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RASGA CORAÇÃO

RASGA CORAÇÃO (Rasga coração, 2018, Casa de Cinema de Porto Alegre/Globo Filmes, 115min) Direção: Jorge Furtado. Roteiro: Jorge Furtado, Ana Luiza Azevedo, Vicente Moreno, peça teatral de Oduvaldo Vianna Filho. Fotografia: Glauco Firpo. Montagem: Giba Assis Brasil. Figurino: Rosângela Cortinhas. Direção de arte: Fiapo Barth. Produtor associado: Guel Arraes. Elenco: Marco Ricca, Drica Moraes, Chay Suede, João Pedro Zappa, George Sauma, Luisa Arraes, Nelson Diniz, Anderson Vieira. Estreia: 06/12/18

Último texto dramático de Oduvaldo Vianna Filho - o Vianinha, conhecido do grande público por ser o criador e roteirista da primeira versão de "A grande família" - e um dos marcos do teatro brasileiro mesmo tendo estreado com seis anos de atraso por problemas com a censura, "Rasga coração" conseguiu, em sua primeira montagem, de 1979, emocionar até mesmo o irascível Nelson Rodrigues, não exatamente um entusiasta do autor, mas que declarou-a como uma das mais belas e fascinantes obras-primas do teatro nacional. Um retrato real, inteligente e visceral do choque de gerações e um brilhante inventário dos sonhos de revolução da juventude, a peça nunca pareceu tão atual quanto agora, quando o país atravessa uma de suas mais severas crises de intolerância política. Por isso não chega a surpreender o fato de que sua versão cinematográfica - pelas mãos do gaúcho Jorge Furtado, fã da obra original e um dos cineastas mais criativos do Brasil - pareça tão fresca e relevante. Ao se entregar sem medo à emoção e à potência dramática do texto de Vianinha e adequá-lo à realidade atual com respeito e inteligência, Furtado faz de seu novo filme o que pode ser considerado seu melhor trabalho - e isso que se trata do mesmo diretor de pérolas como "O homem que copiava" e "Saneamento básico: o filme", duas comédias das mais incríveis que se tem notícia na filmografia nacional.

Abdicando de seu estilo facilmente reconhecível e consagrado, Furtado entrega, em "Rasga coração",  uma obra madura e sensível, sem artifícios narrativos que ofusquem a força de seus personagens e de sua mensagem. Consegue até mesmo fugir da armadilha tão comum de realizar apenas um teatro filmado: graças à edição do veterano Giba Assis Brasil, o espectador raramente lembra que está assistindo à adaptação de um texto cuja montagem se passava em um único cenário desdobrado em várias fases. Indo e voltando no tempo em flashbacks que revelam muito mais semelhanças entre as duas gerações retratadas do que elas mesmas gostariam de perceber, o filme mergulha o público em uma experiência tão gratificante quanto tensa, explorando as diversas camadas da narrativa de forma orgânica. É aos poucos que a plateia vai se dando conta de que as duas histórias que estão sendo contadas pelo diretor não se unem apenas devido à presença do mesmo personagem principal, mas também porque, por mais que o tempo passe, os problemas e as (tentativas de) solução parecem sempre os mesmos - e cada geração lida com eles da maneira que acha mais correta.


Enquanto no texto original a trama se desdobrava em três tempos distintos, na estupenda adaptação, feita por Furtado, Ana Luiza Azevedo e Vicente Moreno, o enredo enfoca apenas a relação entre pai e filho, corroída por diferenças que aparentemente não existiam. Manguari Pistolão (Marco Ricca, em uma interpretação rica em nuances) é funcionário público, leva uma vida razoavelmente estável ao lado da esposa Nena (Drica Moraes, sempre uma atriz avassaladora) e tem problemas apenas relacionados a trivialidades, como encaixar no orçamento as novas manias veganas do único filho, Luca (Chay Suede, surpreendente). Seu sonho é ver o rapaz cursando Medicina e abrindo um consultório com o dinheiro que ele vem economizando há anos, mas as coisas começam a sair do controle quando Luca informa aos pais que, SE fizer a faculdade, pretende praticar a medicina no interior, ajudando aos mais carentes. Os ideais do jovem apavoram sua mãe, mas fazem Manguari lembrar de sua juventude (quando é interpretado por João Pedro Zappa, protagonista do ótimo "Gabriel e a montanha"): durante a ditadura militar, ele e um grupo de amigos, entre os quais o excêntrico Lorde Bundinha (George Sauma) e o engajado Camargo Velho (Anderson Vieira), lutavam bravamente contra o regime, sonhando com uma sociedade mais justa e a liberdade de expressão - fatos que, obviamente, o colocavam em rota de colisão com o próprio pai (Nélson Diniz).

O difícil relacionamento entre Manguari e seu pai começa a se redesenhar em seu contato com Luca quando o rapaz entra em rota de colisão com a escola onde estuda: ao lado da namorada e outros colegas, ele compra a briga de ideologia de gêneros (mais atual que o movimento hippie do original) e, suspenso, desperta no pai a velha paixão pela luta. Porém, as coisas não são exatamente como antes, e o que poderia ser consenso entre os dois se torna motivo de discórdia - o que alimenta ainda mais as memórias de Manguari a respeito de seus antigos amigos e de sua juventude militante. Ao intercalar presente e passado sem necessariamente se prender a uma fórmula banal, "Rasga coração" provoca uma reflexão pertinente e muito atual sobre a falta de diálogo e compreensão mútua, além de resgatar a velha, mas nunca ultrapassada, discussão sobre as semelhanças e diferenças entre gerações - e a conclusão de que, apesar de tudo que se faz, a tendência é sempre repetir os erros e/ou acertos anteriores. Apesar desse travo de certa amargura, o filme termina com uma ponta de esperança, ao apontar, discreta mas efetivamente, o caminho para a tolerância e a convivência pacífica. É um filme que faz jus à sua origem e orgulha a cinematografia nacional: emocionante, pungente, corajoso e imprescindível.

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