quinta-feira

CORRA!

CORRA! (Get out, 2017, Universal Pictures/Blum House Pictures, 104min) Direção e roteiro: Jordan Peele. Fotografia: Toby Oliver. Montagem: Gregory Plotkin. Música: Michael Abels. Figurino: Nadine Haders. Direção de arte/cenários: Rusty Smith/Leonard R. Spears. Produção executiva: Raymond Mansfield, Shaun Redick, Couper Samuelson, Jeanette Volturno. Produção: Jason Blum, Edward H. Hamm Jr., Sean McKittrick, Jordan Peele. Elenco: Daniel Kaluuya, Allison Williams, Bradley Whitford, Catherine Keener, Caleb Landry Jones, Marcus Henderson, Betty Gabriel. Estreia: 23/01/17 (Festival de Sundance)

4 indicações ao Oscar: Melhor Filme, Diretor (Jordan Peele), Ator (Daniel Kaluuya), Roteiro Original
Vencedor do Oscar de Roteiro Original 

Primeiro foi o sucesso comercial: realizado com meros 4,5 milhões de dólares, ele arrecadou mais de 250 milhões pelo mundo. Depois, veio o aplauso da crítica, que o colocou como o mais bem avaliado filme de 2017 no confiável site Rotten Tomatoes. E por fim, a consagração da própria indústria, quando, das quatro importantes indicações ao Oscar (incluindo filme e direção), saiu da cerimônia de premiação com a estatueta de roteiro original. Para um filme de gênero considerado "menor" e lançado quase um ano antes de sua vitória junto à Academia, "Corra!" saiu-se muito melhor do que se poderia esperar, principalmente se for levado em consideração que algumas de suas características não são exatamente comuns aos grandes sucessos de bilheteria e prêmios. Filme de estreia do afro-americano Jordan Peele, conhecido nos EUA por seus trabalhos cômicos, estrelado por um ator negro (Daniel Kaluuya, indicado ao Oscar por seu desempenho) e de um gênero que pouco frequenta listas de indicados e/ou vencedores de grandes premiações (o suspense), "Corra!" pode ser considerado, sem favor algum, um fenômeno. De sua estreia no Festival de Sundance, em janeiro de 2017, até seu Oscar, mais de um ano depois, o filme foi quebrando recordes, paradigmas e preconceitos, chegando ao final de sua carreira nos cinemas como uma unanimidade. O melhor de tudo, porém, é que, deixando-se de lado o hype e o marketing, o filme de Peele continua extraordinário, não perdendo seu frescor e sua inteligência mesmo quando revisto - dessa vez sem as surpresas de uma primeira sessão, mas com a possibilidade de perceber cada detalhe imaginado pela mente de Peele.

Estranhamente relegado à categoria "comédia/musical" pelos eleitores do Golden Globe, "Corra!" até pode ser visto como uma sátira hiperbólica aos filmes de horror - normalmente estrelados por atores brancos e recheados de clichês. Porém, em uma visão mais abrangente, o filme de Jordan Peele é não apenas um filme de suspense arrebatador, mas também uma aberta crítica social ao racismo velado da sociedade norte-americana, ainda que em tons surrealistas. Escrito pelo cineasta antes que o movimento "Black Lives Matter" voltasse a ser assunto do momento nos EUA, o roteiro de "Corra!" não evita os elementos mais básicos do cinema de terror, mas os recicla de forma esperta e atual, inserindo em sua trama discussões bastante sérias a respeito da forma como os negros são vistos pelos brancos. A princípio de maneira sutil e aos poucos mais abertamente, a narrativa vai deixando claro ao espectador que a história que está sendo contada diante de seus olhos não é somente a trajetória de um homem acossado pela família da namorada, mas também a angústia de toda uma raça frente a séculos de preconceito e violência. Parece sério demais para um filme com ambições comerciais e que quase foi estrelado por Eddie Murphy, certo? Mas acontece que um dos maiores méritos de "Corra!" é justamente este: falar de um tema absolutamente crucial sem que pareça estar levantando bandeiras ou forjando discursos inflamados.


Filmado em apenas 23 dias, "Corra!" é uma prova (mais uma) de que talento é muito mais importante do que orçamentos generosos. Sem astros de primeira grandeza no elenco e efeitos visuais discretos e inseridos objetivamente, o filme é calcado basicamente no roteiro (em boa parte improvisado pelos atores) e no clima de tensão construído por Peele de forma gradativa e sufocante. No começo, tudo parece apenas estranho e incômodo, quando o protagonista, Chris Washington (Daniel Kaluuya), um jovem fotógrafo, chega até a elegante propriedade dos pais de sua namorada, Rose Armitage (Allison Williams), onde irá passar o fim-de-semana. Apesar de muito bem recebido pelos Armitage, que fazem questão de declarar sua naturalidade em relação ao fato da filha branca namorar um rapaz negro, Chris não consegue ficar completamente à vontade, especialmente por perceber nos empregados da mansão (todos negros) um comportamento bastante perturbador. A situação fica ainda mais bizarra quando ele é hipnotizado pela sogra, Missy (Catherine Keener), e passa a ter certeza de que há algo de muito perigoso acontecendo à sua volta.

Jordan Peele conduz sua trama de maneira a apresentar seus elementos e reviravoltas ao mesmo tempo para Chris e para o espectador, construindo, assim, uma tensão que vai se avolumando até o final, climático e violento. Mesmo o alívio cômico do filme, na figura de Rod (Lil Rel Howery), melhor amigo de Chris, não chega a evitar a sensação de desconforto que o filme transmite desde o princípio. Mérito também da trilha sonora impecável de Michael Abels, do desenho de som instigante, e da interpretação exata de todo o elenco - que inclui Bradley Whitford como Dan, o pai de Rose, um neurocirurgião de fundamental importância para o desfecho da narrativa. O roteiro, igualmente preciso em liberar informações frequentes que só irão fazer completo sentido no final, lembra a série "Além da imaginação" - não por coincidência, Peele assumiu a apresentação de uma nova temporada da série, lançada em 2019. E se o público compra a ideia central da trama, é necessário que a interpretação visceral de Daniel Kaluuya seja considerada fator preponderante para tal: na pele de Chris Washington, o jovem ator simplesmente domina a cena, entregando uma performance corajosa e surpreendente, aliando carisma e talento com garra de veterano. É graças a ele que o suspense funciona e que a plateia chega ao final da sessão com a ótima sensação de ter sido tragada por uma história forte e emocionante - e que, de quebra, ainda faz pensar e suscita discussões importantes. De quantos filmes se pode falar isso ultimamente?

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