matthew Broderick e Mel Gibson chegaram a ser pensados - Keanu Reeves, Tom Hanks e Bill Murray só foram deixados de lado por conflitos com outros compromissos. Da mesma forma, o papel do mentor do protagonista também teve sua lista de possíveis intérpretes, que iam de Paul Newman e Dustin Hoffman (que voltariam a contracenar com Cruise) a Jack Nicholson, Harrison Ford, Tommy Lee Jones, Joe Pesci e Michael Caine (que pulou fora do barco para integrar o elenco do hilário "Os safados", ao lado de Steve Martin. E até mesmo a atriz para viver a doce heroína do filme, Jordan, foi objeto de discussão, com Elisabeth Shue batendo nomes fortes como Demi Moore, Jennifer Jason Leigh, Jennifer Grey, Sarah Jessica Parker, Daryl Hannah e, pasmem, Jodie Foster.

É inegável que, sob a luz da nostalgia, "Cocktail" é uma sessão da tarde deliciosa, descompromissada, leve e agradável. Como cinema, porém, é apenas um veículo para explorar a popularidade de Tom Cruise - e sob esse ponto de vista, o filme é um sucesso. A bilheteria expressiva ajudou o estúdio (a Touchstone Pictures), a ascensão do astro (que em breve focaria a carreira em produções mais sérias) e o público, que lotou salas de exibição para acompanhar uma história quase maniqueísta, fotografada de forma tão solar e romântica que mal deixava vislumbrar seu moralismo quase ingênuo. No frigir dos ovos, a química entre Cruise, Brown e Shue - somada à trilha sonora que incluía até mesmo uma canção original dos Beach Boys - foi o suficiente para as plateias menos exigentes e serviu para reafirmar a posição de seu astro como um dos nomes mais fortes do cinema hollywoodiano dos então vindouros anos 1990.

sexta-feira

TODO PODEROSO

 


TODO PODEROSO (Bruce Almighty, 2003, Universal Pictures, 103min) Direção: Tom Shadyac. Roteiro: Steve Koren, Mark O'Keefe, Steve Oedekerk, estória de Steve Koren, Mark O'Keefe. Fotografia: Dean Semler. Montagem: Scott Hill. Música: John Debney. Figurino: Judy Ruskin Howell. Direção de arte/cenários: Linda DeScenna/Rick McElvin. Produção executiva: Gary Barber, Roger Birnbaum, Steve Oedekerk. Produção: Michael Bostik, James D. Brubaker, Jim Carrey, Steve Koren, Michael O'Keefe, Tom Shadyac. Elenco: Jim Carrey, Morgan Freeman, Jennifer Aniston, Philip Baker Hall, Steve Carell, Sally Kirkland. Estreia: 14/5/2003

Depois de provar-se como um ator capaz de alçar maiores voos dramáticos - em filmes como "O show de Truman: o show da vida" (1998), "O mundo de Andy" (1999) e "Cine Majestic" (2001) - o canadense Jim Carrey achou que já era hora de voltar à sua zona de conforto e abraçar o gênero que lhe deu fama, dinheiro e o amor de milhares de fãs. Ao reunir-se com o cineasta Tom Shadyac - que lhe deu seu primeiro grande sucesso de bilheteria, "Ace Ventura: um detetive diferente" (1994) e lhe confirmou o status de astro com "O mentiroso" (1997) - e assumir novamente seu talento em fazer rir com caras e bocas, Carrey tornou "Todo poderoso" a comédia de maior sucesso de sua carreira e, mais impressionante ainda, da história (batendo o recorde de "Esqueceram de mim", lançado em 1990). Contando com a luxuosa ajuda de Morgan Freeman e Jennifer Aniston - no auge do sucesso de "Friends" -, Carrey nem precisa se esforçar muito para arrancar gargalhadas das plateias, mesmo que nem sempre o roteiro atinja todas as suas possibilidades. Baseado livremente no romance "Almighty me", de Robert Bausch - que não é citado em nenhum momento como fonte oficial -, o filme de Shadyac brinca com a ideia universal de um ser humano adquirir poderes divinos, e aposta todas as suas fichas em seu astro. E ganha.

