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MARCAS DA VIOLÊNCIA

MARCAS DA VIOLÊNCIA (A history of violence, 2005, New Line Cinema, 98min) Direção: David Cronenberg. Roteiro: Josh Olson, graphic novel de John Wagner, Vince Locke. Fotografia: Peter Suchitzky. Montagem: Ronald Sanders. Música: Howard Shore. Figurino: Denise Cronenberg. Direção de arte/cenários: Carol Spier/Peter P. Nikolakakos. Produção executiva: Ken Alterman, Cale Boyter, Josh Braun, Toby Emmerich, Justis Greene, Roger E. Kass. Produção: Chris Bender, J.C. Spink. Elenco: Viggo Mortensen, Maria Bello, Ed Harris, William Hurt, Ashton Holmes, Peter MacNeill. Estreia: 16/5/05 (Festival de Cannes)

2 indicações ao Oscar: Ator Coadjuvante (William Hurt), Roteiro Adaptado

A princípio parece estranho que o nome de David Cronenberg esteja nos créditos de abertura do filme "Marcas da violência", afinal o cineasta canadense sempre privilegiou, em sua filmografia, histórias que se distanciassem do banal - a não ser que alguém considere convencionais obras como "A mosca" (86), "Gêmeos, mórbida semelhança" (88), "Mistérios e paixões" (93), "Crash, estranhos prazeres" (96) e "Spider, desafie sua mente" (02), só para citar alguns. O estranhamento, porém, fica apenas na superfície: apesar da narrativa linear e clássica, a adaptação da graphic novel de John Wagner e Vince Locke tem, em seu âmago, um tema caro ao diretor: uma crise de identidade capaz de transformar uma vida pacata e normal em um turbilhão de violência e sangue. O fato de tal crise se passar em um ambiente doméstico, distante de laboratórios, clínicas de cirurgia plástica ou instituições psiquiátricas, portanto, apenas amplia o desconforto e a tensão geradas por uma história simples, mas contada com o talento visceral de um dos mais corajosos cineastas de sua geração em um encontro mais do que feliz com um ator que se tornaria um parceiro fiel: Viggo Mortensen.

Ficando com o papel recusado por Thomas Jane e Harrison Ford (em uma escalação que soaria um tanto esquisita devido à sua idade inadequada), Mortensen tem uma das melhores atuações de sua carreira na pele do tranquilo e caseiro Tom Stall, feliz proprietário de uma lanchonete em uma pequena cidade de Indiana que tem sua vida virada pelo avesso quando, ao defender uma funcionária durante um assalto, mata os dois criminosos com técnica e disposição surpreendentes. Tornado ídolo dos moradores da cidade e pauta de telejornais por todo o país, ele é procurado por um misterioso homem chamado Carl Fogarty (Ed Harris), que, deformado por uma cicatriz no lado esquerdo do rosto, insiste em chamá-lo de Joey. Cercando e ameaçando a família de Tom - a esposa Edie (Maria Bello), o filho adolescente Jack (Ashton Holmes) e a pequena Sarah (Heidi Hayes) - Fogarty acaba despertando um lado obscuro no sereno e dedicado comerciante, que se vê obrigado a enfrentar seu passado escondido de todos (e que envolve a máfia irlandesa e seu próprio irmão, o sinistro Richie Cusack, interpretado por um William Hurt indicado ao Oscar de coadjuvante por menos de dez minutos em cena).


Apesar do tema comum à obra de Cronenberg, é inegável que "Marcas da violência" é um produto atípico em sua trajetória. Narrado de forma quase clássica e prescindindo de artifícios visuais além daqueles necessários a sublinhar a violência bastante gráfica de algumas sequências, o filme mergulha o espectador em um universo onde a tensão é constante e cada silêncio deixa revelar contornos assustadores a respeito do protagonista, cuja verdadeira personalidade vai sendo descoberta aos poucos - tanto pelo público quanto por sua atônita esposa, interpretada por Maria Bello também em um momento inspirado da carreira e protagonista de duas tórridas cenas de sexo que deram muito o que falar e que inteligentemente marcam a ruptura psicológica de Tom, que passa de marido romântico e carinhoso a um interessante contraponto violento e viril. Essa ruptura também é perceptível no ritmo da narrativa, que começa sossegadamente mostrando o cotidiano quase monótono da vida familiar até explodir em um inesperado banho de sangue que passa a ditar o tom da segunda metade do filme - um tom que a primeira cena já deixava antever, ainda que com uma certa sutileza que vai se esvaecendo no decorrer da trama.

Saindo de sua zona de conforto como diretor, David Cronenberg acaba por entregar um excelente drama policial, repleto de cenas de grande impacto visual e emocional e com uma história sólida o bastante para não deixar que se apoie somente em tais sequências. Ao mesmo tempo em que desenvolve uma trama com início, meio e fim bem definidos, o roteiro - também indicado ao Oscar, que perdeu para "O segredo de Brokeback Mountain" - questiona, de forma inteligente, de que forma a genética pode influenciar uma personalidade, quando põe em jogo os problemas do filho adolescente de Tom, que, sofrendo bullying na escola, vê na atitude corajosa do pai uma maneira de resolver suas questões e acaba se envolvendo muito mais do que o esperado e desejado no mundo de violência do qual sua família estava a salvo até então. Esse subtexto dramático - forte e adequado - dá ainda mais consistência à "Marcas da violência", um dos grandes filmes da temporada 2005.

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