UM HOMEM SÉRIO (A serious man, 2009, Focus Features, 106min) Direção e roteiro: Ethan Coen, Joel Coen. Fotografia: Roger Deakins. Montagem: Roderick Jaynes. Música: Carter Burwell. Figurino: Mary Zophres. Direção de arte/cenários: Jess Gonchor/Nancy Haigh. Produção executiva: Tim Bevan, Eric Fellner, Robert Graf. Produção: Ethan Coen, Joel Coen. Elenco: Michael Stuhlbarg, Richard Kind, Fred Melamed, Sari Lennick, Aaron Wolff, Jessica McManus, David Kang, Amy Landecker, Simon Helberg. Estreia: 12/9/09 (Festival de Toronto)
2 indicações ao Oscar: Melhor Filme, Roteiro Original
A princípio, "Um homem sério" pode parecer o mais simples dentre
os filmes dos irmãos Coen: é barato (custou cerca de míseros sete milhões de
dólares), não tem grandes astros em seu elenco (ao contrário de seu antecessor,
"Queime depois de ler", de 2008, e seu filme seguinte, "Bravura
indômita", de 2010), e sua temática é explicitamente restrita: como nunca
antes em sua brilhante filmografia, Joel e Ethan assumem sem medo sua origem
judaica e mergulham seu protagonista em um pesadelo kafkiano que flerta com
filosofia, religião e um humor intelectual dos mais inspirados.A aparente
simplicidade do filme, porém, esconde um trabalho de inteligência acima da
média - e se o público não comprou sua ideia, a crítica foi bastante generosa,
e até a Academia rendeu-se à sua ousadia, lhe indicando a duas importantes
categorias do Oscar: melhor filme e roteiro original. Perdeu ambas as
estatuetas para "Guerra ao terror" - mas demonstrou que, de vez em
quando, há espaço para a criatividade no tedioso universo dos filmes "oscarizáveis".
A trama de "Um homem sério" se passa em 1967, em um subúrbio de
Minneapolis, e tem como protagonista Larry Gopnick, um professor de física
judeu e ciente de suas obrigações e deveres morais e éticos. Sua vida em
família é razoavelmente comum, dividida entre as brigas com a filha, Sarah (Jessica McManus),
adolescente que sonha em fazer uma cirurgia plástica no nariz, a relação
distante com Danny (Aaron Wolff), o filho prestes a realizar seu bar-mitzvah e que
passa os dias chapado de maconha e os cuidados com o irmão, Arthur (Richard Kind), mentalmente
perturbado depois de um acidente que o fez perder a memória. Sua rotina começa
a virar do avesso quando sua esposa, Judith (Sari Lennick), anuncia que está apaixonada por
outro homem - e pede a ele que saia de casa para que eles possam se divorciar
dentro dos ritos judaicos. A partir daí, Larry entra em um turbilhão de
problemas, que vão desde uma chantagem feita pelo pai de um aluno em vias de
ser reprovado, cartas anônimas escritas para a diretoria de sua escola lhe
difamando, conflitos com o vizinho a respeito dos limites de suas propriedades
e a crise financeira oriunda da separação. Desesperado e sem alternativas
óbvias, Larry passa a questionar sua fé e busca ajuda com rabinos e estudiosos
- que, ele acredita, irão fazê-lo compreender a amplitude de sua situação.
Criado a partir de uma ideia isolada - Danny chapado em seu bar-mitzvah e
sua conversa com um rabino logo em seguida - e desenvolvido de forma a
preencher as lacunas que poderiam cercá-la, "Um homem sério" é brilhante
em diversas camadas. Como comédia religiosa é um achado - especialmente
junto ao público judeu, normalmente restrito aos filmes de Woody Allen,
cada vez menos dedicado ao tema. Como comédia em geral, é hilariante - o
protagonista, interpretado com brilhantismo por Michael Stuhlbarg, é
uma vítima involuntária de um destino (Deus/acaso) nitidamente sádico e o
tom surreal do mundo que o rodeia só encontra paralelos em outros
filmes dos irmãos Coen - como "O grande Lebowski" (2000) ou "Arizona
nunca mais" (87). Como discussão filosófica, é surpreendentemente
acessível à plateia - ainda que muitas referências possam passar
incólumes ao espectador médio, levanta questões interessantes (e o que é
melhor, evita dar respostas). Como cinema, é genial. Desde a fotografia
de Roger Deakins até a reconstituição de época (um meio-termo entre o
realismo e a fantasia criativa que é marca dos cineastas), tudo funciona
como um relógio, seja no panorama geral seja nos detalhes - e a opção
dos Coen em buscar um elenco de atores desconhecidos apenas reafirma sua
intenção de dar mais importância à trama do que a qualquer marketing
milionário (uma diferença crucial em tempos onde a criatividade
normalmente sucumbe a números e cifras): é impossível pensar em outro
protagonista que não Stuhlbarg, por exemplo - seu Larry Gopnick é um dos
melhores personagens já inventados pelos roteiristas, e seu desempenho
nunca está abaixo de exemplar.
Como uma espécie de Jó -
personagem bíblico testado por Deus através de uma série de desgraças
financeiras e familiares -, Larry Gopnick tenta manter a sanidade mental
diante de uma avassaladora sucessão de acontecimentos que se equilibram
entre o bizarro e o dramático. A resiliência do protagonista frente à
implosão da família, às incertezas profissionais e às dúvidas teológicas
é retratada com delicadeza e inteligência - impõe um distanciamento da
plateia em relação à trama, mas ao mesmo tempo a convida a um olhar de
empatia e compaixão com o personagem. Da primeira sequência - que dá uma
pequena mostra do que espera o público nas horas seguintes, ao contar
uma história sem solução aparente - até a cena final - a ameaça da
natureza frente ao drama pessoal que se desenrola até então -, tudo em
"Um homem sério" funciona à perfeição. Com o tempo, será devidamente
reconhecido como um dos melhores filmes dos irmãos Coen - uma referência
nada desprezível diante da filmografia frequentemente genial dos
realizadores. Uma pérola que poucos descobriram - mas que devem
descobrir e se deleitar.
Filmes, filmes e mais filmes. De todos os gêneros, países, épocas e níveis de qualidade. Afinal, a sétima arte não tem esse nome à toa.
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