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ACORRENTADOS

ACORRENTADOS (The defiant ones, 1958, United Artists, 96min) Direção: Stanley Kramer. Roteiro: Nathan E. Douglas, Harold Jacob Smith. Fotografia: Sam Leavitt. Montagem: Frederic Knudtson. Música: Ernest Gold. Direção de arte/cenários: Rudolph Sternad/Fernando Carrere. Produção: Stanley Kramer. Elenco: Tony Curtis, Sidney Poitier, Theodore Bikel, Charles McGraw, Lon Chaney Jr., King Donovan, Cara Williams. Estreia: 14/8/58

8 indicações ao Oscar: Melhor Filme, Diretor (Stanley Kramer), Ator (Tony Curtis), Ator (Sidney Poitier), Ator Coadjuvante (Theodore Bickel), Atriz Coadjuvante (Cara Williams), Roteiro Original, Fotografia em preto-e-branco
Vencedor de 2 Oscar: Roteiro Original, Fotografia em preto-e-branco 
Vencedor do Golden Globe de Melhor Filme/Drama 

Dá para imaginar a controvérsia que "Acorrentados" provocou quando estreou nos Estados Unidos, em agosto de 1958. Ainda faltava praticamente uma década para que Martin Luther King Jr. fosse assassinado e se transformasse na mais importante figura pela luta dos direitos civis pelos negros, mas a tensão racial já era bastante perceptível na sociedade norte-americana quando a produção, dirigida por Stanley Kramer, chegou aos cinemas: disfarçada na forma de um drama policial com momentos de ação, estava diante do público uma discussão inteligente e relevante a respeito de racismo. Em seu terceiro longa como diretor, Stanley Kramer - que mais tarde ainda assinaria outros filmes de temática social, incluindo "Adivinhe quem vem para o jantar", de 1967, que voltava a discutir a discriminação racial inserida em pretensos liberais - convidava o espectador a mergulhar em uma trama empolgante sobre dois fugitivos da justiça que se viam presos a uma convivência forçada e passavam a reconhecer, um no outro, qualidades até então insuspeitas. Pode parecer uma história comum, mas o roteiro - indicado ao Oscar - tinha um grande trunfo: os dois protagonistas eram um homem branco e um homem negro. Estava estabelecido um enredo que unia, de forma precisa, entretenimento dos melhores com discussões imprescindíveis que se tornariam ainda mais urgentes poucos anos mais tarde.

Para se ter uma ideia do quão enraizado estava o racismo - inclusive dentro da indústria cinematográfica -, basta lembrar que foi somente em 1959 que um ator negro finalmente conseguiu uma indicação ao Oscar de atuação, e que Robert Mitchum, um dos atores mais populares de então, recusou o papel principal por achar inverossímil a premissa do filme, que unia um branco e um negro no mesmo par de algemas: segundo ele, isso jamais aconteceria na realidade, especialmente em uma prisão do sul do país, amplamente conhecido por sua discriminação racial. Inverossímil ou não, o fato é que o filme aconteceu e fez um grande sucesso de crítica e de bilheteria, sendo indicado a oito estatuetas da Academia, incluindo Melhor Ator para seus dois protagonistas. Mas, apesar dos elogios generalizados à sua atuação, Tony Curtis não era a primeira escolha para o papel: o diretor Stanley Kramer tinha em mente unir Poitier a Marlon Brando - que não pode aceitar o papel por estar preso às complicadas filmagens de "O grande motim", lançado apenas em 1962. Quem também tinha interesse no projeto era ninguém menos que Elvis Presley. O ídolo da música queria mostrar que tinha talento suficiente para encarar o desafio ao lado de Sammy Davis Jr. (a primeira escolha para o papel que ficou com Poitier), mas acabou desistindo depois de ser convencido a tal por seu agente. Como teria sido o filme com esse elenco alternativo - ou com nomes como Frank Sinatra, Gregory Peck, Anthony Quinn e Burt Lancaster, todos devidamente sondados sem êxito -, jamais saberemos, mas é fato inquestionável que, da forma que estreou, ""Acorrentados" cumpriu muito bem sua missão.


Uma história de bastidores dizia, em tom de sarcasmo, quando o filme estava em seus primeiros estágios, que Kirk Douglas só aceitaria participar se fizesse o papel do fugitivo negro; a mesma anedota afirmava que Burt Lancaster só assinaria contrato se fosse escalado para os dois papéis principais. Brincadeiras à parte, "Acorrentados" acabou ficando com o elenco que deveria. Tony Curtis, ansioso em provar-se um ator competente e não apenas um galã vazio, chegou a colaborar com o orçamento de um milhão de dólares do filme, alcançado através de sua produtora, a Curtleigh - criada juntamente com sua mulher, Janet Leigh. Poitier, por sua vez, tinha a grande chance de sua carreira até então. O filme de Kramer ajudou ambos em suas ambições: indicados ao Oscar, perderam a estatueta para David Niven (por "Vidas separadas"), mas conseguiram ser vistos além dos estereótipos que marcavam suas carreiras até então. Com personagens complexos que vão se desenvolvendo conforme o avanço da narrativa, os dois atores exploram cada nuance de seu relacionamento, escapando de armadilhas melodramáticas ou de qualquer tipo de humor que, algumas décadas mais tarde, consagraria uma série de outros filmes baseados na premissa "dois parceiros aparentemente opostos descobrem que precisam um do outro para resolver suas questões (fuga, investigação e afins) e acabam por admirar-se mutuamente". "Acorrentados" é um filme sério, e mesmo que pareça pouco criativo agora, tem qualidades em número suficiente para agradar ao público.

O filme já começa em plena ação: junto com outros condenados, a dupla de detentos John Jackson, o Joker (Tony Curtis) e Noah Cullen (Sidney Poitier) está sendo transportada para a penitenciária quando um acidente com o veículo lhes oferece a oportunidade única de fuga. Acorrentados um ao outro, eles decidem ir em busca de um trem de carga que pode finalmente lhes oferecer a tão sonhada liberdade. No caminho, eles precisam lidar com os defeitos um do outro - assim como descobrem suas qualidades. Em seu encalço está o incansável xerife Max Mullen (Theodore Bickel, indicado ao Oscar de ator coadjuvante) e em seu caminho surge uma mulher simpática à sua fuga (Cara Williams, indicada ao Oscar de atriz coadjuvante) e que, juntamente com seu filho Billy (Kevin Coughlin), pode ajudá-los a finalmente atingir seu objetivo. Com um ritmo ágil e personagens interessantes, o roteiro flui de forma a conquistar o espectador e fazê-lo torcer por seus protagonistas - mesmo que eles talvez não sejam tão inocentes: mesmo que por vezes o público esqueça que ambos são criminosos (em maior ou menor grau), a trama segue até um final que renega o clichê e aponta em direção mais verossímil e que apontava inclusive para o cinema que Hollywood viria a celebrar em poucos anos, com filmes mais próximos da realidade e distante da fantasia que reinava até então. "Acorrentados" é, sem dúvida, um filme-mensagem, mas entrega seu discurso com uma embalagem atraente e que não esquece sua principal razão de ser: o entretenimento.

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