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FOME

FOME (Hunger, 2008, Film4/Channell Four Film/Northern Ireland Screen, 96min) Direção: Steve McQueen. Roteiro: Enda Walsh, Steve McQueen. Fotografia: Sean Bobbitt. Montagem: Joe Walker. Música: Leo Abrahams, David Holmes. Figurino: Anushia Nieradzik. Direção de arte/cenários: Tom McCullagh. Produção executiva: Iain Canning, Peter Carlton, Edmund Coulthard, Linda James, Jan Younghusband. Produção: Robin Gutch, Laura Hastings-Smith. Elenco: Michael Fassbender, Brian Milligan, Liam McMahon, Stuart Graham. Estreia: 15/5/08 (Festival de Cannes)

Em 1996, o filme "Mães em luta", de Terry George - corroteirista indicado ao Oscar por "Em nome do pai" - jogou luz sobre um dos momentos de maior tensão da luta entre o Exército Republicano Irlandês (o famigerado IRA) e a Inglaterra de Margaret Tatcher, quando um grupo de prisioneiros políticos, como forma de exigir tratamento diferenciado dos criminosos que dividiam as prisões britânicas, iniciaram uma greve de fome que atravessou meses, dividindo a opinião pública a respeito de um tema sempre candente no país. Um dos personagens do filme, Bobby Sands (interpretado por John Lynch), que foi eleito para o Parlamento quando passava pela greve, tornou-se, mais de uma década depois, o protagonista da intensa e desconfortável estreia do artista plástico Steve McQueen como cineasta. Elogiado e premiado em vários festivais de cinema - inclusive o de Cannes, de onde saiu com o prêmio da mostra Un Certain Regard - McQueen entrou com o pé direito na nova carreira, com "Fome", uma obra desconcertante e inesquecível, injustamente mal-lançada no Brasil.

Homônimo do ator norte-americano astro de filmes como "Bullitt" e "Papillon", McQueen não nega suas origens artísticas em seu primeiro filme: uma obra extremamente visual e minuciosamente realizada com o intuito de falar mais aos olhos do que aos ouvidos, "Fome" é formado por uma série de cenas de grande impacto plástico e emocional, que evitam, no entanto, o sentimentalismo fácil e óbvio - característica que o cineasta enfatizaria ainda mais em seu filme mais famoso, "12 anos de escravidão", premiado com o Oscar em 2014. Com o auxílio da fotografia de Anushia Nieradzik, McQueen cobre de poesia atos de extrema violência, sem deixar que eles sejam destituídos de sua crueza natural. É assim que a câmera registra, sem sublinhar desnecessariamente, o policial que chora escondido enquanto seus colegas espancam os grevistas, o homem responsável pela limpeza dos corredores que faz silenciosamente seu trabalho de limpar a urina dos prisioneiros, as paredes cobertas de fezes das celas sendo lavadas com extrema naturalidade e cenas de tortura fisica que incomodam pelo tom seco e direto impresso pelo cineasta. Até mesmo quando, em seu terço final, dedica-se à via-crucis de Sands (em atuação visceral e impressionante de um então desconhecido Michael Fassbender) o filme mantém o tom quase documental e áspero que lhe distingue da média: tudo em "Fome" é triste, chocante e quase asséptico emocionalmente. E é isso que lhe faz tão especial.


Com um roteiro que também foge do tradicional, "Fome" começa em 1981, mostrando a rotina de um dos policiais que trabalham na prisão de Maze, na Irlanda do Norte: o público acompanha , a princípio sem saber direito de quem se trata, o dia-a-dia de Raymond Lohan (Stuart Graham), responsável pelos violentos interrogatórios a que são submetidos os presos políticos do IRA. Vivendo em constante tensão, com medo de bombas e atentados que podem atingir sua família, Lohan é um homem pouco afeito a contatos sociais, por motivos que ficam claro ao espectador quando se descobre porque os nós de seus dedos estão constantemente feridos e porque ele se recusa a sequer ter relações amistosas com os colegas de trabalho. Em seguida, o foco da ação é transferido para um novo preso, Davey Gillen (Brian Milligan), que imediatamente é considerado como "não-cooperativo" por recusar-se a usar roupas de prisioneiro comum. Jogado nu na mesma cela que Gerry Campbell (Liam McMahon), ele une-se ao novo colega em uma série de protestos contra o regime, que incluem cobrir as paredes de fezes, drenar a urina de sua cela para os corredores e fazer com que suas reivindicações ultrapassem os limites do prédio através de suas visitas.

O terço final da história - depois de um trágico evento envolvendo Lohan e o IRA - é dedicado à Bobby Sands, o líder de uma radical greve de fome que pretende chamar a atenção da mídia e atrair a simpatia da população à causa dos prisioneiros políticos: nem mesmo sua relação próxima e fraternal com o padre Dominic Moran (Liam Cunningham) o afasta de sua firme determinação de morrer por seus princípios, o que acaba levando-o a um colapso físico poucas vezes vista no cinema: mostrando em detalhes a decadência da saúde de Sands - com direito a close-ups de feridas e uma atuação avassaladora de Michael Fassbender - McQueen atinge o coração e o estômago da plateia de forma certeira, borrando sem medo as fronteiras do bom-gosto enquanto mantém o tom artístico de sua obra. É ousada também a longa cena - 17 minutos de duração em um plano-sequência admirável - em que Sands conversa com o padre Dominic, expondo suas crenças e sua disponibilidade de morrer por uma causa: em um único plano calcado unicamente nos diálogos e na atuação dos atores, McQueen apresenta um gritante contraste com o que vinha mostrando até então e substitui a imagem pela palavra. Um toque de genialidade em um filme repleto de momentos devastadores e que merece ser descoberto pelos fãs de obras fortes e contundentes, que fogem do lugar-comum. Uma estreia alvissareira!

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