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A REGRA DO JOGO

A REGRA DO JOGO (La règle du jeu, 1939, Les Nouvelles Editions de Films, 110min) Direção: Jean Renoir. Roteiro: Jean Renoir, Carl Koch. Fotografia: Jean-Paul Alphen, Jean Bachelet, Jacques Lemare, Alain Renoir. Montagem: Mme Huguet, Marguerite Renoir. Música: Joseph Kosma. Figurino: Coco Chanel. Direção de arte: Max Douy, Eugène Lourié. Produção: Jean Renoir. Elenco: Nora Gregor, Marcel Dalio, Roland Toutain, Jean Renoir, Paulette Dubost, Anne Mayen, Julien Carrette, Gaston Modot. Estreia: 08/7/39

Depois do enorme sucesso de "A grande ilusão " (1937) e "A besta humana" (1938), o prestígio do francês Jean Renoir estava nas alturas. Considerado um cineasta à frente de seu tempo e aplaudido entusiasticamente por público e crítica, ele logo seria confrontado com a efemeridade do sucesso: "A regra do jogo", primeiro filme de sua produtora Les Nouvelles Editions Françaises (que abriu em sociedade com o sobrinho Claude) nem bem estreou, na metade de 1939, para praticamente ser expulso das salas de exibição. Condenado pelo governo francês (que o considerou uma afronta aos princípios morais do país, em vias de embarcar em uma guerra), severamente atacado pelo público (diz a lenda que um espectador chegou a tentar incendiar um cinema depois da sessão) e recebido sem unanimidade pela imprensa, dividida entre aqueles que o consideravam mais um grande filme, aqueles que pensavam exatamente o contrário e ainda aqueles que não tinham nenhuma certeza acerca de suas qualidades ou defeitos. O fato é que, decepcionado com o fracasso, Renoir ainda tentou diminuir o prejuízo, reeditando sua obra, diminuindo sua duração original de 113 minutos para 90. Pouco (ou quase nada) mudou. Depois de um mês de exibição, o filme foi banido dos cinemas. E então chegou a guerra.

A ascensão do nazismo e a tomada da França pela Alemanha, em 1940, agravou ainda mais a situação de "A regra do jogo". Suas cópias foram queimadas e, por acidente, até mesmo seus negativos foram destruídos por tropas aliadas. A primeira (e mais longa) versão do filme parecia perdida para sempre - e nem mesmo seus mais ardorosos fãs, membros da nouvelle vague tinham esperança de recuperá-la até que, no final da década de 1950, os 23 minutos cortados da edição lançada após a estreia foram milagrosamente descobertos. Foi a glória! A partir de então, e de sua exibição no Festival de Veneza de 1959, o que era um desastre metamorfoseou-se em mais uma obra-prima, reconhecida mundialmente. Suas experiências estéticas - que incluem recursos de profundidade de campo dois anos antes de "Cidadão Kane" e planos-sequência milimetricamente orquestrados - viraram objeto de estudo e culto, influenciando cineastas e até produções inteiras. "Assassinato em Gosford Park" (2001), de Robert Altman, por exemplo, é sua cria direta, principalmente em termos de estrutura dramática e crítica social.


Difícil de definir entre comédia e drama, "A regra do jogo" se beneficia especialmente do humor sutil do roteiro e das complexas relações entre seus personagens - em número o suficiente para manter o ritmo de vaudeville em algumas sequências. Os protagonistas são Robert de la Cheyniest (Marcel Dalio) e sua esposa Christine (Nora Gregor): ele é um marquês bem posicionado na sociedade francesa do pré-guerra, bem quisto pelos amigos e quase fútil; ela é uma cantora austríaca que abandonou a carreira pelo casamento. Apesar das aparências, porém, o relacionamento não é tão imaculado: Robert tem um caso com a bela Geneviève (Mira Parély) - que não aceita a possibilidade de um término - e Christine é objeto de desejo do famoso aviador André Jurieux (Roland Toutain), apaixonado por ela a ponto de dedicar-lhe o recorde que acaba de quebrar. Para resolver esse quadrilátero amoroso, o prestativo Octave (o próprio diretor, Jean Renoir), propõe ao marquês que convide tanto André quanto Geneviève para uma festa em sua luxuosa casa de campo, com a intenção de uní-los e, assim, acabar com todo o impasse. Octave também é apaixonado por Christine, mas isso não o impede de flertar com Lisette (Paulette Dubost), criada da marquesa - que, por sua vez, é casada com o guarda-caça da propriedade rural, Schumacher (Gaston Modot), e começa a sentir uma estranha atração por um novo empregado, Marceau (Julien Carette), que costumava roubar os animais caçados pelos milionários.

Com tais personagens - e outros coadjuvantes que ajudam a compor o clima festivo e inconsequente da narrativa -, "A regra do jogo" equilibra-se com maestria entre uma crônica da sociedade parisiense de sua época, totalmente alienada da situação política mundial, e o retrato das promíscuas relações entre patrões e empregados, entre os ricos e os pobres, entre a cozinha e a sala de estar. Em vários momentos posicionando sua câmera no corredor - uma espécie de espaço comum entre todos os personagens - e apenas acompanhando o transcorrer das intrigas que se desenrolam sem maior discrição, Jean Renoir convida a plateia para mergulhar em um universo à parte, ilustrado por momentos de puro humor visual e sequências criativamente desenhadas e fotografadas. Cada cena é cuidadosamente coreografada de forma a buscar o melhor efeito visual e narrativo - e se não fosse o roteiro tão repleto de diálogos interessantes, só tal zelo visual já faria do filme de Renoir uma pérola. Ao unir todos os elementos que fazem do cinema uma arte - diálogos, fotografia, edição -, o cineasta confirma seu status como um dos maiores diretores europeus do século XX. E nem mesmo a falta de carisma de sua protagonista feminina é o bastante para diminuir a força irônica de seu desfecho - que reitera todo o discurso subtextual da obra. Um grande filme, que não sobreviveu ao tempo por acaso!

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