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UM BARCO E NOVE DESTINOS

UM BARCO E NOVE DESTINOS (Lifeboat, 1944, 20th Century Fox, 97min) Direção: Alfred Hitchcock. Roteiro: Jo Swerling, estória de John Steinbeck. Fotografia: Glen MacWilliams. Montagem: Dorothy Spencer. Música: Hugo Friedhofer. Figurino: Rene Hubert. Direção de arte/cenários: James Basevi, Maurice Ransford/Thomas Little. Produção: Kenneth Macgowan. Elenco: Tallulah Bankhead, William Bendix,Walter Slezak, Mary Anderson, John Hodiak, Henry Hull, Heather Angel, Hume Cronyn, Canada Lee. Estreia: 11/01/44

3 indicações ao Oscar: Diretor (Alfred Hitchcock), História Original, Fotografia em preto-e-branco

Apesar de sua vitoriosa e aplaudida carreira ter sido uma das mais consistentes da história do cinema, o cineasta inglês Alfred Hitchcock nunca foi muito considerado pela Academia de Hollywood. Em todas as longas décadas em que esteve na ativa, concorreu ao Oscar em cinco ocasiões, mas foi homenageado apenas com uma estatueta pelo conjunto da obra, em 1968. A segunda vez em que foi lembrado - a primeira foi por "Rebecca: a mulher inesquecível", que ganhou o prêmio máximo em 1940 - foi por um filme que, levando-se em consideração toda a sua extensa filmografia, pode ser considerado quase um estranho no ninho. Além de ter sido um dos poucos filme do mestre do suspense a não fazer o costumeiro sucesso de bilheteria, "Um barco e nove destinos" mostrava um outro lado do cineasta, preocupado com questões técnicas e ousadias visuais. Sem trilha sonora (exceto na abertura e no encerramento), com um único cenário, sem vilões aparentes e um desenvolvimento gradual da trama, que apresenta diversos episódios dotados de clímax próprio, o filme mostra que Hitchcock era mais do que simplesmente um exímio contador de histórias: por trás da aparente simplicidade do roteiro, há uma crítica mordaz, em plena guerra, ao despreparo dos países democratas diante da ameaça organizada no nazismo. Tal nuance não agradou muito aos críticos americanos, mas em nada apaga o brilhantismo do resultado final. Pelo contrário, lhe oferece um outro nível de compreensão e entendimento.

Segundo declaração do próprio Hitchcock a François Truffaut em sua longa entrevista, sua intenção era fazer de seu filme um microcosmo da guerra, que ainda estava a pleno vapor. Conhecido por suas ideias políticas liberais, o escritor John Steinbeck foi chamado pelo cineasta para criar o argumento da produção, logo desenvolvido por Jo Swerling, colaborador de Frank Capra. No primeiro dos dois filmes que seu contrato de empréstimo com a 20th Century Fox previa (o segundo nunca chegou a acontecer, devido ao atraso nas filmagens e estouro do orçamento), Hitch tomou algumas decisões impopulares junto aos executivos da produção. Primeiro, decidiu que todo o filme seria rodado em ordem cronológica (ou seja, todo o elenco precisaria estar à sua disposição pelo tempo que as gravações durassem). Depois, resolveu (acertadamente, por razões óbvias) que tudo seria feiito em estúdio (o que obrigou a Fox a construir um tanque com milhões de litros de água). E, em terceiro lugar, não só abriria mão de uma trilha sonora constante como escolheu um elenco sem grandes astros (ou seja, sem nenhum astro com apelo o suficiente para garantir o retorno do investimento). Além disso, bateu pé em filmar cada página do roteiro, para desespero de Darryl Zanuck, que temia que o resultado final ultrapassasse as três horas de duração.


As filmagens também não foram exatamente um passeio na floresta. Problemas logísticos (que nem o uso de quatro botes diferentes, dois deles cortados ao meio, conseguiam facilitar) se acumulavam conforme o tempo passava: por duas ocasiões a produção teve que parar completamente para que os atores se recuperassem (das pneumonias de Tallulah Bankhead, de uma doença de Mary Anderson e de duas costelas quebradas de Hume Cronyn, que também quase se afogou) e a tensão era constante entre a politizada Bankhead e o ator austríaco Walter Slezak, com quem ela mantinha frequentes atritos a respeito de sua origem e do fato de seu personagem ser um nazista. De certa forma, esta animosidade serviu como uma luva para o clima de paranoia e hostilidade que permeia toda a narrativa, e contribuiu para que o filme não se tornasse apenas uma demonstração da habilidade técnica de Hitchcock. Sem maiores artifícios que não sua trama, seu elenco e sua capacidade de extrair o máximo de cada momento, o diretor acabou por realizar um extraordinário exercício dramático - merecidamente listado entre os dez melhores filmes do ano pela National Board of Review.

A trama começa com o naufrágio de um navio americano, saído de Nova York com destino a Londres, atacado por um bombardeiro alemão no meio do Oceano Atlântico. Os sobreviventes do desastre acabam se reunindo em um pequeno barco salva-vidas, onde precisam colocar de lado suas diferenças sociais e culturais enquanto esperam por socorro (ou tentam imaginar algum modo de sair da angustiante situação). A experiente jornalista Connie Porter (Tallulah Bankhead) logo percebe que as coisas não serão fáceis, apesar da aparente união do grupo em prol do mesmo objetivo. Fazem parte da turma o engenheiro do navio, John Kovac (John Hodiak), o operador de rádio Stanley Garrett (Hume Cronyn), a enfermeira Alice McKenzie (Mary Anderson), o milionário Charles Rittenouse (Henry Hull), o marinheiro Gus Smith (William Bendix), o comissário de bordo Joe (Canada Lee), e uma jovem mãe inglesa junto com seu bebê. Se as probabilidades de sobrevivência são pequenas, elas ficam ainda mais complicadas quando o grupo resgata Willi (Walter Slezak), um alemão no qual eles não sabem se podem confiar plenamente. A partir daí, Hitchcock constrói sua teia, oferecendo a cada personagem uma personalidade complexa e multidimensional - as quais ele conduz com inteligência e precisão. O maior destaque acaba ficando mesmo com Tallulah Bankhead, que acabou sendo eleita a melhor atriz do ano pelos críticos de Nova York: sua Constance Porter é, de certa forma, a voz da razão entre os colegas, e provavelmente a personagem com arco dramático mais completo, conforme vai se despojando de seus luxos como forma de manter-se viva. Longe de ser considerado um dos maiores filmes de Hitchcock, "Um barco e nove destinos" merece ser redescoberto e estudado como um de seus mais bem-sucedidos exercícios narrativos e visuais.

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