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O ASSALTO AO TREM PAGADOR

O ASSALTO AO TREM PAGADOR (O assalto ao trem pagador, 1962, Produções Cinematográficas Herbert Richers, 102min) Direção: Roberto Farias. Roteiro: Roberto Farias, estória de Alinor Azevedo, Luiz Carlos Barreto. Fotografia: Amleto Daissé. Montagem: Rafael Justo Valverde. Música: Remo Usai. Figurino: Zilma Fechó. Direção de arte: Alexandre Horvat, Pierino Massenzi. Produção executiva: Riva Farias. Produção: Roberto Farias, Herbert Richers. Elenco: Eliézer Gomes, Reginaldo Faria, Jorge Dória, Helena Ignez, Grande Otelo, Átila Iório, Ruth de Souza, Clementino Kelé, Chica Xavier, Luiza Maranhão, Dirce Migliaccio. Estreia: 1962


Quarenta anos antes que "Cidade de Deus" (2002) se tornasse o cartão de visitas do cinema brasileiro diante do mundo, outro filme que tinha a favela como cenário principal e anti-heróis negros e marginalizados como protagonistas conquistava a crítica ao redor do planeta. Exibido com sucesso no Festival de Veneza e posteriormente exportado para países como EUA, Canadá, Israel (além de parte da Europa e da América Latina), "O assalto ao trem pagador" surgiu no panorama do cinema nacional no mesmo ano de futuros clássicos - como "Os cafajestes", de Ruy Guerra, e "O pagador de promessas", de Anselmo Duarte - e estabeleceu, de imediato, uma mistura muito bem equilibrada entre as preocupações sociais do Cinema Novo e a linguagem comercial e popular de Hollywood. O resultado é até hoje impressionante: dirigido com maestria por Roberto Farias e dotado de uma urgência e um realismo palpáveis, é um filme digno de figurar entre as obras imprescindíveis da história do cinema - e mostra, para além de quaisquer dúvidas, de que a busca pela identidade de nossa filmografia sempre foi o caminho mais certeiro para o sucesso.

"O assalto ao trem pagador" é um encontro de talentos, reunidos em torno de um crime real, ocorrido em 1960 no interior do estado do Rio de Janeiro: com base na trama construída por Alinor Azevedo e pelo futuro produtor cinematográfico Luiz Carlos Barreto, o cineasta e produtor Roberto Farias ergueu um poderoso estudo sobre a ambição, a desigualdade social e a corrupção. Para isso, contou com a fotografia em preto-e-branco de Amleto Daissé, com a edição ágil e poderosa de Rafael Justo Valverde e com a trilha sonora contagiante de Remo Usai - aproveitando-se de sambas populares para servir de acompanhamento a uma partitura nervosa e eficiente, ela dá a ênfase necessária a cada cena, sem excessos ou virtuosismos desnecessários. Sem perder tempo com sequências supérfluas ou tempos mortos, o roteiro de Farias abrasileira o típico "filme de roubo" - um dos subgêneros mais apreciados por fãs de cinema - ao eleger como protagonistas tipos próximos à realidade nacional e bem distantes do tradicional galã (ou herói cômico). Tal opção, ao contrário de causar estranheza, conecta com muito mais fluidez público e filme - basta alguns minutos para que o espectador já esteja envolvido com a narrativa (e se deixe levar por ela, com indignação, tensão e surpresa nos momentos certos).



Desde sua primeira sequência, milimetricamente construída de forma a causar o máximo de suspense, até a última e poderosa cena - que sumariza exemplarmente as preocupações sociais do cinema brasileiro da década de 60 -, "O assalto ao trem pagador" é uma sucessão de grandes momentos. Mergulhando sem medo em um universo cujos conceitos de honra e ética são devidamente delineados conforme regras idiossincráticas e/ou impermeáveis a olhares externos, a câmera de Roberto Farias transita nervosamente pelas vielas da favela e pelas ruas sofisticadas da zona sul carioca, ligando os dois mundos (aparentemente antagônicos) através de um olhar ao mesmo tempo distante e íntimo, sutil e explícito, cínico e compassivo. A dualidade que atravessa o roteiro (em termos visuais  e psicológicos) é perceptível em cada nuance do resultado final. Evitando o maniqueísmo e a tentação tanto de glamorizar quanto de demonizar o crime, Farias atinge o espectador ao construir personagens críveis e complexos - seres humanos lidando com situações extremas e não apenas estereótipos baratos com o único objetivo de fazer funcionar a engrenagem da narrativa. Tão fascinante quanto a invejável técnica demonstrada pelo cineasta e a crítica social intrínseca à trama, a galeria de personagens criados pelo roteiro é o ponto alto do filme - assim como os atores escolhidos para lhes dar vida.

Em seu primeiro papel no cinema - mais tarde ele teria destaque em filmes como "Ganga Zumba" (63) e "Joana Francesa" (73) -, Eliézer Gomes dá vida ao apavorante Tião Medonho, líder de uma quadrilha que pratica o ousado crime do título. Juntamente com seus outros cinco companheiros de contravenção, ele decide gastar apenas dez por cento do valor roubado - como forma de não despertar suspeitas. Porém, o desejo de mudar rapidamente de vida e entregar-se aos prazeres do luxo acabam por provocar uma ruptura no grupo, especialmente quando Grilo Peru (Reginaldo Faria) passa a ostentar mais do que o combinado e acaba na mira de Medonho - que, por sua vez, passa a ser caçado obsessivamente pela polícia. Enquanto isso, na favela, os demais integrantes do bando se dividem entre a alegria de vislumbrar um futuro menos miserável e a paranoia de acabarem seus dias na cadeia - ou, pior ainda, mortos. E são justamente essas dicotomias (medo/prazer, presente/futuro, certo/errado, favela/zona sul) que elevam "O assalto ao trem pagador" a um nível acima de um mero filme policial. Contando sua história com precisão cirúrgica e emoção contida, Roberto Farias criou um espetáculo inesquecível e fundamental para a cultura brasileira, um precursor do que que viria a ser, quatro décadas mais tarde, um estilo admirado e cultuado mundo afora. Uma obra-prima!

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