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MUNDO CÃO

MUNDO CÃO (Mundo cão, 2016, Zencrane Filmes/Globo Filmes, 101min) Direção: Marcos Jorge. Roteiro: Marcos Jorge, Lusa Silvestre. Fotografia: Toca Seabra. Montagem: André Finotti. Figurino: Cássio Brasil. Direção de arte/cenários: Valdy Lopes. Produção executiva: Cláudia da Natividade, Rune Tavares, Rodrigo Sarti Werthein. Produção: Iafa Britz. Elenco: Lázaro Ramos, Babu Santana, Adriana Esteves, Milhem Cortaz, Thainá Duarte, Vini Carvalho, Paulinho Serra. Estreia: 17/3/16

Dividido entre o sucesso comercial de comédias populares - normalmente de qualidade abaixo da média - e filmes com temática policial, o cinema nacional volta e meia tenta dar alguns passos em direção a outros gêneros e enfoques, nem sempre com muito êxito. Um dos exemplos positivos dessa constante busca por novos ares é "Mundo cão", um suspense urbano que tira proveito dos altos índices de intolerância e violência das cidades grandes para mergulhar o público em um pesadelo realista e perturbador. Seguindo a mesma linha do sensacional "O lobo atrás da porta", de Fernando Coimbra, o cineasta Marcos Jorge - que tem no currículo o elogiado "Estômago" (2007) - constrói sua trama dentro de uma realidade plausível e facilmente reconhecível pela plateia, transformando a segurança do lar e da família em um ambiente de medo e angústia. Pode não atingir o mesmo nível de desconforto, mas surpreende pela brutalidade psicológica e pela coragem de eleger como protagonista um cidadão comum e desprovido de qualquer tipo de heroísmo. É a vida real transposta para a tela, ainda que envernizada pela força da ficção e da linguagem cinematográfica.

O cenário é a São Paulo de 2007, antes da extinção da lei que permitia o sacrifício de animais abandonados. O protagonista é Santana (Babu Santana), que trabalha no Departamento de Combate às Zoonoses, recolhendo cães perigosos pelas ruas da cidade ao lado do colega, Ramiro (Paulinho Serra). Bom marido, pai dedicado e homem religioso, Santana nem imagina que toda a sua estrutura doméstica pode vir abaixo quando é chamado à uma escola por conta de um animal raivoso que está assustando as crianças. Trabalhando conforme a lei, os dois colegas levam o cachorro para o Centro, onde esperam o prazo de três dias antes que profissionais especializados o sacrifiquem. Quando o dono do animal aparece é que a coisa complica: Nenê (Lázaro Ramos) é um ex-presidiário, agressivo e explosivo, cuja renda vem parcialmente de rinhas entre cães - e, inconsolável com a perda de um de seus maiores campeões, resolve vingar sua morte. Quem acaba sendo escolhido como alvo para tal retaliação é justamente Santana, que parte em defesa própria no meio de uma discussão e deflagra uma guerra interna com resultados imprevisíveis.


A batalha que se segue - com a vingança de Nenê e a posterior revanche de Santana - é digna dos mais empolgantes filmes de suspense americanos. O roteiro não para de levar o espectador a caminhos os mais diversos, nunca deixando antever os próximos passos de seus personagens. Como um reflexo da irracionalidade animal, suas atitudes partem sempre em direção a consequências mais e mais violentas e incontroláveis, que atingem a todos que os cercam. É assim que Santana, pacífico pai de família, abandona a civilidade quando o que considerava sua maior fortaleza - seu lar em um subúrbio tranquilo - é maculado pela intensidade do ódio. Ao perceber que nem sua mulher, Dilza (Adriana Esteves, ótima), nem seus dois filhos - a adolescente Isaura (Thainá Duarte) e o menino João (Vini Carvalho) - estão a salvo da impetuosidade cruel de Nenê, ele deixa de lado todo e qualquer resquício de humanidade para tornar-se alguém capaz de defender o que lhe resta de dignidade e paz. Esse paradoxo é o grande trunfo do filme de Marcos Jorge: a violência como forma de recuperar a paz.

Com uma direção seca e pontual, que destaca as atuações viscerais de Babu Santana e Lázaro Ramos - o primeiro a quilômetros de distância do Tim Maia que lhe revelou ao grande público e o segundo com um registro de vilão construído em detalhes - "Mundo cão" é um artigo raro dentro da produção de cinema brasileiro. Apostando em um gênero ainda pouco explorado mas repleto de possibilidades, Marcos Jorge oferece ao público uma história forte, sustentada por atores competentes e uma tensão constante, que vai sendo ampliada conforme se percebe todos os seus desdobramentos. Ainda que em algum momento perto do desfecho o ritmo caia um pouco - até como forma de preparar o clímax, irônico e cruel - a edição se equilibra entre a agilidade necessária a um filme com ambições comerciais e a suavidade de uma obra que procura dialogar com discussões mais sérias do que simplesmente jogar nas telas uma sucessão de tragédias. Se sai bem na maior parte do tempo, envolvendo a plateia em sua rede desde as primeiras cenas, e só não é ainda melhor por estender-se demais no terceiro ato. Um pecado menor em um filme que está bem acima da média da produção comercial brasileira.

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