HENRY & JUNE (Henry & June, 1990, Walrus & Associates, 136min) Direção: Philip Kaufman. Roteiro: Philip Kaufman, Rose Kaufman, livro de Anais Nin. Fotografia: Phillippe Rousselot. Montagem: Dede Allen, Vivien Hillgrove Gilliam, William S. Scharf. Figurino: Yvone Sassinot de Nesle. Direção de arte: Guy-Claude François. Produção: Peter Kaufman. Elenco: Maria de Medeiros, Fred Ward, Uma Thurman, Richard E. Grant, Kevin Spacey. Estreia: 05/10/90
Indicado ao Oscar de Fotografia
Em 1934, Henry Miller publicou "Trópico de câncer", um dos livros mais influentes da literatura norte-americana do século XX. Proibido nos países de língua inglesa até 1961 e acusado de pornografia e obscenidade, o romance, narrado em primeira pessoa, é hoje considerado uma obra-prima incontestável. Em "Henry & June", adaptação das memórias da escritora Anais Nin - que viveu um romance tanto com Miller quanto com sua esposa, June, durante o processo de escrita do livro - "Trópico de câncer" é uma personagem a mais em uma história de amor, sedução, literatura e mais importante que tudo, a história de uma mulher em busca de sua sexualidade.
Dirigido por Philip Kaufman - experiente em histórias calcadas no erotismo, haja visto "A insustentável leveza do ser" - com seu habitual bom-gosto, "Henry & June" é um filme americano com cara de europeu; é ousado, é elegante, é inteligente e acerta em dar ênfase mais em seu clima e em seu elenco bem-escalado do que nos escândalos que o tema poderia suscitar - e suscitou! Lançado em 1990, o filme causou polêmica ao receber um selo "X" do órgão censor americano, o que o colocava no mesmo patamar de filmes pornográficos. Desnecessário dizer que a decisão deflagrou um movimento de artistas, todos em prol do filme de Kaufman. A grita toda em torno do assunto obrigou a criação de um selo um pouco menos agressivo, que permitia que menores de 17 anos pudessem assistir ao filme, desde que acompanhados por pais ou responsáveis - uma classificação que persiste ainda hoje.
Mas afinal de contas, o que "Henry & June" tem que tanto incomodou os pruridos da melindrosa moral americana? Além da aura de maldito que a obra de Henry Miller ainda tem nos EUA, é inegável que o filme de Kaufman tem um alto teor erótico. Não faltam corpos nus nas mais de duas horas de filme, assim como também sua atmosfera sensual vibra de forma quase palpável. A Paris do início dos anos 30 é vista através da lente caprichada de Philippe Rousselot - que obteve uma merecida indicação ao Oscar por seu trabalho - com mulheres e homens em constante busca pelo prazer. A câmera de Kaufman vasculha bares do submundo, casas de tolerância e becos mal iluminados com a mesma familiaridade com que flutua entre paisagens sofisticadas, e a impecável reconstituição de época contribui para o efeito quase onírico das memórias de Anais, uma mulher normal - apesar dos interesses incomuns, como defender a obra de DH Lawrence em um livro - que tem sua vida transformada através do encontro com um escritor grosseiro e rude, bem diferente dos modos suaves de seu marido, um banqueiro que, apesar de amoroso, não lhe desperta os instintos mais, digamos assim, básicos.
Vivida pela expressiva atriz portuguesa Maria de Medeiros, Anais Nin é apresentada como alguém que busca emoções em sua vida e que, apesar de não se chocar com escritos ditos pornográficos, como "O amante de Lady Chatterley", vive uma vida cômoda e sexualmente quase tediosa com o marido (interpretado por Richard E. Grant). Ao conhecer Henry Miller, já um homem maduro e sem o verniz de uma boa educação (retratado com quase perfeição por Fred Ward, um ator subaproveitado em Hollywood) e posteriormente sua sedutora mulher June (Uma Thurman possivelmente na melhor atuação de sua carreira pré-Quentin Tarantino), Anais passa a transitar em um mundo onde o hedonismo e a literatura convivem lado a lado. Liberta das amarras que a prendiam em um casamento aparentemente feliz, ela incentiva a publicação do livro de Miller e de quebra escreve o seu próprio, também retratando a misteriosa June.
É irônico perceber como uma plateia acostumada a violências gratuitas e sexo totalmente desprovido de sutileza como a americana consegue ser tão tacanha em casos como o de "Henry & June". As cenas de sexo entre Maria de Medeiros e Uma Thurman - dirigidas com competência e sensibilidade - chocaram a audiência que dois anos depois lotaria sessões e mais sessões de "Instinto selvagem", onde Sharon Stone se atracava com homens e mulheres com a mesma energia, mas sem a mesma sutileza. Talvez "Henry & June" toque em pontos mais sensíveis e de maneira mais contundente, ainda que jamais seja desprovido de beleza plástica e delicadeza. É um filme a ser louvado pelo que pretendia ser e pelo que se tornou - um libelo a favor da liberdade sexual e de expressão.
Filmes, filmes e mais filmes. De todos os gêneros, países, épocas e níveis de qualidade. Afinal, a sétima arte não tem esse nome à toa.
sexta-feira
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