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CAPITÃO FANTÁSTICO

CAPITÃO FANTÁSTICO (Captain Fantastic, 2016, Bleeker Street/ShivHands Pictures, 118min) Direção e roteiro: Matt Ross. Fotografia: Stéphane Fontaine. Montagem: Joseph Krings. Música: Alex Somers. Figurino: Courtney Hoffman. Direção de arte/cenários: Russell Barnes/Tania Cupczack, Susan Magestro. Produção executiva: Declan Baldwin, Nimitt Mankad. Produção: Lynette Howell Taylor, Monica Levinson, Jamie Patricof, Shivani Rawat. Elenco: Viggo Mortensen, George McKay, Frank Langella, Ann Dowd, Kathryn Hahn, Samantha Isler, Annalise Basso, Nicholas Hamilton, Missy Pile, Steve Zahn. Estreia: 23/01/16 (Festival de Sundance)

Indicado ao Oscar de Melhor Ator (Viggo Mortensen)

Ben Cash cria seus seis filhos longe de qualquer influência de um mundo capitalista a que ele considera pernicioso e fascista. Educados pelos pais, que lhe indicam leituras, os ensinam a caçar e preparar o próprio alimento, a discutir qualquer assunto com segurança e desafiar o sistema sempre que possível, Cash mora com a família em um ônibus, no meio de uma floresta, e dentre suas excentricidades, está comemorar o dia de Noam Chomsky ao invés do Natal e, ocasionalmente, roubar comida dos supermercados como forma de protesto e autopreservação. A prole - dividida entre adolescentes e crianças - segue uma rígida rotina de exercícios físicos, atividades intelectuais e alimentação saudável, sobrevivendo à margem da sociedade de consumo condenada por seu patriarca, e sua união aponta para um núcleo familiar sadio e feliz. Porém, quando Leslie, a mulher de Ben, sofre uma séria crise nervosa e precisa voltar a conviver com os pais e a irmã, ele se vê obrigado a introduzir os meninos em um universo do qual ele sempre os quis proteger e afastar - e testemunha um inevitável choque cultural.

Em "Capitão Fantástico", segundo longa-metragem dirigido pelo também ator Matt Ross, o ousado Ben Cash é interpretado por Viggo Mortensen, em um trabalho inspiradíssimo que lhe rendeu uma indicação ao Oscar de melhor ator. Na pele de um homem que busca incansavelmente uma sociedade mais justa ao orientar seus próprios filhos a seguirem uma conduta mais próxima da natureza e dos valores humanistas, Mortensen parece ter encontrado o papel de sua vida: é difícil vê-lo em cena e não acreditar em cada um de seus diálogos, de seus sentimentos, de suas atitudes. Em um mundo cada vez mais egocêntrico e avassaladoramente competitivo, seu personagem é um sopro de verdade e resistência, ainda que nem sempre seus métodos possam ser considerados louváveis. É irresistível pensar que Ben está coberto de razão em distanciar sua prole de um mundo doente - mas será que não é sua função de pai lhes dar o direito de escolha? E por que as crianças são educadas dentro de suas convicções, sem chance de discordância? E não é possível que a doença de sua mulher seja consequência de uma vida aparentemente saudável mas alternativa a ponto do segregacionismo e isolamento social? Mortensen dá vida à Ben com sensibilidade e maturidade, e o roteiro de Ross abre espaço para discussões bastante interessantes, e acerta ao jamais abandonar seu principal objetivo: entreter o público com uma trama delicada, emocionante e por vezes bastante engraçada.


Logo nas primeiras cenas, Matt Ross deixa claro que o dia-a-dia da família Cash não é dos mais tediosos: a disciplina que exige dos filhos não é apenas cultural, mas também extremamente focada em atividades físicas, praticadas por todos, desde o mais velho, Bodevan (George McKay), até os menores. Todos eles também são leitores vorazes - ficção, filosofia, história, sociologia e até sexualidade são assuntos banais nas discussões familiares - e questionadores do status quo. São capazes de discutir a Declaração de Direitos Universais e "Lolita", de Vladimir Nabokov, e rejeitam a alimentação equivocada dos norte-americanos. Ben os trata de igual para igual, sem tratá-los com condescendência ou superioridade. São crianças felizes, acima de tudo, mas seu universo particular sofre uma ruptura brusca quando seu avô, Jack (Frank Langella), resolve entrar na Justiça pela guarda de todos: segundo ele, as crianças são prejudicadas por sua falta de convívio com pessoas de sua idade e privadas de uma educação convencional que lhes será útil no futuro. A situação fica ainda mais delicada quando Bodevan revela ao pai seu desejo de cursar uma universidade - desejo compartilhado inclusive por sua mãe.

Não há cenas desnecessárias em "Capitão Fantástico": seu roteiro é preciso e eficaz é construído exemplarmente a modo de apresentar à plateia seus personagens, seus conflitos e suas questões sem que nada pareça aleatório ou soe forçado. O elenco infantil tira de letra o desafio de representar membros de uma família que tem ecos do movimento hippie e se desenha como uma utopia moderna, e Viggo Mortensen aparece como o maestro de uma sinfonia comovente e, em certos momentos, bastante divertida - o embate entre a cultura natural e intelectual dos Cash com a sociedade capitalista e ególatra do resto dos familiares tem cenas preciosas. Matt Ross não busca a emoção rasteira ou a discussão maniqueísta: seus personagens são complexos e falíveis, e embora Ben seja o herói da estória, ele tampouco está absolutamente correto e acima de críticas. O diretor equilibra com presteza todos os elementos de sua trama, constrói uma atmosfera sólida e crível, e consegue, com inteligência, criar um desfecho que torna tudo ainda mais humano e honesto - mas que pode não agradar aos mais radicais. Elogiadíssimo pela crítica, principalmente pelo desempenho de Mortensen, "Capitão Fantástico" é, sem favores, um dos melhores filmes de sua temporada, e uma pérola a ser constantemente revisitada como um presente para a alma.

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