Criado como veículo para Kevin Hart, que abandonou o projeto por considerar o tema sacrílego, "Todo poderoso" apresenta Carrey como Bruce Nolan, um repórter televisivo infeliz com o rumo de sua carreira. Constantemente subestimado por seus superiores - que lhe escalam sempre para cobrir amenidades irrelevantes -, Nolan atinge o ápice de seu desgosto com a vida quando vê seu maior rival profissional, Evan Baxter (Steve Carrell), ficar com seu almejado posto de âncora do telejornal local. Frustrado e irado com a situação, ele acaba chamando a atenção de Deus, que ouve seus lamentos e lhe aparece (na figura de Morgan Freeman) para informar que, durante um período em que estará de férias, é o próprio Nolan quem irá ficar em seu lugar, tomando todas as decisões inerentes à função. Dotado de super poderes e com o dom de realizar milagres, conceder graças e - em pequenos atos de mesquinhez - prejudicar seu arquirrival no caminho do sucesso. Enquanto se diverte com a situação, porém, o aspirante a celebridade percebe que o Homem-aranha já sabe ("grandes poderes trazem grandes responsabilidades") e passa a negligenciar seu romance com a apaixonada Grace (Jennifer Aniston).

 


Se o roteiro escrito por Steve Koren, Mark O'Keefe e Steve Oedekerk não consegue escapar das armadilhas de uma trama quase moralista (com uma mensagem que não exatamente combina com o tom iconoclasta do humor praticado por seu ator central), Jim Carrey deita e rola em um papel que remete aos melhores momentos da comédia física que lhe consagrou. Quando o roteiro insiste em falar sério ou até mesmo apelar para o romantismo, o filme de Shadyac mostra que ambiciona mais do que simplesmente fazer rir descompromissadamente - como em seus outros trabalhos com o astro -, mas acaba por criar, involuntariamente, uma quebra de ritmo que compromete o resultado final. Os fãs de Carrey, logicamente, tem muito a aproveitar - o ator está em plena forma - e encontrarão diversos momentos hilariantes. De brinde, ainda há a participação de Steve Carell (ainda creditado como Steven) em uma sequência das mais engraçadas - não por acaso o próprio Carell assumiu a protagonização da continuação, lançada, sem o mesmo êxito, em 2007.

Banido no Egito devido a seu conteúdo considerado ofensivo, "Todo poderoso" é mais um sucesso incontestável na bem-sucedida carreira de Jim Carrey - que levou uma bolada de 25 milhões de dólares de cachê. Leve, despretensioso (ainda que levemente mais profundo do que boa parte de suas comédias) e solar, contrasta radicalmente de seu currículo até então - um currículo que seria enriquecido ainda mais no ano seguinte com o belo "Brilho eterno de uma mente sem lembranças", que ofereceria às plateias um novo lado do ator: o romântico. Antes de sua estreia, porém, o público pode divertir-se às pencas com uma trama que apostava em seu humor debochado e frequentemente exagerado - características que sempre fizeram dele uma aposta certeira quando se tratava de arrancar gargalhadas quase histéricas do espectador.

quinta-feira

ALIANÇA DO CRIME

 


ALIANÇA DO CRIME (Black Mass, 2015, Cross Creek Pictures, 123min) Direção: Scott Cooper. Roteiro: Mark Mallouk, Jez Butterworth, livro de Dick Lehr, Gerard O'Neill. Fotografia: Masanobu Takayanagi. Montagem: David Rosenbloom. Música: Tom Holkenborg. Figurino: Kasia Walicka Maimone. Direção de arte/cenários: Stefania Cella/Tracey Doyle. Produção executiva: Brett Granstaff, Gary Granstaff, Phil Hunt, Peter Mallouk, Ray Mallouk, Steven Mnuchin, James Packer, Brett Ratner, Compton Ross, Christopher Woodrow. Produção: Scott Cooper, John Lesher, Patrick McCormick, Brian Oliver, Tyler Thompson. Elenco: Johnny Depp, Joel Edgerton, Benedict Cumberbatch, Dakota Johnson, Kevin Bacon, Peter Sarsgaard, Jesse Plemons, Rory Cochrane, David Harbour, Adam Scott, Corey Stoll, Julianne Nicholson, Juno Temple. Estreia: 04/9/2015 (Festival de Veneza)

