quinta-feira

ORFEU

ORFEU (Orphée, 1950, Films du Palays Royal, 95min) Direção e roteiro: Jean Cocteau. Fotografia: Nicolas Hayer. Montagem: J. Sadoul. Música: Georges Auric. Figurino: Marcel Escoffier. Direção de arte/cenários: D'Eaubonne/A. Volper. Produção executiva: André Paulvé. Elenco: Jean Marais, François Périer, Maria Casares, Marie Déa, Juliette Gréco. Estreia: 01/3/50 (Festival de Cannes)

Em 1959, o francês Marcel Camus utilizou o mito grego de Orfeu e Eurídice para, em uma co-produção França/Brasil/Itália, arrebatar o Oscar e o Golden Globe de melhor filme estrangeiro, além da Palma de Ouro no Festival de Cannes. "Orfeu no Carnaval" usava e abusava da visão internacional do Rio de Janeiro como um país folclórico, berço do samba e pouco sério. Antes dele, porém, a tragédia do poeta que vai ao inferno buscar a alma de sua amada já tinha sido tema de outro filme francês, dirigido por Jean Cocteau em 1950. Com um tom poético que sublinhava as características mais fantasiosas da trama e deixava de lado qualquer resquício de realismo, Cocteau mergulhou o público em um filme de ambientação e interpretações oníricas, onde nada funciona como na vida real - e pessoas podem chegar ao Além através de espelhos e desafiar as leis da física. Sucesso internacional, "Orfeu" tornou-se um clássico cult com o passar dos anos - e se mantém absolutamente interessante até hoje.

É lógico que os efeitos visuais do filme não se comparam com os blockbusters hollywoodianos, comprados com orçamentos nababescos, mas é impressionante como Cocteau faz uso de truques simples e eficientes para contar sua estória. Sem cair na armadilha de depender de tais efeitos para contar sua estória, ele convida o espectador a uma narrativa que mescla o realismo (os figurantes em uma cena do início do filme, passada em um bar, são clientes de verdade) à fantasia, que, aos poucos, vai se tornando a principal característica do filme. Apesar do tom, porém, "Orfeu" jamais se transforma em uma produção calcada em artifícios visuais ocos: por trás de sua plasticidade encantadora, há uma metáfora poderosa sobre amor, morte e arte, que chega à plateia através de um ritmo próprio, entre a agilidade do cinema norte-americano e a contemplação dos filmes europeus dos anos 1950. Além disso, há também as curiosidades dos bastidores, que completam a experiência e a deixam ainda mais rica e completa.


Um dos maiores artistas franceses da história, Jean Cocteau fez fama em diversas áreas: além de cineasta e roteirista, ele foi também dramaturgo, romancista, pintor, diretor de arte e ator, conquistando respeito em todas as suas funções. Derramando poesia em todos os seus filmes, Cocteau (que também foi motorista de ambulância durante a II Guerra) transformava cada um de seus filmes em uma obra de arte, sem compromissos com a realidade, ainda que inspirado nela. Em "Orfeu", seu mais celebrado filme, ele fez questão, assim como em quase todos as suas obras para o cinema, de escalar para o papel principal o ator Jean Marais, que todos sabiam ser seu amante. O fato de ser um homossexual assumido nunca atrapalhou sua carreira e seu prestígio junto a seus colegas o levou a presidir o júri do Festival de Cannes em três ocasiões (1953, 1954 e 1957, nesse último como presidente honorário). Para "Orfeu" ele chegou a considerar dois dos maiores mitos do cinema para o papel da Princesa da Morte. Nem Greta Garbo nem Marlene Dietrich aceitaram a proposta, mas é de imaginar o que poderiam ter acrescentado a uma narrativa já repleta de atrativos e dubiedades.

A trama, já devidamente adaptada por Cocteau para servir a seu estilo, se passa em Paris, e começa com uma tragédia: um jovem é morto por dois motociclistas em frente a um café frequentado pelos intelectuais da cidade. Quem aparece para buscá-los é a misteriosa Princesa (Maria Casares), que chama o poeta Orphée (Jean Marais) para servir de testemunha do caso. Fascinado com o ambiente governado pela Princesa - uma casa abandonada e com espelhos que servem como portal para um outro mundo - e pela própria figura misteriosa que se revela extremamente sedutora, Orphée acaba tendo a permissão de voltar a seu mundo. Seu retorno, porém, tem resultado infeliz: sentindo-se negligenciada pelo marido (e pai do filho que carrega na barriga), sua esposa, Eurydicie (Marie Déa), também encontra a morte. Desesperado, Orphée pede permissão à Princesa para buscar sua amada.
A partir daí, embarca em uma viagem surreal pelo mundo inferior, lugar onde nem sempre as leis da física são respeitadas. Seu objetivo de resgatar Eurydice, porém, esbarra em um problema: o forte sentimento que a Princesa (a Morte) passa a nutrir por ele.

Um filme inteligente tanto na concepção quanto na realização, "Orfeu" é uma mostra de boa parte dos talentos de Cocteau: o visual plasticamente caprichado, o tom poético, os efeitos visuais discretos e o elenco homogêneo fazem de seu filme uma obra de arte em movimento. Mesmo que alguns pecadilhos sejam cometidos durante a sessão (por vezes o protagonista parece gostar mais da Morte do que de Eurydice), no final o resultado é muito acima da média e é capaz de conquistar o espectador graças à sua criatividade - que muitas vezes disfarça o ritmo um tantinho lento demais para o público médio. Entre erros e acertos é um filme marcante, que marcou com delicadeza o nome de Jean Cocteau na história da sétima arte.

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