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PERDIDOS NA NOITE


PERDIDOS NA NOITE (Midnight cowboy, 1969, United Artists, 113min) Direção: John Schlesinger. Roteiro: Waldo Salt, baseado no romance de James Leo Herlihy. Fotografia: Adam Holender. Montagem: Hugh A. Robertson. Música: John Barry. Figurino: Ann Roth. Direção de arte / Cenários: John Robert Lloyd / Phil Smith. Produção: Jerome Hellman. Elenco: Dustin Hoffman, Jon Voight, Brenda Vaccaro, Bob Balaban, Sylvia Miles. Estreia: 25/5/69

7 indicações ao Oscar: Melhor Filme, Diretor (John Schlesinger), Ator (Dustin Hoffman, Jon Voight), Atriz Coadjuvante (Sylvia Miles), Roteiro Adaptado, Montagem
Vencedor de 3 Oscar: Melhor Filme, Diretor (John Schlesinger), Roteiro Adaptado
Vencedor do Golden Globe de Most Promising Newcomer/Male (Jon Voight)


De vez em quando - muito de vez em quando - a Academia de Hollywood consegue surpreender os fãs do bom cinema, premiando obras que fogem dos insossos padrões épico-familiares e ousam transgredir - seja em formato, temática ou estética. Uma dessas ocasiões aconteceu na festa de entrega do Oscar de 1970, quando um filme que fugia do belo, do terno e do heróico levou a estatueta principal - e ainda arrebatou os prêmios de direção e roteiro adaptado. Não bastasse essa quase afronta ao status quo cinematográfico, "Perdidos na noite" ainda por cima era uma produção que havia levado, do órgão responsável pela censura nos filmes, uma classificação X - normalmente aplicada a produções pornográficas - e tornou-se, até hoje, o único filme com esse selo limitatório a ter no currículo um Oscar de Melhor Filme.

Motivos para isso não faltaram. Baseado em um romance de James Leo Herlihy, "Perdidos na noite" é um petardo emocional e visual bastante perturbador ainda hoje, mais de quarenta anos depois de seu lançamento. Ao abandonar a visão romantizada de Nova York - coisa que Martin Scorsese faria admiravelmente bem poucos anos depois, em "Taxi driver" - o cineasta inglês Joe Schlesinger penetra nos meandros neuróticos e degradantes da cidade que nunca dorme, utilizando um visual semi-documental para testemunhar uma triste e chocante história de perda de inocência. No entanto, ao contrário de outros filmes que também narram a travessia entre a infância e a idade adulta de forma nostálgica, Schlesinger não poupa seu espectador nem tampouco o trata com condescendência. E a perda da inocência aqui não acontece a uma criança que vê a aurora de sua vida acabar drasticamente e sim a um jovem adulto que sonha ganhar a vida se prostituindo. Paradoxo? Talvez. Mas seu protagonista, Joe Buck, não é exatamente alguém comum, sendo uma das personagens mais multidimensionais do cinema americano dos anos 60.


Vivido por Jon Voight (que ficou com o papel que foi oferecido a Lee Majors e cobiçado por Warren Beatty), Joe Buck é um lavador de pratos da pequena cidade do interior do Texas que abandona o emprego e a vida sem graça que levava para viver em NY às custas de mulheres ricas que, em sua mente, não conseguirão resistir a seu charme e sex-appeal. Com sua roupa de cowboy e suas expectativas nas alturas, logo ele percebe que as coisas não sairão exatamente como o planejado. Depois de frustradas tentativas de arrumar dinheiro graças a seu corpo - em relações com uma socialite e um jovem homossexual com o qual mantém um encontro em um cinema - ele conhece Ratso (Dustin Hoffman), um cínico e amoral indigente, que vive de expedientes escusos. Manco, sem moradia fixa - a não ser um prédio abandonado e insalubre - e com menos caráter do que dinheiro, Ratso logo vê em Joe - que tem o físico que ele não tem - a chance de sair da miséria. Quando finalmente os dois vislumbram um futuro promissor - dentro de sua mentalidade distorcida, logicamente - a saúde precária de Ratso começa a ficar ainda mais comprometida e Buck se vê obrigado a ultrapassar todos os seus limites de integridade para mantê-lo vivo.


Na pele de Ratso, Dustin Hoffman entrega uma das mais fascinantes atuações de sua carreira. Fisicamente grotesco e moralmente desagradável, sua personagem é a antítese do frescor louro e juvenil de Voight, tanto visualmente quanto em termos de personalidade. Apesar de seu histórico de violência e abuso sexual - vistos pelo público em doses homeopáticas e alucinantes dentro da complexa edição - e de seu desejo em vencer na vida de forma pouco convencional, Buck ainda mantém uma certa aura de inocência pueril há muito perdida por Ratso, acostumado que este está em sobreviver em uma cidade hostil e pouco amistosa com as classes menos favorecidas. De certa forma, Ratso é o cérebro de Buck, que é o corpo de Ratso e esse é o principal motivo pelo qual sua relação soa tão verdadeira e honesta junto à audiência. O afeto que os une é legítimo, mesmo que oriundo principalmente da solidão que ambos sentem. Joe Buck sabe que é limitado intelectualmente, mas não desconfia do tamanho da sua ingenuidade até que toma contato com a dura realidade das ruas da grande metrópole - fotografadas com precisão e nervosia por Adam Holender. Ratso é carente, não apenas materialmente, mas principalmente de amor, e só percebe isso com clareza quando sente a verdadeira amizade de Buck.

"Perdidos na noite" é um filme sensacional! Mesmo que o roteiro utilize-se da estrutura convencional do melodrama - o que permite uma catarse emocional discreta mas coerente com o espírito da obra -, ele foge bravamente do corriqueiro, não permitindo ao público escapar da crueza que pretende demonstrar. É um filme com a cara de sua época - com a revolução sexual em seu auge, o uso de drogas correndo livremente, o hedonismo tornando-se quase uma religião - mas que mantém-se lúcido, verdadeiro e importante!

2 comentários:

Richard Mathenhauer disse...

Olá!
Li o livro na adolescência quando ganhei no despojo de um conhecido de falecera. Mas não sabia que havia o filme!

Muito bom seu comentário!
Grande abraço,

aionr disse...

Esse eu ainda não tive a oportunidade de assitir :)
quero ver

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