É difícil assistir a qualquer cena de "Aliança do crime" sem que o cinema de Martin Scorsese surja na memória do espectador. Não por sua qualidade (apenas razoável), mas porque, de uma forma ou outra, o cineasta nova-iorquino criou uma espécie de cânone em relação ao subgênero de filmes de gângster - ao menos aqueles menos épicos - do qual poucos diretores conseguem escapar. E, apesar da violência de sua trajetória e do número de vítimas que deixou em seu caminho, James "Whitey" Bulger - protagonista do filme de Scott Cooper - jamais poderia ser considerado um personagem glamoroso. Provavelmente o mais notável criminoso da história de South Boston (e irmão de um senador) foi beneficiado, durante anos, por um acordo com o FBI - que permitiu a ele expandir seus negócios escusos e aumentar sua lista de homicídios - e, em mãos ousadas como as de Scorsese poderia render uma pequena obra-prima (não por acaso há ecos de sua história em "Os infiltrados", vencedor do Oscar de 2007). Comandado por Scott Cooper, porém, o roteiro baseado no livro de Dick Lehr e Gerard O'Neill acabou esbarrando em uma direção quase apática - tão influenciada por outras produções semelhantes que acaba por tornar-se pouco memorável, apesar do caprichado trabalho de Johnny Depp no papel central.

Substituindo Guy Pearce - que abandonou o projeto - e dedicando a ele um cuidado que chegou a planejar um encontro (nunca realizado) com o verdadeiro Bulger, Depp impressionou os consultores do filme, antigos associados do criminoso, parte da imprensa especializada (que o indicou a um Critic's Choice Awards) e de seus colegas de ofício (que o fizeram concorrer a um prêmio do Sindicato de Atores). Seu desempenho é realmente potente, enfatizado por uma caracterização impecável, que inclui a maquiagem, o figurino e a expressão corporal que o afastam de boa parte dos personagens exóticos que marcam sua carreira: por incrível que pareça, apesar da monstruosidade de seus atos, Bugler encontra, no trabalho de seu protagonista, um tom que evita o maniqueísmo absoluto - algo que nem mesmo o roteiro morno consegue impedir. Em um elenco repleto de ótimos atores - dentre os quais Benedict Cumberbatch, Kevin Bacon, Jesse Plemons e Joel Edgerton - o normalmente exagerado Depp consegue destacar-se sem apelar para a caricatura e entrega sua melhor atuação desde "Donnie Brasco" (1997) - coincidentemente outro filme sobre um infiltrado na máfia. Desta vez do lado do crime, o ator preferido de Tim Burton deita e rola com seu personagem, mesmo que o ritmo imposto por Cooper - que dirigiu "Coração louco" (2009) e deu a Jeff Bridges seu merecido Oscar - seja contemplativo demais para uma produção do gênero.

 

