quinta-feira

A DAMA DE SHANGHAI

A DAMA DE SHANGAI (The lady from Sanghai, 1947, Columbia Pictures, 87min) Direção: Orson Welles. Roteiro: Orson Welles, romance de Sherwood King. Fotografia: Charles Lawton Jr.. Montagem: Viola Lawrence. Música: Heinz Roemheld. Figurino: Jean Louis. Direção de arte/cenários: Sturges Carne, Stephen Goossón/Wilbur Menefee, Herman Schoenbrun. Produção: Orson Welles. Elenco: Orson Welles, Rita Hayworth, Everett Sloane, Glenn Anders, Ted de Corsia. Estreia: 24/12/47 (França)

Filmes nascem das mais variadas formas, de acordo com as mais distintas necessidades. Um dos clássicos do cinema noir norte-americano da década de 1940, por exemplo, surgiu graças ao desespero de seu diretor por urgentes 55 mil dólares, necessários para cobrir dívidas e lhe permitir estrear um espetáculo teatral em Boston. "A dama de Shanghai" é, hoje, considerado um dos grandes filmes do aclamado (e controverso) Orson Welles, mas sua gênese é pouco glamourosa e sua realização bastante complicada - como quase em toda a filmografia do cineasta. Basta dizer que, apesar do nome de Rita Hayworth (recém saída do sucesso de "Gilda") estampar o cartaz do filme, a produção demorou mais de um ano para ser lançada após o término das filmagens. Mesmo assim não agradou ao público - e tampouco Harry Cohn, o chefão da Columbia Pictures, que, logo após a primeira sessão privada de seu novo potencial êxito financeiro, chegou a ofereceu mil dólares a quem lhe explicasse a trama, baseada no romance "If I die before I wake", de Sherwood King e escolhida por Welles quase por acaso.

Tudo começou quando, às vésperas da estreia no teatro de sua versão musical de "Volta ao mundo em 80 dias", Orson Welles se viu diante de uma situação pouco confortável: ou ele pagava um débito de  55 mil dólares ou todo o figurino do espetáculo permaneceria preso pelos credores, inviabilizando a temporada. Em pânico, o cineasta - outrora consagrado como gênio, por seu seminal "Cidadão Kane" (1941), mas já tido como um diretor-problema - apelou para o resto de prestígio que ainda tinha e fez um ousado telefonema para Harry Cohn, o manda-chuva da Columbia Pictures à época: confiando que ainda era capaz de impressionar a indústria, Welles prometeu a Cohn que, caso o executivo lhe mandasse urgentemente o dinheiro de que precisava, ele não só dirigiria um filme para o estúdio, mas também faria o roteiro e assumiria o papel principal. Não apenas isso: ele também sugeria ao chefão a compra dos direitos do livro de Sherwood King - uma escolha um tanto aleatória, mas, considerando-se a pressa, bastante apropriada para uma adaptação cinematográfica. Dinheiro enviado, peça estreada, era chegada a hora de Welles cumprir a promessa. Mas nada era fácil quando se tratava do ex-garoto prodígio de Hollywood.


Pra começo de conversa, Welles deixou o estúdio chocado quando decidiu que a grande estrela do filme, Rita Hayworth (então sua esposa e objeto de desejo de dez entre dez espectadores de cinema espalhados pelo mundo) apareceria em cena com o cabelo curto e louro, ao contrário de suas longas madeixas avermelhadas que haviam seduzido o planeta. Para enfatizar ainda mais sua decisão de não fazer de Hayworth apenas um símbolo sexual e sim uma atriz dramática consistente, o cineasta simplesmente não filmou nenhum close-up da estrela - uma opção que deixou a editora do estúdio, Viola Lawrence, de cabelos em pé e obrigou a refilmagens depois do encerramento dos trabalhos. Não bastasse isso, Welles reescrevia o roteiro frequentemente, batia de frente com parte do elenco e os obrigava a improvisar alguns de seus diálogos - um método de trabalho pouco confortável que se somava a problemas de vários outros tipos, que surgiam principalmente devido à insalubridade das locações mexicanas. Segundo o diário do produtor William Castle, as altas temperaturas chegaram a causar desmaios em Hayworth, e insetos venenosos eram comuns a ponto de um deles causar (mais) um atraso às filmagens ao picar Welles no olho e deixá-lo inchado e sem condições de seguir o trabalho por alguns dias - algo que já havia acontecido com a estrela da produção e que, logicamente, resultou no estouro do orçamento e no atraso no cronograma.

O cronograma, diga-se de passagem, não era algo muito respeitado durante a produção de "A dama de Shanghai": o iate que servia como um dos principais cenários do filme era de propriedade do ator Errol Flynn, que o alugou com a condição de que ele estivesse sempre presente durante as filmagens. O problema, porém, é que Flynn tinha o costume de desaparecer por dias a fio, o que impossibilitava o trabalho - sem falar na ocasião em que um assistente de câmera morreu de ataque cardíaco no iate e o ator, famoso por seus porres homéricos, estava a ponto de jogá-lo ao mar, em um improvisado funeral marítimo (do que foi devidamente impedido pelo próprio Orson Welles). Com tantos problemas antes mesmo de ficar pronto, é de surpreender que o resultado final tenha sido tão coeso - ainda que um tanto distante das inovações com as quais o cineasta pretendia fugir dos clichês dos filmes policiais noir da época. Com o apoio do diretor de fotografia Charles Lawton Jr., por exemplo, Welles trabalhou formas de criar um ambiente claustrofóbico, com a utilização de luz natural sempre que possível, e suas intenções de um uso criativo do som acabaram sendo sabotadas pelo departamento de som do estúdio, não exatamente disposto a tanta criatividade: até mesmo a mais famosa sequência do filme, em uma sala de espelhos, acabou ficando mais curta do que desejava seu criador.

A trama de "A dama de Shanghai" - aquela que Harry Cohn não entendeu em sua primeira sessão do filme - começa quando o desconfiado Michael O'Hara (Orson Welles) salva uma bela mulher de ser assaltada em pleno Central Park. Logo ele descobre que se trata de Elsa (Rita Hayworth), a esposa do famoso advogado criminal Arthur Bannister (Everett Sloane), que não demora em contratá-lo como membro da equipe de seu iate em uma viagem de Nova York a San Francisco. Durante o percurso, Michael e Elsa se descobrem apaixonados e planejam fugir juntos. A oportunidade de conseguir dinheiro para isso surge quando George Grisby (Glenn Anders), um amigo de Bannister, oferece cinco mil dólares a Michael para que ele o ajude a forjar sua morte. O experiente marinheiro aceita a proposta, mas quando Grisby realmente aparece morto, ele precisa provar sua inocência - e, como em qualquer boa estória policial, Elsa não apenas pode estar relacionada com o golpe como também o leva a um perigoso clímax em um parque de diversões (inspirado no visual do expressionista "O gabinete do Dr. Caligari", de 1920).

Lançado mais de um ano depois de pronto - como mais uma prova das dúvidas de Harry Cohn na qualidade do filme -, "A dama de Shanghai" permanece na memória dos cinéfilos principalmente graças à sua sequência final, um empolgante jogo de espelhos em que Orson Welles pode mostrar porque foi um dos mais importantes cineastas de sua geração - e da história do cinema. Porém, mesmo que o filme, como um todo, tenha problemas narrativos bastante óbvios, é um entretenimento de alta qualidade visual e um marco na carreira dos envolvidos - até mesmo de Rita Hayworth em um de seus papéis menos sensuais.

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