segunda-feira

A PELE QUE HABITO

A PELE QUE HABITO (La piel que habito, 2011, El Deseo S/A, 120min) Direção: Pedro Almodovar. Roteiro: Pedro Almodovar, Agustín Almodovar, romance "Tarantula", de Thierry Jonquet. Fotografia: José Luis Alcaine. Montagem: José Salcedo. Música: Alfredo Iglesias. Figurino: Paco Delgado. Direção de arte/cenários: Antxon Gómez/Vicente Díaz. Produção: Agustin Almodovar, Esther García. Elenco: Antonio Banderas, Elena Anaya, Marisa Paredes, Jan Cornet, Roberto Álamo. Estreia: 19/5/11 (Festival de Cannes)

Em poucas cinematografias contemporâneas o sublime e o bizarro convivem tão em paz quanto na obra do espanhol Pedro Almodovar. Com mais intensidade em alguns filmes (“Maus hábitos”, “O que fiz eu para merecer isto?”, “Mulheres à beira de um ataque de nervos”, “Kika”) e mais sutil em outros (“A flor do meu segredo”, “Volver”, “Abraços partidos”), essa mistura aparentemente impossível é uma das características mais marcantes do cineasta, já premiado com o Oscar de melhor filme estrangeiro (por “Tudo sobre minha mãe”) e roteiro original (por “Fale com ela”) e que é normalmente apontado como um especialista em personagens femininas de grande força dramática. Em “A pele que habito”, porém, ele mostra que é plenamente capaz de criar um protagonista masculino igualmente potente, além de experimentar, pela primeira vez em sua carreira, o mergulho em um filme de suspense. Tudo bem que “Matador” e “Má educação” tinham momentos que flertavam com o gênero, mas nenhum deles era tão ostensivamente cruel e sufocante quanto essa adaptação livre do romance “Tarântula”, de Thierry Jonquet, que mistura elementos de “Frankenstein”, de Mary Shelley e “O colecionador”, de John Fowles, para contar uma história de obsessão e vingança que, no fim das contas, combina à perfeição com a obra que o diretor vem construindo desde a década de 80.
A primeira ligação de “A pele que habito” com o passado de Almodovar vem com o reencontro com Antonio Banderas, ator-fetiche de seus primeiros filmes e com quem não trabalhava desde “Ata-me”, de 1990. Mais velho e mais maduro como ator – ainda que vez por outra escorregue no overacting – Banderas vive Robert Ledgard, um cirurgião plástico respeitado pelos colegas e pelos pacientes que dedica seu tempo ao desenvolvimento de uma pele sintética capaz de resistir a quaisquer tipos de agressão. Suas experiências polêmicas (e contra a lei) tem origem no trauma que viveu com a morte da esposa, vítima de um acidente de carro que a deixou desfigurada e resultou em seu suicídio. A tragédia – que teve ainda uma outra consequência devastadora envolvendo sua única filha – o faz tornar-se um homem obcecado por vingança, que acaba por envolver um jovem Vicente(Jan Cornet) em uma dedicada e violenta experiência.         
Com uma narrativa que usa e abusa de flashbacks que dão ao público a exata noção de causa/consequência dos atos de Robert, “A pele que habito” destoa um tanto dos filmes mais famosos de Almodovar por demorar a estabelecer a real história que deseja contar. É somente aos poucos que o roteiro vai oferecendo à plateia os elementos essenciais à compreensão da extensão da vingança de seu protagonista, um homem que, ao contrário do que dita a cartilha do cinema hollywoodiano, está longe de ser um herói assim como tampouco pode ser considerado um vilão: essa dualidade de seu personagem principal é um dos principais méritos do filme de Almodovar, que mais uma vez confere propriedades humanas a suas criações, livrando-as do maniqueísmo fácil e preguiçoso que domina boa parte do cinema comercial. Robert Ledgard pode ter suas razões para buscar uma vingança, mas a certo ponto da narrativa – graças principalmente à recusa do diretor em injetar uma culpa explícita em ... – é impossível que a plateia não fique em dúvida se tudo não está indo longe demais. E, acreditem, nem Almodovar nem seu protagonista parecem dispostos a poupar ninguém de seu pesadelo estético/sexual, que inclui a bela Vera (Elena Anaya).


O bom-humor tão louvado na obra de Almodovar – que sempre conseguiu alternar riso e lágrimas sem prejuízo do conjunto – praticamente inexiste em “A pele que habito”. Quando tenta dar uma aliviada ao tom extremamente sombrio e doentio da história, acaba por tropeçar – Zeca, o filho brasileiro de Marília (Marisa Paredes, outra habitual colaboradora do cineasta), empregada de Robert e sua aliada/cúmplice, chega à mansão do médico fantasiado de tigre, em uma desnecessária pretensão à comicidade distorcida de seus filmes anteriores. Apesar da presença de Zeca ser o catalisador de eventos que empurram a ação – e dão origem às reminiscências que finalmente explicam os motivos das atitudes do cirurgião – tal artifício soa fora de lugar. Em “Kika” funcionaria. Em “Mulheres à beira de um ataque de nervos” sublinharia o tom debochado. Em “A pele que habito” deixa a impressão de uma piada sem graça e fora de hora. É o único escorregão de um filme que, afora isso, é sufocante e desconfortável como uma visita ao dentista.
Sublinhado pela música tonitruante de Alberto Iglesias e pela cenografia inesperadamente asséptica – uma surpresa em se tratando de uma espécie de embaixador da estética kitsch – “A pele que habito” conduz o espectador a uma viagem por um labirinto de sensações conflitantes e de uma tensão nunca vista antes na obra do diretor. Sem medo de pegar pesado no suspense, Almodovar utiliza todo o seu talento na construção de um pesadelo incomodamente verossímil, apesar do aparente exagero da trama central. Se desperta o riso, é um riso nervoso, reação à crueldade da vingança de Roberto e à forma com que ela é realizada. Nem mesmo quando flerta descaradamente com o melodrama – gênero no qual o diretor é mestre – o filme deixa de ser desconcertante, prova do gênio de seu criador, um cineasta incapaz de gerar um filme medíocre mesmo quando se propõe a testar seus limites.
A crítica não foi tão generosa com “A pele que habito” como foi com as obras-primas de Almodovar – a saber, “Mulheres à beira de um ataque de nervos”, “Carne trêmula”, “Tudo sobre minha mãe”, “Fale com ela” – e fez malabarismos para ver em seu filme defeitos que em produções hollywoodianas não parecem ser problema algum. Talvez a expectativa gerada pela reunião de Almodovar/Banderas/Marisa Paredes tenha sido seu maior algoz. Mas um dia provavelmente sua incursão no lado mais negro do ser humano até hoje será vista como o excelente filme que é, apesar de seus pecadilhos. “A pele que habito” não é um Almodovar típico – a despeito de seu final irônico - mas é um grande Almodovar.

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