Assim como em seu "Tudo por justiça" (2013), em que a ação transcorria em um ritmo próprio, sem pressa e concentrado mais em seus personagens do que na narrativa propriamente dita, Scott Cooper imprime a "Aliança do crime" uma pegada menos ágil e mais dramática. Ainda há violência - é um filme sobre gângsters, afinal de contas -, mas ela não se restringe apenas a tiros, sangue e agressões físicas: interessa mais ao cineasta o turbilhão emocional de seus personagens, afetados (ou não) pela tensão constante à sua volta. Bulger não é uma ilha, e cercado por familiares e associados, enreda a todos em sua rotina de fora da lei, desde a mulher, Lindsey Cyr (Dakota Johnson) - um relacionamento fadado a uma tragédia que envolve o filho pequeno - até o irmão, Billy (Benedict Cumberbatch), senador que põe a própria carreira em risco devido a seus laços de sangue. É, aliás, o relacionamento de Bulger com o agente do FBI John Connolly (Joel Edgerton em papel herdado de Tom Hardy) que empurra a trama: amigo de infância do temido bandido, Connolly convence seus superiores a fazer um acordo com ele, dando-lhe relativa liberdade de ação em troca de informações sobre a máfia local (um inimigo em comum). Aos poucos Bulger vai se tornando mais e mais poderoso - mas as coisas mudam quando um novo procurador é designado para a área. Disposto a não mais fechar os olhos para os crimes do gângster, Fred Whysack (Corey Stoll) dá início à derrocada de um império.

Mesmo que o ritmo de "Aliança do crime" fuja da agilidade esperada de um filme do gênero - especialmente quando o público já está devidamente acostumado à adrenalina de obras como "Os bons companheiros" (1990) -, o filme de Scott Cooper cumpre boa parte do que promete. O roteiro por vezes confunde com seu excesso de personagens e a edição repleta de flashbacks do experiente David Rosenbloom nem sempre dá conta de lidar com tanta informação, mas é inegável que a atuação hipnotizante de Johnny Depp e a trama em si (inacreditável por natureza) são elementos fortes o bastante para sustentar uma produção que tem o cuidado de recriar a Boston dos anos 1970 com precisão - aplausos também para o figurino caprichado de Kasia Walicka Maimone (que depois faria parceria com Steven Spielberg em "Ponte dos espiões", de 2015) e a trilha sonora, que inclui Rolling Stones, Fletwood Mac, Blondie e Ella Fitzgerald. No saldo final, "Aliança do crime" pode não ser uma obra-prima, mas oferece ao espectador um conjunto suficiente de elementos para mantê-lo diante da tela e aproveitar suas inúmeras qualidades.

quarta-feira

LOBO

 


LOBO (Wolf, 1994, Columbia Pictures, 125min) Direção: Mike Nichols. Roteiro: Jim Harrison, Wesley Strick. Fotografia: Giuseppe Rotunno. Montagem: Sam O'Steen. Música: Ennio Morricone. Figurino: Ann Roth. Direção de arte/cenários: Jim Dultz, Juliet Taylor/Linda DeScenna. Produção executiva: Robert Greenhut, Neil Machlis. Produção: Douglas Wick. Elenco: Jack Nicholson, Michelle Pfeiffer, James Spader, Christopher Plummer, Kate Nelligan, Richard Jenkins, David Hyde Pierce, Eileen Atkins, Ron Rifkin. Estreia: 17/6/94

Quando o ator Jack Nicholson e seu amigo e parceiro profissional, o roteirista Jim Harrison, tiveram a ideia de fazer um filme sobre lobisomens, jamais imaginaram que, apesar do prestígio do astro, ainda demorariam mais de uma década para vê-lo nas telas. Com algumas pequenas alterações na trama originalmente imaginada - o protagonista deixou de ser um advogado para virar um editor literário, por exemplo - e mudanças no elenco durante a fase de pré-produção - até mesmo Marlon Brando esteve envolvido com o projeto em determinado momento -, "Lobo" estreou no verão norte-americano de 1994 com grandes expectativas por parte do público e da Columbia Pictures, ávida por um sucesso de bilheteria mas temerosa devido a fracas exibições-teste, que adiaram seu lançamento por quase um ano. Dirigido pelo experiente Mike Nichols e com o objetivo de conquistar um público adulto e mais exigente - em tese o oposto das plateias que lotavam as salas para testemunharem banhos de sangue adolescente -, o filme acabou por decepcionar a todos: não apenas teve uma bilheteria doméstica morna (que nem chegou a cobrir seu orçamento de aproximadamente 70 milhões de dólares) como ficou aquém, em termos artísticos, ao que se poderia esperar da reunião de Jack e Mike - que, juntos, já haviam realizado "Ânsia de amar" (1971), O golpe do baú" (1976) e "A difícil arte de amar" (1986).

