quarta-feira

UM CORPO QUE CAI


UM CORPO QUE CAI (Vertigo, 1958, Paramount Pictures, 128min) Direção: Alfred Hitchcock. Roteiro: Alec Coppel, Samuel A. Taylor, baseado no romance "D'entre les morts", de Pierre Boileau e Thomas Narcejac. Fotografia: Robert Burks. Montagem: George Tomasini. Música: Bernard Herrmann. Figurino: Edith Head. Elenco: James Stewart, Kim Novak, Barbara Bel Geddes, Tom Helmore. Estreia: 09/5/58

2 indicações ao Oscar: Direção de Arte, Som

O tempo pode ser bastante cruel em algumas ocasiões, mas é inegável que às vezes o distanciamento cronológico pode fazer um bem incomensurável a determinados elementos. Uma prova viva disso é o filme "Um corpo que cai". Quando lançado, em 1958, o filme do cineasta Alfred Hitchcock recebeu esparsas críticas positivas, não empolgando quase ninguém. Foi preciso uns bons anos se passarem para que a obra assumisse a posição privilegiada que hoje tem dentre a filmografia do mestre do suspense, considerado quase que por unanimidade um de seus melhores trabalhos.

"Um corpo que cai" é baseado em um romance escrito por Pierre Boileau e Thomas Narcejac, que escreveram a história depois de saberem que o cineasta havia se interessado por seu livro anterior - que deu origem ao filme "As diabólicas", dirigido por François Cluzot. No final das contas, o roteiro de Samuel Taylor pouco utilizou da obra literária dos autores franceses - e nem do primeiro tratamento do script, escrito por Alec Coppel, concentrando-se unicamente na ideia central da história, contada a ele pelo próprio diretor. O resultado final é um fascinante jogo de espelhos filmado com elegância e romantismo, atingindo um equilíbrio perfeito entre uma trama bem urdida e a habitual preocupação de Hitch com o suspense visual de sua obra.

Novamente James Stewart assume o papel principal (pela última vez na obra de Hitchcock, que o considerou culpado pelo fracasso comercial do filme, alegando ser ele muito velho para as novas audiências). Aqui, ele vive John Scottie Ferguson, um policial forçadamente aposentado por sofrer de acrofobia (medo de altura). Depois de testemunhar a morte de um colega, ele vive em um tédio absoluto, quebrado apenas pelas conversas com a artista plástica Midge (Barbara Bel Geddes), apaixonada por ele. O encontro com um antigo amigo - agora milionário por casamento - vai dar um novo mote à sua vida. Gavin Elster (Tom Helmore) pede a Ferguson que passe a seguir sua esposa, que anda se comportando de forma estranha. Sem ter muito o que fazer, Ferguson aceita a empreitada e começa a acompanhar discretamente a bela Madeleine (Kim Novak) e percebe que ela parece estar sofrendo de algum tipo de influência de uma antepassada, Carlotta Valdez, que morreu tragicamente aos 26 anos, suicidando-se. Conforme se aproxima de Madeleine - que tenta se matar jogando-se na Baía de San Francisco - Ferguson vai se apaixonando pela triste mulher. O que parecia ser uma trama sobre espiritismo, no entanto, sofre uma reviravolta quando Madeleine finalmente é bem-sucedida em suas tentativas de suicídio, atirando-se da torre de um campanário. Sentindo-se culpado por não ter conseguido impedir mais esse desastre, o ex-policial entra em uma profunda depressão que só começa a dar sinais de cura quando, em um passeio corriqueiro pelas ruas da cidade, ele se depara com Judy, a bela balconista de uma loja que ele reconhece como uma sósia da mulher que amava e que tirou a própria vida.


Ao contrário de muitos outros filmes de Hitchcock, onde a história importava menos do que a maneira como ela era contada, aqui a trama central é claramente baseada em um jogo de pistas falsas, identidades trocadas e um mistério essencial à narrativa. As viradas que o belo roteiro apresenta, no entanto, casam perfeitamente com o ritmo impresso pelo cineasta, que filma cada cena com um cuidado de ourives. Apesar de tratar-se de um filme de suspense dos mais hipnotizantes, "Um corpo que cai" muitas vezes tem a aparência de um belo romance, ainda que com tintas um tanto quanto doentias. Se o amor de Ferguson por Madeleine ainda tinha um pé na normalidade, apesar das extravagâncias mentais da jovem, seu relacionamento com Judy faria a festa de qualquer psicanalista. Quando, em determinado momento do filme ele pede que ela pinte o cabelo de louro, que o prenda em um coque e se vista exatamente como a falecida mulher por quem era apaixonado, ele está claramente ultrapassando os limites do saudável. Seu olhar embevecido ao vê-la transformada em Madeleine diz mais sobre obessão do que milhares de Glenn Closes enlouquecidas cozinhando coelhinhos de estimação. E, no entanto, ao aceitar a submissão de transmutar-se em outra pessoa, Judy também se entrega ao perigoso jogo do homem que ama.

A trilha sonora tonitruante de Bernard Herrman - uma das mais marcantes de sua carreira, diga-se de passagem - constitui outro ponto de destaque em "Um corpo que cai", comentando a ação com a discrição ou o alarde que cada sequência demanda. O silêncio que percorre o filme, inclusive, é dos mais expressivos que se tem notícia. Ousadamente, Hitchcock constrói longas sequências sem diálogos - alguém lembrou do Brian de Palma de "Doublé de corpo"? -, pegando o público pela mão para percorrer os caminhos tortuosos de sua trama.

Mas enfim, James Stewart era velho demais para o papel principal? Talvez sim, talvez não, dependendo do ponto de vista. A implicância de Hitchcock com esse pormenor talvez venha do fato de que ele, na verdade, estava bastante insatisfeito com Kim Novak, que substituiu Vera Miles, sua primeira opção para o papel, mas que saiu do projeto devido a uma gravidez. Não há como não perceber uma sintonia bem grande entre a intenção de Ferguson em transformar Judy em Madeleine com o que o cineasta fazia com suas musas. Vários de seus biógrafos (inclusive Ruy castro no delicioso "Saudades do século XX") afirmam que, uma vez fascinado por suas atrizes (em especial as louras como Grace Kelly) ele tentava moldá-las a seu gosto, estética e culturalmente falando, exatamente como faz seu protagonista em "Um corpo que cai". Esse pequeno detalhe talvez ajude a entender melhor algumas das várias nuances de mais uma de suas espetaculares obras-primas.

2 comentários:

Alan Raspante disse...

Ahhh, Clênio como vc bem viu em meu blog, eu consegui assistir UM CORPO QUE CAI.
Só posso dizer uma coisa :IMPRESSIONANTE!

Unknown disse...

Boa tarde!

Encontrei o blog (grata surpresa!) por acaso ao pesquisar sobre "Minha Amada Imortal" e ousei pesquisar "Vertigo"...

De longe o melhor filme de AH e com certeza estaria em qualquer lista dos 10 melhores da história.

Tive o raro privilégio de, há pouco mais de um ano, assisti-lo na telona, em uma sessão de clássicos de uma rede de cinemas. Só me fez amar ainda mais todas as sutilezas da história e da direção.

Simplesmente um espetáculo de imagem, de som, de direção e de atuações.

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