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SOMBRA DO PAVOR

SOMBRA DO PAVOR (Le corbeau, 1943, Continental Films, 92min) Direção: Henri- Georges Clouzot. Roteiro: Louis Chavance, adaptação de Henri-Georges Clouzot, Louis Chavance. Fotografia: Nicholas Hayer. Montagem: Marguerite Beuagé. Música: Tony Aubin. Direção de arte: Andrej Andrejew. Produção: René Montis, Raoul Ploquin. Elenco: Pierre Fresnay, Ginette Leclerc, Micheline Francey, Héléna Manson, Pierre Larquey, Louis Seigner. Estreia: 28/9/43

Em 1943, a sensação era de medo e indefinição. A guerra já estava em curso há quatro anos e a Alemanha nazista ameaçava dominar o mundo com sua postura eugenista e genocida. Nesse cenário, triste, sombrio e desesperador, poucos filmes fariam mais sentido do que "Sombra do pavor", segundo longa-metragem do cineasta Henri-Georges Clouzot - que mais tarde assinaria os clássicos "As diabólicas" e "Salário do medo". Se utilizando da atmosfera claustrofóbica provocada pela situação política para construir um suspense baseado em um clima de paranoia geral, Clouzot brindou a plateia com uma sofisticada trama em que ninguém parece ser exatamente inocente - mas nem todos são totalmente culpados. Inspirado em uma história real ocorrida em uma pequena cidade no sul da França entre 1917 e 1922, "Sombra do pavor" não foi recebido com o entusiasmo que merecia quando estreou, mas, aos poucos, foi tornando-se um filme que faz jus à fama do cineasta de ser o "Hitchcock francês". Sem apelar para a violência gratuita e sustos estéreis, o filme de Clouzot é uma pequena obra-prima do gênero - e injustamente relegado a um segundo plano em sua carreira.

Taxado de colaboracionista por ter se mantido ativo durante a ocupação alemã durante a II Guerra, Clouzot ficou impedido de filmar em solo francês até 1947 - destino semelhante a outros membros da equipe, como a atriz Micheline Francey, o ator Noel Roquevert e o desenhista de produção Andrej Andrejew, todos suspensos por terem trabalhado para a Continental Films, uma companhia germânica. Mas foi a Continental quem teve coragem de bancar "Sombra do pavor", um filme que claramente refletia, em tom de ficção, o tumultuado estado de espírito de uma nação aprisionada. Como um microcosmo do país está a pequena Saint Robin, uma cidadezinha do interior cujos habitantes mais notórios começam a receber cartas anônimas, que acusam outros moradores de crimes e condutas questionáveis. O principal alvo do remetente - que assina com o pseudônimo "O corvo" - é o médico Rémy Germain (Pierre Fresnay), que não apenas é acusado de manter um romance com Laura (Micheline Francey), a esposa de Vorzet (Pierre Larquey) seu colega psiquiatra como também de cometer abortos nas mulheres que o procuram clandestinamente. Aos poucos outras cartas começam a jogar uns contra os outros, com acusações as mais variadas - de fraudes financeiras a romances extraconjugais. Porém, quando um paciente comete suicídio a situação foge do pretenso controle, com a prisão de uma enfermeira e uma onda de histeria coletiva que transfigura a imagem de tranquilidade do local.


Não são poucas as qualidades de "Sombra do pavor": da ambientação soturna (cortesia da fotografia esplêndida de Nicholas Hayer) ao elenco de atores totalmente imersos em personagens que são, de certa forma, representações de setores da sociedade (médicos, padres, pessoas comuns), tudo funciona como um relógio. Clouzot usa sua câmera como uma espécie de voyeur, se infiltrando por entre as vielas da cidade, pelos quartos e consultórios, quase pelos pensamentos de seus moradores. Há uma profusão de ângulos inusitados, sempre buscando o melhor efeito no público, que é incapaz de resistir ao desenrolar da trama e buscar, assim como os personagens, descobrir quem, dentre eles, é capaz de um estrago tão grande através de um artifício tão simples. O roteiro faz questão de soltar pistas falsas (e até criar um falso desfecho, perto do fim), e construir sequências exemplares, como a cena do funeral - em que uma carta é jogada no meio da rua - ou na igreja - quando o remetente anônimo deixa que a carta flutue em direção aos fiéis. Clouzot se beneficia, também, de uma gama de personagens cujos segredos (ou meias-verdades) são essenciais ao mistério e à complexidade do enredo - que rendeu, em 1951, um remake americano, dirigido por Otto Preminger e chamado "Cartas venenosas" (The 13th letter).

"Sombra do pavor" é um filme de suspense exemplar! Oferece à audiência uma trama consistente e intrigante, uma direção inteligente - que evita o clichê - e um elenco sob medida. Foge dos sustos fáceis e do sangue aos borbotões e opta pela angústia psicológica, enfatizada por um visual caprichado e extremamente meticuloso. Clouzot chega, em momentos de extrema sofisticação narrativa, a filmar sob o ponto de vista das cartas, dando a elas o status de personagem - nada mais justo quando se trata de um filme em que elas são praticamente as protagonistas. Pode até lembrar "As bruxas de Salem" - a peça teatral de Arhur Miller sobre a histeria coletiva no interior de Massasuchets no século XVII - mas tem personalidade própria e demonstra, sem espaços para qualquer dúvida, que Henri-Georges Clouzot foi um dos maiores cineastas da Europa e um dos mestres do gênero.

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