A PIOR PESSOA DO MUNDO (Verdens verste menneske, 2021, Oslo Pictures/MK2 Productions/Film i Vast, 128min) Direção: Joachim Trier. Roteiro: Joachim Trier, Eskil Vogt. Fotografia: Kasper Tuxen. Montagem: Olivier Bugge Coutté. Música: Ola Flottum. Figurino: Ellen Daheli Ystehede. Direção de arte/cenários: Roger Rosenberg/Mirjam Veske. Produção executiva: Dyveke Bjorkly Graver, Tom Kjeseth, Joachim Trier, Eskil Vogt. Produção: Andrea Beretsen Ottmar, Thomas Robsahm. Elenco: Renate Reinsve, Anders Danielsen Lie, Herbert Nordrum. Estreia: 08/7/2021 (Festival de Cannes)
2 indicações ao Oscar: Melhor Filme Internacional, Roteiro Original
Vencedor da Palma de Ouro no Festival de Cannes: Melhor Atriz (Renate Reinsve)
Ao contrário do que podem fazer acreditar as redes sociais e os filmes tipicamente hollywoodianos, a vida não é feita de escolhas fáceis. Optar por um caminho - seja ele profissional, romântico ou familiar - significa, por definição, que é preciso abandonar todos os outros, e isso é, ninguém pode negar, definitivamente árduo e doloroso. Nessa trajetória rumo ao amadurecimento, feridas são abertas, pessoas são magoadas e é constante a sensação de que a felicidade de uns provavelmente será a infelicidade de outros. E é justamente esse sentimento de angústia que atormenta a vida de Julie, a protagonista da comédia dramática "A pior pessoa do mundo" - que representou a Noruega na disputa pela estatueta de melhor filme internacional no Oscar 2022. Indicado também na categoria de roteiro original, o filme de Joachim Trier aposta na aparente simplicidade de sua trama para envolver o espectador em uma narrativa que equilibra com rara felicidade um humor sutil, um drama que dribla miraculosamente o sentimentalismo e elementos de comédia romântica - sem que se transforme, no processo, em uma mixórdia de gêneros aleatórios. Inteligente e verossímil, é também, a prova cabal de que o cinema fora de Hollywood há muito deixou de lado o rótulo de hermético ou intelectual.
Julie - interpretada por Renate Reinsve, premiada como melhor atriz no Festival de Cannes 2021 - está chegando aos trinta anos e se encontra em várias encruzilhadas. Profissionalmente não consegue decidir-se definitivamente por nenhuma carreira - medicina, psicologia e fotografia são suas opções, com maior tendência à última. Familiarmente, sente-se presa à mágoa que sente por ser preterida pelo próprio pai. E romanticamente, então, é ainda pior. Envolvida seriamente com Aksel (Anders Danielsen Lie) - alguns anos mais novo e quadrinista profissional -, ela percebe, angustiada, que não compartilha com ele os desejos de formar uma nova família. Tal situação a leva a sentir-se atraída por Eivind (Herbert Nordrum), um barista com quem se sente mais à vontade e mais próxima do que pode se chamar de felicidade. Porém, as coisas não são assim tão fáceis - e qualquer decisão que toma a leva por caminhos que podem não ter mais volta. Incapaz de sentir-se totalmente firme dos rumos de sua vida e por consequência agindo de forma a machucar a quem ama, Julie por vezes se torna o que mais temia: a pior pessoa do mundo.
O
roteiro de "A pior pessoa do mundo" é um achado. Tanto pode seguir a
cartilha do naturalismo, criando personagens verossímeis e situações
facilmente identificáveis por qualquer espectador quanto pode apostar no
caminho contrário - o primeiro encontro real entre Julie e Eivind, por
exemplo, acontece enquanto o mundo à sua volta parece estático, como se
não existisse de verdade. Os personagens criados por Joachim Trier e
Eskil Vogt são, ao mesmo tempo, adoráveis e falíveis - dotados,
portanto, de defeitos e qualidades intrinsecamente humanos. E a atuação
de seu elenco, tanto principal quanto coadjuvante, é digna de aplausos
entusiasmados. Se Anders Danielsen Lie chama a atenção com um personagem
complexo e multidimensional - com direito a reviravoltas dramáticas e
até mesmo um surpreendente nu frontal -, é Renate Reinsve que faz do
filme uma pequena obra-prima: escolhida pelo diretor às vésperas de
abandonar a carreira de atriz e investir no ramo da marcenaria (!!),
Reinsve simplesmente torna Julie uma das mais fortes protagonistas
femininos do cinema das últimas décadas. Dotada de uma série
aparentemente inesgotável de nuances, a jovem vencedora do Festival de
Cannes consegue até mesmo mudar de feições, de acordo com cada momento
da trama: sexy, insegura, ousada, traumatizada, angustiada, decidida,
apaixonada.... sempre que Julie está em cena, seus sentimentos são
facilmente reconhecidos no rosto comum (mas nem por isso esquecível) de
sua intérprete. Como se fosse uma página em branco, pronta para
transmitir os anseios de sua personagem, Reinsve rouba o filme inteiro
para si - não à toa, é sua imagem que estampa o principal cartaz da
produção e sua personalidade a inspiração para a história.
"A
pior pessoa do mundo" é um filme delicioso, uma prova inconteste de que a
simplicidade narrativa nem sempre significa pobreza de ideias ou falta
de criatividade. Ao retratar gente cujos desejos e traumas refletem os
mesmos que qualquer um da plateia, a trama de Joachim Trier acaba por
devolver ao público tanto sua capacidade de refletir quanto de sonhar,
sem deixar de, nesse meio-tempo, lembrar que o cinema não serve apenas
como válvula de escape ou sessão de terapia: perfeitamente equilibrado
entre esses dois pontos, é, segundo palavras do diretor, "uma comédia
romântica feita para aqueles que não gostam de comédias românticas". Ou
seja, é a vida real com verniz de fantasia - não aliena completamente e
não machuca com profundidade. Imperdível!
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