quinta-feira

O GAROTO

 


O GAROTO (The kid, 1921, Charles Chaplin Productions, 68min) Direção,roteiro, montagem e produção: Charles Chaplin. Fotografia: Roland Totheroh. Direção de arte: Charles D. Hall. Elenco: Charlie Chaplin, Jackie Coogan, Edna Purviance, Carl Miller. Estreia: 16/01/21

A epígrafe de "O garoto" - "Um filme com um sorriso - e talvez uma lágrima" - é, sem dúvida, bastante apropriado. O primeiro longa-metragem de Charles Chaplin, depois de vários curtas geniais e aplaudidos unanimemente, é um conjunto perfeito de todos os elementos que sua filmografia englobaria a partir de então: humor físico de alta precisão, uma dose de sentimentalismo, uma simplicidade franciscana (que escondia as dificuldades oriundas do perfeccionismo do diretor) e a capacidade de extrair poesia da mais prosaica situação. Filmada por um período de cinco meses e meio - filmagens tão longas que incomodaram os financiadores do projeto, apavorados com a demora de finalização -, a primeira obra-prima de Chaplin foi realizada durante um período conturbado da vida pessoal do cineasta, que passava pelo divórcio de sua primeira mulher, Mildred Harris, e o fato de retratar o cotidiano pobre e miserável de pessoas em situação precária de vida provavelmente faz de "O garoto" um dos filmes mais pessoais e autobiográficos de sua carreira. 

Oriundo de uma infância de privações e dificuldades financeiras e emocionais, Charles Chaplin encontrou em Carlitos o alter-ego ideal: pobre, sem passado e/ou futuro, sozinho no mundo e invariavelmente solitário (mesmo quando acompanhado). Em "O garoto" seu protagonista não está sozinho - afinal sua vida encontra uma razão quando se depara com um bebê abandonado em um beco -, mas, apesar disso, vive na iminente possibilidade de perdê-lo para a justiça. Pobre, vivendo em condições quase insalubres (mas repleta de amor e afeto), ele ainda encontra espaço para ensinar ao menino, quando um pouco maior, maneiras pouco nobres de sobreviver às intempéries financeiras: trabalhando como vendedor de vidros, ele conta com a criança para que quebre as vidraças da cidade, por coincidência no exato momento em que ele está passando pelo local. Os moradores não percebem o esquema, mas o vagabundo criado por Chaplin não passa incólume ao olho da lei, representada na figura de um policial com cara de poucos amigos - um estereótipo frequente na obra do diretor. Além disso, outra ameaça surge repentinamente no horizonte da inusitada família: a mãe do menino, que o deixou para trás na juventude, hoje uma atriz consagrada, procura reencontrá-lo para compensar os anos de ausência.


 

Se "O garoto" apresenta a essência do cinema de Charles Chaplin, muito se deve à química impecável entre o astro e seu colega mirim, o pequeno Jackie Coogan, descoberto pelo cineasta durante um número de vaudeville com seu pai, também artista e parte do elenco do filme (em três papéis pequenos): expressivo e talentoso, o pequeno Coogan acabou passando por problemas financeiros antes mesmo de atingir a idade adulta, explorado pela mãe e pelo padrasto. Ainda antes de voltar a tornar-se famoso - como o Tio Fester da série "A família Monstro", dos anos 1960 - chegou a contar com o auxílio do próprio Chaplin, com quem se encontrou pela última vez em 1972, quando o cineasta retornou a Hollywood para receber seu único Oscar (e um ano depois do relançamento de seu filme, com nova edição e nova trilha sonora). E não apenas Coogan teve sua vida atrelada a de de Chaplin além do campo profissional. Uma das atrizes que trabalhavam como extra em "O garoto" - Lita Grey, que interpreta um dos anjos na sequência de sonho no final da produção, e que tinha apenas 12 anos durante as filmagens - se tornou esposa do celebrado diretor depois de, aos 16 anos de idade, descobrir que seu romance com Chaplin resultou em uma gravidez (o casamento durou dois anos e gerou dois filhos).

Mas, a despeito de seus bastidores e dramas fora das telas, "O garoto" se  mantém, mesmo mais de um século depois de seu lançamento, como uma obra quase irretocável. Quase? Sim. Apesar de oferecer momentos do mais puro lirismo, cenas de estampar um sorriso no rosto do mais taciturno espectador e fixar na memória do público uma dupla memorável de protagonistas, o filme se estende além do que precisava, com uma sequência onírica que só se justifica pela necessidade de alcançar o tempo que o define como longa-metragem. Tal pecadilho, no entanto, não atrapalha em nada o prazer de ver (ou rever) uma das comédias mais doces e sentimentais da história do cinema - e que, não é à toa, figura no topo das preferências de muitos fãs de Chaplin - como o cineasta Wayne Wang, que o considera seu filme preferido. Certamente muita gente acompanha a opinião de Wang.

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