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OS SAPATINHOS VERMELHOS

OS SAPATINHOS VERMELHOS (The red shoes, 1948, The Archers, 135min) Direção: Michael Powell, Emeric Pressburger. Roteiro: Emeric Pressburger, escrito por Emeric Pressburger, Michael Powell, estória original de Hans Christian Andersen. Fotografia: Jack Cardiff. Montagem: Reginald Mills. Música: Brian Easdale. Figurino: Hein Heckroth. Direção de arte: Arthur Lawson. Produção: Michael Powell, Emeric Pressburger. Elenco: Moira Shearer, Marius Goring, Anton Walbrook, Ludmilla Tcherina, Albert Bassermann, Robert Helpmann. Estreia: 22/7/48 (Londres)

5 indicações ao Oscar: Melhor Filme, Roteiro, Montagem, Trilha Sonora Original, Direção de Arte/Cenários em cores
Vencedor de 2 Oscar: Trilha Sonora Original, Direção de Arte/Cenários em cores
Vencedor do Golden Globe de Trilha Sonora Original 

Publicado pela primeira vez em 1845, o conto "Os sapatinhos vermelhos", do dinamarquês Hans Christian Andersen é um clássico absoluto entre crianças de várias gerações, apesar de seu tom sombrio e da violência de que o autor se utiliza para narrar a trágica história de uma criança que se vê eternamente aprisionada a um desejo inconsequente. Denso e surpreendentemente assustador, o conto de fadas (muito distante de seus congêneres mais românticos e delicados) serve de base e inspiração para um dos filmes britânicos mais importantes e aclamados da década de 1940 - e que por pouco não ficou confinado à lista de "filmes de arte", distante do grande público e conhecido apenas pela crítica e por fãs mais radicais de cinema. Lançado quase um ano depois de finalizado - e ainda assim em poucas salas e sem muito alarde -, a versão cinematográfica de "Os sapatinhos vermelhos" conquistou a plateia de forma inesperada e chegou ao ponto máximo da carreira de um filme: a indicação ao prêmio máximo da Academia!

Apesar de ter perdido o Oscar de melhor filme para outra produção inglesa (a versão de "Hamlet" dirigida e interpretada por Laurence Olivier), "Os sapatinhos vermelhos" conquistou muito mais do que seus produtores poderiam esperar - em especial o financiador do projeto, J. Arthur Rank, que não acreditava no potencial comercial do filme e foi o responsável por seu engavetamento e por sua estreia despretensiosa. Não apenas a produção ganhou o público a despeito de seu lançamento quase desastroso, como tornou-se um imenso êxito popular nos EUA, chegando a permanecer em cartaz por impressionantes 110 semanas. Afora isso, foi o responsável por aproximar um tema não exatamente acessível (o balé clássico) do público médio, que frequentava as salas de cinema mais para se divertir com faroestes escapistas do que com dramas complexos e personagens densos. Quando chegou ao Oscar - e saiu vitorioso em duas categorias (trilha sonora original e direção de arte em cores) -, o filme da dupla Michael Powell e Emeric Pressburger já era um incontestável sucesso, e sua atriz principal, a estreante Moira Shearer, uma estrela de primeira grandeza. Segunda bailarina no famoso Sadler's Wells Ballet - atrás apenas da lendária Margot Fonteyn - e sem experiência no cinema, Shearer hoje parece a única escolha possível para o papel central do filme, mas quando o projeto nasceu, ainda nos anos 1930, era Merle Oberon (de "O morro dos ventos uivantes") quem estava nos planos do produtor Alexander Korda - não por acaso, seu marido.


Korda tinha a intenção de produzir "Os sapatinhos vermelhos" - cujo roteiro fora escrito por Emeric Pressburger em 1937-, com Oberon no papel principal e suas cenas de dança dubladas por uma bailarina profissional. A II Guerra Mundial, porém, adiou o projeto indefinidamente e dez anos mais tarde, voltou às mãos de Pressburger, dessa vez acompanhado do cineasta Michael Powell. Com os direitos do script adquiridos, os dois diretores tinham total liberdade para escolher a protagonista que bem entendessem - e o ator Stewart Granger lhes deu uma ajuda providencial ao sugerir-lhes o nome de uma jovem e talentosa bailarina chamada Moira Shearer. Decidido a só realizar o filme com uma dançarina no papel central, Powell encantou-se com a diminuta Shearer - mas não imaginava que ela fosse tão difícil de convencer, o que só aconteceu um ano depois do primeiro contato (e quando ele já estava jogando a toalha e propenso a recuar de sua resolução). Com Shearer no papel da tímida e romântica bailarina Vicky Page, tudo parecia estar entrando nos trilhos, mas, ao contrário da boa impressão que as belas imagens fotografadas em Technicolor de Jack Cardiff deixaram no público, as lembranças que a atriz guardava das filmagens não eram muito agradáveis - declarações suas, feitas décadas mais tarde, davam conta de uma relação distante entre ela e Powell e de condições de trabalho pouco recomendáveis no set de gravações. Tais problemas, no entanto, jamais interferiram no resultado final. Que o digam dois de seus maiores admiradores, Martin Scorsese e Gene Kelly.

Um dos maiores dançarinos da história do cinema, Gene Kelly usou "Os sapatinhos vermelhos" como referência a um de seus maiores sucessos profissionais, "Sinfonia de Paris" (52):  hipnotizado pelos números musicais do filme, ele praticamente obrigou os executivos da MGM a compartilharem de sua fascinação como forma de convencimento para a produção daquele que seria o campeão de Oscars em 1952. Outro fã incondicional da obra, Martin Scorsese não apenas tem uma vasta coleção de itens relacionados ao filme - sapatinhos autografados por Shearer, uma cópia do roteiro autografada pelos diretores, uma parte do storyboard da produção e vários posters internacionais - como também usou-o como referência em algumas cenas de seu excepcional "Touro indomável " (80) e foi o maior responsável pela restauração de suas cópias, para o relançamento no Festival de Cannes de 2009. Mas, afinal, o que o filme de Powell e Strassburger tem de tão especial?

A trama é aparentemente simples: o famoso e rígido empresário do ramo do balé, Boris Lermontov (Anton Walbrook) encontra na delicada e sofisticada Vicky Page (Moira Shearer) a artista ideal para ser a principal estrela de sua companhia. Exigindo dela uma dedicação exclusiva à arte, ele demora a perceber a paixão que surge entre ela e o jovem compositor Julian Craster (Marius Goring) - autor do balé "The red shoes", o maior responsável por sua fama e glória. Indignado com a possibilidade de perder sua maior conquista, Lermontov cobra de Page (já transformada em ídolo internacional) uma decisão final: ou o amor de Craster ou sua carreira como bailarina. Se a história (com toques ousados a partir do conto de Andersen) não é exatamente nova ou empolgante, o que faz do filme um clássico absoluto são outros trunfos. A estupenda fotografia, a trilha sonora impecável, os números de dança (o balé principal dura cerca de 15 minutos), o elenco preciso e o final trágico transformam um filme musical em uma experiência única, repleta de complexidades dramáticas e psicológicas que se fundem a uma história de amor e desespero, filmada com maestria e inteligência. E se por acaso algumas cenas lembrarem o inesquecível "Cisne negro", de 2011, não é de surpreender: Darren Aronofsky, o diretor do filme que deu o Oscar à Natalie Portman, também é fã do trabalho de Michael Powell e Emeric Strassburger - injustamente esquecidos pela Academia!

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