Sugerido para a direção por Jack Nicholson - que tinha direito à palavra final na escolha do nome para a condução do projeto -, Mike Nichols oferece a "Lobo" uma visão elegante e madura, realçada por um elenco de primeira linha e uma equipe técnica brilhante. Da fotografia impressionante do italiano Giuseppe Rotunno (colaborador frequente de Fellini e Visconti) à trilha sonora quase minimalista de Ennio Morricone (que substituiu John Williams devido ao atraso do cronograma de produção), tudo no filme respira classe. Sem apelar para a violência extrema (o que de certa forma decepcionou parte do público), Nichols conduz seu filme com um tom de seriedade muito bem-vindo - não à toa alguns temas citados por ele a respeito da obra (a morte de Deus, o declínio da civilização ocidental e até a epidemia da AIDS) são bastante densos e contrastam radicalmente da falta de conteúdo da maioria das produções do gênero. Tanta preocupação com subtextos, no entanto, não conseguem esconder o fato de que, a despeito de suas qualidades de produção, o filme de Nichols falha em sua principal missão: contar sua história de forma marcante - ou a menos com a força que se espera de uma produção de seu nível. O público fã do gênero tem muito a gostar, mas o resultado final não deixa de ser um tanto frustrante.

 

A trama criada por Jim Harrison - e reescrita por Wesley Strick, para desgosto do autor original - já começa em plena ação: o editor literário Will Randall (Jack Nicholson), em uma viagem de volta ao lar, atropela e é mordido por um lobo em plena noite de lua cheia. Ao mesmo tempo em que começa a perceber estranhas mudanças em seu organismo - a audição fica apurada, sua força física aumenta e o faro torna-se mais potente -, Randall vê sua vida entrar em franca decadência. Demitido por seu chefe, Raymond Alden (Christopher Plummer), abandonado pela esposa, Charlotte (Kate Nelligan), e traído por seu homem de confiança, Stewart Swinton (James Spader), Randall encontra apenas um consolo: a atração recíproca que sente pela bela filha de Alden, a voluntariosa Lauren (Michelle Pfeiffer). Conforme vai percebendo que o ataque do lobo pode tê-lo transformado em um lobisomem, o executivo aproveita as vantagens da situação ao mesmo tempo em que se preocupa com a possibilidade de ver sua nova natureza assumir um tom violento e irracional.

Dotado de uma narrativa convencional - mas com uma edição ágil o bastante para não aborrecer às plateias mais jovens -, "Lobo" apresenta qualidades quase redentoras, como a atuação habitualmente caprichada de Jack Nicholson, a beleza estonteante de Michelle Pfeiffer (em papel recusado por Sharon Stone e Annette Bening e que quase ficou com Mia Farrow, em meio à sua polêmica confusão com Woody Allen) e o roteiro que enfatiza o tom de suspense que acompanha o folclore em torno dos lobisomens. Não deixa de ser atípico ver um cineasta como Mike Nichols (mais acostumado com relações pessoais e crises sentimentais do que com efeitos visuais) no comando de uma obra tão comercial, mas seria ainda mais surpreendente se a primeira escolha do estúdio tivesse se mantido: ninguém menos que Stanley Kubrick foi sondado para a tarefa - e recusou, para surpresa de ninguém. É de se imaginar o que o britânico poderia ter feito com o material (não se pode esquecer que já havia dirigido Jack Nicholson em outro filme de terror, o infame "O iluminado", de 1980), mas certamente teria sido menos esquecível - para o bem ou para o mal.

FUGA À MEIA-NOITE

  FUGA À MEIA-NOITE (Midnight run, 1988, Universal Pictures, 126min) Direção: Martin Brest.Roteiro: George Gallo. Fotografia: Donald E. Th...