A VIAGEM (Cloud Atlas, 2012, Cloud Atlas Productions/X-Filme Creative Pool, 172min) Direção: Tom Tykwer, Andy Wachowski, Lana Wachowski. Roteiro: Tom Tykwer, Andy Wachowski, Lana Wachowski, romance de David Mitchell. Fotografia: Frank Grieber, John Toll. Montagem: Alexander Berner. Música: Reinhold Heil, Johnny Klimek, Tom Tykwer. Figurino: Kym Barrett, Pierre-Yves Gayraud. Direção de arte/cenários: Hugh Bateup, Uli Hanisch/Rebecca Alleway, Peter Walpole. Produção executiva: John Chong, Caroline Kwauk, Philip Lee, Wilson Qiu, Uwe Schott, Pearry Reginald Teo, Ricky Tse. Produção: Stefan Arndt, Alex Boden, Grant Hill, Tom Tykwer, Andy Wachowski, Lana Wachowski. Elenco: Tom Hanks, Susan Sarandon, Halle Berry, Hugh Grant, Jim Broadbent, Jim Sturgess, Hugo Weaving, Ben Winshaw, Doona Bae, James D'Arcy, Xun Zhou. Estreia: 08/9/12 (Festival de Toronto)
Se um filme é rejeitado enfaticamente por um pretenso crítico como
Rubens Ewald Filho - uma das maiores fraudes do jornalismo cultural já
forjadas na imprensa nacional - isso provavelmente quer dizer que a obra
é, no mínimo, interessante e digna de atenção. Sendo assim, é
obrigatório que se deixe o preconceito e qualquer tipo de expectativa de lado para conferir "A viagem" -
título nacional inapropriado para o intraduzível "Cloud Atlas" - mais um
passo dos irmãos Wachowski em sua missão de sacudir a mesmice do cinema internacional,
como fizeram com "Matrix" em 1999. Dessa vez contando com a co-direção
do alemão Tom Tykwer (do criativo "Corra Lola, corra"), eles adaptaram o
difícil romance de David Mitchell em um filme tecnicamente perfeito
que, se não chega a ser emocionalmente brilhante devido à sua natureza
episódica, é um dos mais ousados produtos cinematográficos dos últimos
anos, voltando a tocar (de forma poética e sensível) em temas caros aos
cineastas, como filosofia, destino e livre-arbítrio - que eles voltaram a usar como tema na série de TV "Sense8", lançada em 2015 com grande sucesso.
O complexo roteiro - escrito pelos irmãos e por Tykwer - conta seis
histórias simultaneamente, ainda que elas aconteçam em períodos de tempo
e espaço díspares. A espetacular edição - a cargo de Alexander Berner,
cujo melhor filme do currículo é a adaptação para as telas do bestseller
"O perfume" - costura as tramas de forma envolvente, sublinhando as
semelhanças e coincidências entre elas para explicitar ao espectador que
todas elas, no fundo, formam um grande e abrangente panorama humano e
social. Segundo a teoria do filme - que de certa forma evoca muitos
ensinamentos da doutrina espírita - tudo que se faz em uma vida ecoa
para a eternidade, afetando mesmo que indiretamente outras pessoas (e
também fica claro que as mesmas pessoas, em sexos, classes sociais e
épocas distintas convivem entre si, muitas vezes repetindo de forma
inconsciente o que já fizeram em vidas passadas). É assim que um jovem
advogado (vivido por Jim Sturgess) ajuda um escravo foragido no ano de
1849 e em 2144 um revolucionário japonês (também interpretado por
Sturgess, dessa vez sob forte maquiagem) colabora com a fuga de uma
ciborgue (Doona Bae) que será uma líder contra a opressão (alguém aí
lembrou de "Matrix"?). E é seguindo essa linha de raciocínio que outras
personagens e histórias são apresentadas ao público, utilizando o mesmo
elenco em todas elas, muitas vezes de forma irreconhecível: Tom Hanks,
Halle Berry, Hugh Grant, Susan Sarandon, Jim Broadbent, Hugo Weaving e
Ben Winshaw surgem diante da plateia com
os mais variados visuais e papeis, escondidos frequentemente por trás
de uma maquiagem nunca menos que brilhante (e injustamente esquecida
pelo Oscar). O elo entre as personagens às vezes é óbvio, em outras nem
tanto - e uma marca na pele, em forma de estrela cadente, os une
inexoravelmente.
Ambicioso e por vezes quase megalomaníaco, "A viagem" tem a seu favor a coragem de enfrentar de igual pra igual produções anabolizadas em forma e orçamento que sofrem com uma irreparável falta de conteúdo - e mesmo assim levam multidões às salas de cinema. Forçando o público a sair de sua passividade intelectual, logicamente se arriscou a pregar no deserto - e foi o que aconteceu, com uma bilheteria muito aquém da esperada e merecida. Enquanto filmes de super-heróis quebravam recorde em cima de recorde, o filme de Tykwer e dos Wachowski minguava, chegando a dividir as opiniões até mesmo daqueles que se arriscaram a uma sessão. Realmente não é um filme de fácil assimilação, e isso acaba por ser mais uma qualidade do que um defeito. Mesmo os detratores, porém, são obrigados a reconhecer que, apesar de alguns equívocos, a obra tem qualidades redentoras, como a espetacular trilha sonora e toda a técnica envolvida em criar mundos tão díspares e uní-los em uma única trama. Mesmo que o roteiro tente não complicar demais as coisas e dê pistas às vezes óbvias das ligações entre os personagens, os autores não subestimam a inteligência do público e é aí que seu maior mérito fica evidente: "A viagem" é um filme para adultos que gostam de pensar e ser tocados por uma história. Seus efeitos visuais, sua maquiagem, seus artifícios são apenas a ponte para um objetivo maior, que mesmo não sendo atingido em sua plenitude, sacode a inércia da audiência.
Pecando apenas por não dar ao público a chance de realmente conhecer a
fundo as personagens e se importar de verdade com seus problemas - o que
não impede que algumas histórias se sobressaiam dramaticamente a outras
- "A viagem" requer paciência e a liberdade de embarcar rumo a uma
experiência inebriante e rica. Não é um filme que agrada a todo mundo
(em especial a resenhistas que julgam atores por seu visual e cultuam
alucinadamente divas de uma Hollywood que não mais existe). Mas é
corajoso e tem muito a dizer. Poucos filmes recentes podem se gabar
disso.
Filmes, filmes e mais filmes. De todos os gêneros, países, épocas e níveis de qualidade. Afinal, a sétima arte não tem esse nome à toa.
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