sexta-feira

CAFARNAUM

CAFARNAUM (Capharnaun, 2018, Mooz Films/Cedrus Invest Bank/Sunnyland Film, 126min) Direção: Nadine Labaki. Roteiro: Nadine Labaki, Jihad Hojeily, Michelle Keserwany, colaboração de Georges Khabbaz, Khaled Mouzanar. Fotografia: Christopher Aoun. Montagem: Konstantin Bock, Laure Gardette. Música: Khaled Mouzanar. Direção de arte: Houssein Baydoun. Produção executiva: Candice Abela, Ray Barakat, Joslyn Barnes, Danny Glover, Jason Kliot, Chady Eli Mattar, Fouad Mikati, Ayla Rizk, Samer Rizk, Susan Rockefeller, Akram Safa, Wissam Smayra, Sylvio Sharif Tabet, Joana Vicente. Produção: Michel Merkt, Khaled Mouzanar. Elenco: Zain Al Rafeea, Yordanos Shiferaw, Boluwatife Treasure Bankole, Kawsar Al Haddad, Fadi Kamel Yousef, Haita 'Cedra' Izzam, Nour El Husseini, Alaa Chouchnieh. Estreia: 17/5/18 (Festival de Cannes)

Indicado ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro
Vencedor do Prêmio do Júri do Festival de Cannes 

Alguns filmes conquistam pelo cérebro, pela inteligência de sua narrativa e sua relevância social e/ou política. Outros cativam pelo coração, seduzindo o espectador através da emoção mais primária. Alguns filmes transmitem sua mensagem pelo caminho da indignação. Outros se comunicam pela empatia. Porém, quando o mesmo filme consegue a façanha de estarrecer e apaixonar a plateia tanto por seus méritos técnicos quanto por sua paixão, o resuultado é algo como "Cafarnaum". Ovacionado por 15 minutos no Festival de Cannes de 2018 - de onde saiu com o Prêmio do Júri - e indicado ao Oscar de melhor filme estrangeiro do ano, o terceiro longa da cineasta libanesa Nadine Labaki é um soco no estômago. Triste, revoltante, chocante e extremamente realista em retratar um universo desprovido de esperança, é, também, um filme extraordinariamente bem realizado, com um equilíbrio perfeito entre denúncia social e ficção.

Tudo bem que a ficção de "Cafarnaum" é dolorosamente próxima da realidade, mas Labaki tem a inteligência de utilizar-se de todas as histórias que ouviu em sua pesquisa para o filme em prol de uma narrativa que, mais do que apenas emocionar, também apresenta ao público personagens cativantes e construídos de forma a fugir de estereótipos baratos. Por mais que, a princípio, seja fácil discernir vilões e mocinhos, aos poucos o roteiro vai quebrando os próprios paradigmas, oferecendo até mesmo àqueles que antes pareciam mais vis, um lado humano frequentemente ofuscado pelas circunstâncias. É assim que, apesar de parecer previsível, a trama vai se expandindo cada vez mais, impondo armadilhas a seu protagonista e cruzando seu caminho com personagens que tanto podem lhe ser aliados quanto inimigos. Esse tom de constante paranoia, de uma sensação quase palpável de uma tragédia por vir é mérito da fascinante sequência de abertura, já chocante, em que um menino de 12 anos (mas que aparenta ainda menos) surge algemado diante do espectador e confessa, sem nenhum tipo de remorso, que esfaqueou um homem - para logo em seguida dizer que quer processar os pais por o terem deixado nascer. É um baque para o público, mas é apenas o começo de uma história de dor, violência, tristeza e miséria - mas que também é capaz de enternecer e fazer sorrir quando menos se espera.


O personagem central, Zain (interpretado com garra e encanto por Zain Al Rafeea, um refugiado sírio também na vida real), é fascinante. Acostumado a uma vida de subterfúgios que a numerosa família leva para conseguir sobreviver em um subúrbio de Beirute, ele é precocemente amadurecido a ponto de aconselhar a irmã a esconder a recente menstruação - para evitar que ela seja cedida a um empresário local como pagamento do aluguel. Quando seu plano de protegê-la não funciona, Zain foge de casa e se aproveita de sua experiência de rua para arrumar comida (pouca) e trabalho (quase nenhum). É então que se aproxima de Rahil (Yordanos Shiferaw), uma mãe solteira etíope que, trabalhando com documentos falsos, esconde seu bebê dos patrões e vive praticamente clandestina. Surge um afeto genuíno entre os dois, e Rahil confia em Zain o suficiente para deixá-lo tomando conta de seu pequeno Yonas - mas as coisas não saem conforme eles esperavam, e a mão cruel do destino acaba os obrigando a tomar atitudes desesperadas. Revelar tudo que vem pela frente é privar o espectador de ser surpreendido e tocado a cada cena - mas pode-se dizer, sem medo, que a trajetória de Zain e Yonas é de arrancar lágrimas e causar revolta em qualquer um com o mínimo de sensibilidade.

Utilizando-se de um extenso material que poderia resultar em um filme de 12 horas de duração, Nadine Labaki mostra, em "Cafarnaum", um domínio invejável de ritmo e técnica narrativa. Primeiro, ela aguça a curiosidade do público com um prólogo instigante, e depois vai contando sua história sem pressa, sempre deixando no ar algumas dúvidas que só serão resolvidas no desfecho. Até lá, preenche seu tempo com cenas já antológicas, fortalecendo a relação entre seus personagens, sublinhando suas personalidades e tocando o coração da plateia com momentos de grande beleza emocional. Labaki inclusive foge da armadilha de embelezar a feiura das ruas e dos subúrbios mais pobres de Beirute, evitando glamorizar a miséria ou inventar milagres de última hora. Sem poupar o público, ela expõe o coração e as vísceras de uma sociedade multicultural que nem sempre sabe lidar com as diferenças - e que, às vezes, as explora com crueldade e ganância. A edição - que tomou dois anos da vida da cineasta - é mágica, e extrai de cada cena o melhor sorriso, a melhor lágrima, os mais encantadores detalhes de uma viagem que, embora de uma tristeza pungente, é capaz de revelar, em seu mais íntimo, a pureza e a sinceridade de uma criança. Uma obra-prima incontestável e um clássico instantâneo!

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